Em nome do povo.

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Criminosos que estão sendo presos, devido às falcatruas no uso da Lei Rouanet, deviam ser enquadrados em crime mais hediondo do que o de simples ladroagem.

O governo de Xi Jinping, na China, faz questão de alardear que tem se dedicado com rigor à luta contra a corrupção. A súbita e bombástica chegada do país ao mundo capitalista, seu sucesso interno e sua expansão no conjunto da economia global provocaram uma excitação financeira que atrai os cidadãos beneficiados por esse desempenho.

O filme de Jia Zhangke, “As montanhas se separam”, em cartaz no Rio de Janeiro, é um retrato do que acontece hoje com os chineses afluentes, desde o melodrama familiar de seu início, vivido na pequena cidade de Fenyang (onde nasceu o próprio Jia Zhangke), até seu último episódio passado no futuro, quando os personagens estão definitivamente empenhados na corrida pelo sucesso financeiro a qualquer preço, inclusive o de seus costumes morais.

A luta dos chineses contra a corrupção não se traduz apenas por atos punitivos, mas também por iniciativas que precedem a necessidade de atos punitivos. Atualmente, por exemplo, o governo de Xi Jinping está financiando uma série para a televisão sobre a corrupção no alto escalão, inclusive militar. A série ficcional, chamada “Em nome do povo”, tem um orçamento recorde de cerca de 20 milhões de dólares (quase 70 milhões de reais), garantidos pelo próprio Estado.

Para aqueles que combatem a estadocracia, essa é uma notícia perversa — o Estado, na China, financia generosamente sua própria proteção contra os gatunos que pretendem tirar proveito da riqueza pública, transformando-a em bem pessoal. Já no Brasil, o Estado foi obrigado a intervir, através de sua polícia, no uso do único meio que as artes e a cultura têm para se manifestar sobre o que pensam do país. A corrupção não estava no conteúdo de sua obra, mas sim no modo de realizá-la — o uso fraudulento da Lei Rouanet.

Os criminosos que estão sendo presos, devido às falcatruas no uso da Lei Rouanet, deviam ser enquadrados em crime mais hediondo do que o de simples ladroagem. Eles praticaram um crime que não é apenas contra o Erário público, mas também contra o pensamento e a criatividade do país. Um crime contra o patrimônio espiritual da nação, cujo preço é impossível de ser calculado.

Muita gente tem se aproveitado dessa Operação Boca Livre para demonizar a Lei Rouanet, pedir sua extinção por ser justamente uma “boca livre” de artistas às custas do governo. Ou seja, uma “boca livre” em torno do dinheiro de todos. Essa ideia tem sido veiculada sobretudo pelo rancor de mal informados, alimentado pela ficção em torno do uso da lei.

A cultura brasileira, sua economia criativa, nunca foi tão bem protegida quanto desde a vigência da lei, permitindo a prática cultural e de criação em comunidades de baixa renda, museus abandonados, expressões populares esquecidas, manifestações antes improváveis de serem difundidas. Claro que não só os que estão sendo presos, como outros possíveis larápios, devem estar se beneficiando criminosamente dela; mas não se fecha a rede bancária de um país porque um banco foi assaltado.

À exceção da produção de audiovisual (administrado, fomentado e fiscalizado por uma lei própria, criada em 2001), toda a memória e produção cultural do país é beneficiada pela Lei Rouanet. Demonizá-la agora condenaria essa imensa riqueza ao silêncio. Segundo, a previsão da Receita Federal para 2016, a renúncia fiscal correspondente ao incentivo à cultura será de cerca de 1,3 bilhão de reais, o que representa 0,48% dos 270 bilhões de reais que o Brasil deixará de arrecadar, com a soma dos outros programas de incentivos agrário, industrial e comercial. E nunca vi um automóvel nacional em que estivesse escrito no painel “o Ministério dos Transportes apresenta”; ou uma partida de soja com o logo da “Pátria Educadora”.

Para se ter uma ideia do que representam esses números, basta lembrar que, na França, apenas na atividade cinematográfica, o incentivo governamental é de pouco menos de 2,5 bilhões de euros ao ano, cerca de 9 bilhões de reais. Nos Estados Unidos, a Motion Pictures Association of America, o sindicato dos grande estúdios, de tão ligado ao Estado tem sede na própria Casa Branca; e a agência estatal National Endowement for the Arts, encarregada de incentivar a cultura, desde algum tempo financia de modo precursor a revista “Gay Sunshine”, editada por Winston Leyland, pensador e líder gay.

A economia criativa no Brasil responde por 2,6% do PIB, emprega 900 mil profissionais em 250 empresas, com média salarial e taxa de crescimento que correspondem ao dobro da média da economia brasileira, segundo documento da Firjan. A Lei Rouanet é um fator poderoso por trás de números tão significativos. Como diz o cineasta Sergio Sá Leitão, em texto publicado essa semana, “o Brasil é melhor com a Lei Rouanet do que sem ela”.

Crédito: Artigo publicado dia 03/07/2016 no jornal  O Globo  – disponível na web  04/07/2016

Nota: O presente artigo não traduz a opinião do ASMETRO-SN. Sua publicação tem o propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo

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