O dia seguinte.

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Há atletas que comparam o vazio depois de um pódio à parada brusca de uma máquina em alta velocidade

Vai dar saudade deles. Foram lindos de ver em todas as suas muitas configurações — tivessem porte de mastim ou pernas que chegavam à altura das axilas. O britânico William Harvey, grande figura da medicina de seu tempo, não se referia a atletas quando descreveu o movimento animal como “música silenciosa do corpo humano”. Mas é em Jogos Olímpicos que a capacidade ou não de controlar esse movimento com a mente fica demonstrada em toda sua plenitude.

Na Rio 2016 não foi diferente. O pódio do salto com vara masculino proporcionou o retrato-síntese das 11.547 variáveis individuais com que os atletas de 207 países desembarcaram para disputar suas provas.

No topo do pódio, o jovem brasileiro Thiago Braz, de 22 anos, sereno apesar de calouro em Jogos e contido apesar de ter batido o recorde olímpico. No degrau mais baixo, o americano Sam Kendricks, com ar de felicidade planetária acarinhando o bronze que para ele valia ouro. No degrau reservado ao medalhista de prata, um homem amargo, devastado e instável de 27 anos.

Renaud Lavillenie não fracassara na prova em si — não se pode chamar de fracasso uma clássica derrota para um adversário que lhe fora inegavelmente superior. A grande derrota autoinfligida de Lavillenie foi não aceitá-la.

O francês tem farta companhia na negação, apenas o que se revelou mais mesquinho e rancoroso. A valquíria holandesa Dafne Schippers, atual campeã mundial dos 200 metros, também odiou ser atropelada em 0,13 de segundo por um furacão jamaicano chamado Elaine Thompson. Mas tratou de escancarar logo o tamanho da decepção. “Péssimo. A prata para mim não vale nada. Vim aqui para levar o ouro”, disse a atleta, ao sair da pista descalça, tendo usado a sapatilha como projétil de descarrego da raiva. E foi em frente.

Não só quedas do Olimpo testam o equilíbrio físico e emocional de atletas. Despedidas em triunfo também podem ser difíceis de administrar depois de apagada a pira olímpica. Uma coisa é ser Usain Bolt e conseguir transformar o encerramento da carreira numa festa de arromba para 3,5 bilhões de convidados. Outra é voltar para casa em glória, sem ser Bolt.

Dependendo do naco de vida despendido para chegar ao topo, são inúmeros os casos de campeões graúdos que perderam o rumo diante do vazio uma vez alcançada a tão cintilante meta. Depois de um ouro olímpico apenas outro ouro olímpico tem valor — não há campeonato mundial que tenha peso ou simbolismo equivalente. Só que para muitos esportistas a perspectiva de ter de esperar mais quatro anos para talvez, muito talvez, voltar ao topo é por demais cruel.

Ninguém menos do que Michael Phelps ficou sem rumo após conquistar oito ouros em Pequim. Superou o vazio, somou mais quatro pódios em Londres e viu-se novamente à deriva, desta vez com depressão. Por sorte, conseguiu se reerguer na vida e na água, para a doce despedida das piscinas no Rio, com mais cinco ouros, uma prata e um baita sorriso.

Um pouco como o atleta de elite descrito por F. Scott Fitzgerald em “O grande Gatsby”, também Greg Louganis, nome maior do salto ornamental, despencou para o que chamou de “inexplicável fundo do poço”, seguido de tentativa de suicídio.

“Só não tive depressão nem nada parecido porque eu mesmo decidi ficar fora d’água por seis meses depois dos Jogos de Barcelona e Atlanta”, conta o grande velocista dos 50m e 100m nado livre, Alexander Popov, que só voltou a nadar quando se sentiu “faminto, desesperado por treino”. Ele diz ter descoberto em tempo hábil que no hard drive do seu cérebro ainda sobrava espaço para outra coisa além de nadar .

Em artigo recente sobre o tema, a repórter americana Maddie Crum computou em 4.990 horas a média de tempo que os 11.547 atletas presentes na Olimpíada do Rio dedicaram a treinos no último quadriênio. Considerando-se que a média de idade dos participantes nos Jogos anteriores foi de 26 anos, a perspectiva de investir um quadriênio inteiro de treinos sem garantia de vir a integrar a próxima equipe olímpica exige disciplina e voluntarismo notáveis por parte do atleta.

Crum lembra o caso antigo do nadador Jerry Heidenreich, que não se classificou numa seletiva americana por 0.01 segundo, menor margem de tempo antes de um resultado ser considerado empate. Portanto, no mínimo mais quatro anos e 4.990 horas de treino se quisesse tentar novamente.

Há atletas que comparam o vazio depois de um pódio a um pneu que fura e fica sem ar, à parada brusca de uma máquina em alta velocidade, à depressão pós-parto.

Para os que cogitam parar, o dilema também apresenta ansiedade. Ao anunciar sua aposentadoria depois de conquistar um ouro nos Jogos de Lillehammer, a esquiadora Diann Roffe foi indagada sobre seus planos dali em diante. “Vou me matricular na vida em sociedade”, respondeu. Como todo atleta de elite, Roffe tinha até então uma rotina autocentrada — seus treinos, batimentos cardíacos, nutrição, metas, tudo girava em torno dela.

Tudo isso e muito mais não ficou à vista nos 15 dias de majestosas competições no Rio. Nem deveria ficar, por prematuro. E para não poluir o incomparável espetáculo dos melhores atletas do mundo em 302 disputas para a consagração do melhor. Um luxo.

Crédito: Artigo publicado dia 21’/08/2016 na coluna opinião do jornal O Globo – disponível na web 22/08/2016

Nota: O presente artigo não traduz a opinião do ASMETRO-SN. Sua publicação tem o propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

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