Impeachment: forma e conteúdo.

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“Oh! Que formosa aparência tem a falsidade” (William Shakespeare)

A tradição bacharelesca do Brasil, herança colonial do patrimonialismo português, leva à hipervalorização da forma jurídica em detrimento do conteúdo. Daí a tese de que não houve golpe porque a forma legal foi respeitada. Fica em segundo plano a questão central: para haver impeachment, tem de haver crime de responsabilidade pessoal do presidente, o que não ocorreu.

É verdade que o segundo governo Dilma fracassou, e ela mostrou não ter as qualidades necessárias para a função que ocupava. Foi, no mínimo, conivente com a corrupção que assaltou a Petrobras e outras estatais para alimentar com propinas tecnocratas e políticos ligados à base de apoio do governo. O PMDB, agora no poder, sempre fez parte do governo, e muitos de seus dirigentes já foram acusados e até mesmo processados como corruptos. São inúmeros os exemplos, mas o caso mais emblemático é o do deputado Eduardo Cunha, um gênio na sua especialidade: a corrupção.

O país mergulhou em recessão; o PIB caiu; as contas públicas se desorganizaram; o desemprego se elevou a 11,6%, segundo o IBGE; a maioria da população passou a rejeitar o governo. Mas alta taxa de rejeição não é motivo para impeachment. Na França, até pouco tempo, o presidente François Hollande tinha 80% de rejeição, e ninguém falou em impeachment. O mesmo ocorreu anteriormente com o então presidente Bush nos EUA.

O processo de impeachment foi uma farsa, embrulhada num pacote jurídico, que configura um golpe parlamentar. O novo governo já ameaçou aumentar impostos e cortar direitos sociais. Nesse sentido, o grande alvo, além de Lula, são os direitos consagrados na Constituição de 88. É claro que muitas distorções devem ser corrigidas como, por exemplo, conceder pensões para filhas de militares e desembargadores. Mas o que se percebe no horizonte são as nuvens carregadas do economicismo típico do neoliberalismo que parece renascer das cinzas depois de seu fracasso histórico revelado na crise do fim de 2008.

O ciclo do governo do PT, encerrado agora, não pode ser visto como um processo retilíneo. A crise do capitalismo em 2008 é um divisor de águas, um verdadeiro ponto de inflexão. Antes, o Brasil se beneficiava dos altos preços das commodities que exportava, o que ajuda a explicar nos anos 2000, durante o governo Lula, o aumento da renda dos pobres e também dos ricos, bem como a redução da brutal desigualdade social no país. Depois de 2008, vem a queda nos preços das commodities e a recessão econômica. O governo Dilma afunda e começa a fazer o contrário do que havia prometido, cortejando a política do candidato derrotado na eleição.

Assim, a ruptura é menor do que parece. Afinal, o segundo governo Dilma já havia adotado medidas na direção de um ajuste que agora vai ser aplicado pelo ministro Meirelles, aquele mesmo indicado por Lula para ser ministro da Fazenda de Dilma.

Mas é o novo governo quem já simboliza uma política voltada primordialmente aos interesses do mercado, principalmente do capital financeiro. Assim, quem apoiou o impeachment avalizou o governo Temer e seu ajuste fiscal que pede sacrifícios apenas ao povo. E contribuiu para o esvaziamento político do processo de anulação da chapa Dilma/Temer no TSE, o que inviabiliza a possibilidade de eleições diretas ainda este ano, o único caminho para se obter um governo legítimo, objeto do respeito de todos, vencidos e vencedores.
Crédito: artigo publicado dia 04/09/2016 no jornal O Globo – disponível na web 05/09/2016

Nota: O presente artigo não traduz a opinião do ASMETRO-SN. Sua publicação tem o propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. 

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