Tiro certeiro no próprio pé.

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As duas imagens são diferentes em tudo, e os episódios que elas ilustram têm características quase opostas. Mas o dano causado a seus principais protagonistas, com respingos fatais nos coadjuvantes, é politicamente indelével.

Na primeira, de 2009, o personagem principal sequer aparece. Ela retrata animada confraternização parisiense no Hôtel de la Païva, antiga maison do século XIX fundada por uma cortesã russa, em torno do então governador Sérgio Cabral. O flagrante divulgado em 2012 por Anthony Garotinho, eterno rival de Cabral, dispensava legenda: era o retrato da esbórnia regada a luxo e bons vinhos do governo que faliu o Rio. A identificação dos que se sobressaem no instantâneo só piorou o conjunto da obra — estão todos presos ou encrencados na Lava-Jato.

A segunda imagem, em vídeo, é desta semana. Foi produzida, encenada e divulgada pelo próprio prefeito Marcelo Crivella.

Difícil alguém conseguir dar um tiro no pé tão certeiro. É o retrato de um político que está no lugar errado na hora errada em companhia das pessoas erradas.

Ao invés de estar na cidade que o elegeu na semana mais crítica de seu mandato, e compartilhar com seus munícipes o breve júbilo carnavalesco e as horrendas agonias que se seguiram, Crivella escapuliu do Rio disfarçado de passageiro aéreo. Reapareceu do outro lado do Atlântico numa sucessão de vídeos tão incoerentes quanto desconexos, ladeado por dois assessores que se esperaria estarem em seus postos nesta época de caos tão previsível: o coronel Guilherme Sangineto, chefe do cinematográfico Centro de Operações Rio, e o coordenador de inteligência da PM fluminense, coronel Antônio Goulart.

Além deles, também participou do sexto giro ao exterior do burgomestre voador o advogado Fábio Pimentel de Carvalho, principal executivo da Iplanrio, empresa responsável pela administração dos recursos de tecnologia, informação e comunicação da cidade, cujos dois valores autodeclarados são “Compromisso com a população carioca”, e “Transparência na prestação de contas e satisfação do cliente”.

A caravana Cabral causou impacto por seus guardanapos na cabeça fora do carnaval e longe do Rio. O petit comité de Crivella parece ainda mais exótico, por simular produtividade em terras estrangeiras como Darmstadt, na Alemanha, a Áustria e a Suécia. O registro audiovisual dos passos do prefeito no inverno europeu chega a ser constrangedor:

“Oi pessoal aí do Brasil…”, diz ele como se falasse para bípedes do planeta Terra de alguma nave espacial.

“Estamos trabalhando muito, pegando muita informação para saber o que há de mais moderno em termos de vigilância, em termos de VANT (veículo aéreo não tripulado), em termos de drones, em termos de informações via satélite aqui…”

“Aqui está frio pra chuchu…”, informa, esfregando as mãos.

O verniz de “visita oficial” à sede da Agência Espacial Europeia (ESA), em Darmstadt, durou pouco. Já no dia seguinte a repórter Graça Magalhães-Ruether informava no GLOBO que Crivella fora recebido como “visitante puramente privado”, e que a ESA, embora controle a trajetória de cerca de 20 satélites de observação, não vende tecnologia de segurança. “Nossa principal meta é entender o surgimento do espaço e os buracos negros”, explicou à repórter um de seus 900 profissionais.

Enquanto isso, quem ficou no longínquo Rio de Janeiro passou do estado de atenção ao estado de alerta, e deste para o estado de crise, com buracos negros de violência, calamidade e despreparo por toda parte. A cidade e o estado se fundem numa crise comum, obra de décadas de falência do poder público nas três esferas.

A Ciclovia Tim Maia, novamente desdentada por um segundo desabamento, é apenas o exemplo mais recente desse legado. Num de seus périplos anteriores que passou por Arnhem-Nijmegen, na Holanda, o prefeito participou da Velo-City 2017, a cúpula mundial organizada pela Federação Europeia de Ciclismo. A próxima edição da conferência ficara marcada para junho deste ano, no Rio, e a pista Tim Maia certamente deixaria os visitantes deslumbrados pela beleza sem igual do seu traçado. A notícia do desabamento, e a constatação, feita no terreno pelo engenheiro e vice-prefeito da cidade, Fernando McDowell, de que “isto aqui está podre… o projeto está errado” deve ter causado calafrios lá fora.

Dois anos atrás, às vésperas dos Jogos de 2016, PMs em greve recebiam os turistas no aeroporto internacional Tom Jobim com cartazes de “Bem-vindos ao inferno”. Esta semana, o porta-voz da Polícia Militar, major Ivan Blaz, aconselhou a quem estiver de visita à Cidade Maravilhosa a não empunhar o celular para fazer selfie.

Pergunta: e o morador que não pode ou não quer sair dela? Não há drone que resolva a questão do saneamento, da tunga na verba contra enchentes e alagamentos. Tampouco há intervenção espacial capaz de impor um mínimo de credibilidade a Luiz Fernando Pezão, o sucessor de Sérgio Cabral. Nada fará com que ele termine o mandado “de cabeça erguida” sob intervenção federal.

Artigo publicado dia 18/02/2018 no O Globo  – disponível na internet 19/02/2018

Nota: O presente artigo não traduz necessariamente a opinião do ASMETRO-SN. Sua publicação tem o propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

 

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