Um ‘Big Brother’ dos gastos com planos de saúde. Carteirinha é passaporte da doença.

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Com tecnologia e contratação de médicos e enfermeiros, empresa detecta desperdícios que elevam os custos e prejudicam os pacientes
Em um galpão de 4.000 m² que já abrigou uma lavanderia industrial em Barueri, na região metropolitana de São Paulo, funciona o maior centro de conexão de dados do mercado da saúde na América Latina. O paciente não se dá conta, mas, quando entrega a carteirinha do convênio ao atendente do consultório, do hospital ou do laboratório de análises clínicas em qualquer região do Brasil, tem grandes chances de disparar as sinapses digitais da Orizon, uma empresa que tudo checa e registra.

A cada dia, 500 mil procedimentos (do simples hemograma à cirurgia complexa) são autorizados ou negados instantaneamente pelo sistema que conecta grandes corporações: 43 operadoras de planos de saúde, 140 mil prestadores de serviço e 11 mil farmácias que oferecem programas de desconto aos beneficiários de planos de saúde. Transações relacionadas ao atendimento médico de 13 milhões de pessoas trafegam por ali.

No momento em que se discute quais sãos os custos que impactam no preço dos planos de saúde, é importante levar em consideração as fontes de desperdício, os desvios e as fraudes que corroem o dinheiro que os empregadores e seus funcionários colocam nos planos coletivos e que as famílias investem nas modalidades individuais.

Exame de sangue em laboratório – Thiago Lontra / .

A necessidade de fiscalizar os prestadores que criam artimanhas para engordar pagamentos, ou colocam a saúde dos pacientes em risco ao indicar procedimentos desnecessários, deu origem a um sofisticado mercado de auditoria. São empresas que, como a Orizon, prosperam no ramo da desconfiança.

– É como o custo bélico. Se os países estivessem em paz, ele não existiria. Na saúde, o aparato de guerra é construído porque um lado (as operadoras) sabe que o outro (hospitais e demais prestadores) vai ser mais feliz se fizer mais procedimentos e cada vez mais caros – diz o engenheiro Mario Martins, presidente da empresa.

Os gastos dos planos de saúde com desvios ultrapassaram a cifra de R$ 22 bilhões em 2015 (19% do total de despesas assistenciais das operadoras), segundo estimativa do Instituto de Estudos de Saúde Suplementar (IESS), uma entidade de pesquisa mantida pelas empresas do setor. No final, quem paga a conta dos gastos desnecessários e da engrenagem criada para combatê-los é o cliente.

Um sino chama a atenção logo na entrada do imenso salão onde trabalham centenas de funcionários da Orizon. Toda grande conquista é festejada com energéticas badaladas — uma tradição que veio do varejo. Um dos acontecimentos mais celebrados pela equipe foi a adoção do chamado “motor de regras”, o cérebro do sistema de controle. Trata-se de um analisador digital, um grande pente fino capaz de monitorar, em tempo real, qualquer item fora do padrão no processo de autorização de procedimentos médicos.

ESTRUTURA SOFISTICADA

Em vez de apenas transportar os dados da carteirinha do paciente entre o prestador de serviço e o plano de saúde, ele é capaz de intervir instantaneamente no fluxo de dados com o objetivo de captar desvios. Por exemplo: um doppler de carótidas serve para avaliar o fluxo em duas artérias carótidas e em duas artérias vertebrais que levam sangue até o cérebro. Tudo em um único procedimento. No entanto, há clínicas e hospitais que cobram como se quatro exames tivessem sido realizados. O sistema sinaliza que aquilo está fora do padrão e levanta uma bandeira. A investigação detalhada do que aconteceu é tarefa para os funcionários. Ao final dela, a operadora pode decidir não pagar a conta (a chamada glosa) ou até romper o contrato com o prestador.

Em um mundo fascinado pelo potencial do Big Data (a possibilidade de analisar grandes volumes de informação com o objetivo de tomar decisões mais acertadas), a matéria-prima derivada de tantas interações é o maior ativo da empresa criada pela Cielo em parceria com a Bradesco Saúde e a Cassi (a operadora do plano de saúde dos funcionários do Banco do Brasil).

A Orizon tem conseguido captar mais desvios porque investiu em duas frentes: a tecnologia para atuar em tempo real em grandes massas de dados e a contratação de pessoal especializado para trabalhar em células de investigação. Elas são compostas por dezenas de enfermeiros, médicos e farmacêuticos que trabalharam nos departamentos de faturamento dos hospitais. Eles sabem, por exemplo, como os materiais usados em uma cirurgia complexa podem ser lançados em uma conta sem que a maioria das auditorias consiga detectar inclusões indevidas ou itens desnecessários.

– Temos um time altamente qualificado que veio do lado de lá. Essa é uma inteligência tática. Eles entendem como os outros pensam e quais são os incentivos para que as fraudes e os desperdícios ocorram – afirma Martins.

Em outra frente de trabalho investigativo, realizado depois que as contas já foram pagas, é possível apontar quais são os médicos que pedem menos exames, os cirurgiões que oferecem os melhores preços e mantêm os pacientes internados por menos tempo, os hospitais que enviam mais pessoas à UTI – mesmo quando esse encaminhamento é questionável. Assim como as redes sociais, a Orizon usa a teoria dos grafos (ramo da matemática que estuda as relações entre os objetos de um determinado conjunto) para traçar conexões entre os profissionais.

– Com isso, conseguimos descobrir que um médico pede muito mais exames que o normal e está associado a um cirurgião que opera muito mais que o normal e usa materiais muito diferentes do normal – diz Martins.

Por razões contratuais, os relatórios e cruzamentos gerados pela Orizon permanecem em sigilo. A pedido do GLOBO, a empresa concordou em apontar exemplos de desvios detectados recentemente, sem mencionar o nome das empresas envolvidas (veja quadro).

– É difícil afirmar categoricamente que essas práticas sejam fraudes porque seria necessário comprovar que houve má-fé. Elas são, no mínimo, desperdício – diz Marcio Landi, diretor de finanças da empresa.

Veja aibaixo exemplos de desperdícios flagrados pela Orizon durante as checagens de contas médicas:

EXAMES DESNECESSÁRIOS

Ao analisar exames realizados no pronto-socorro de dez hospitais do Estado de São Paulo em 2017, a empresa detectou excesso de avaliações em caráter emergencial – o que encarece os atendimentos. Uma sinusite pode ser diagnosticada por radiografia (R$ 33, em média). Em 18% dos casos, foram realizadas tomografias (R$ 240) para avaliar os seios da face, sem que houvesse indício de gravidade capaz de justificar essa opção.

COBRANÇAS INDEVIDAS

Bomba de infusão é o aparelho usado para infundir remédios na corrente sanguínea com um maior controle sobre o gotejamento. Em mais de 30 mil contas checadas entre janeiro de 2013 e dezembro de 2017, os analistas descobriram que o número de diárias pelo uso do aparelho era superior ao período de internação do paciente. Segundo a empresa, o desperdício chegou a R$ 24 milhões.

ABUSO DE MATERIAL ESPECIAL

Ao analisar 354 cirurgias de quadril realizadas durante o ano de 2015, a empresa detectou que alguns hospitais usavam um material à base de tântalo (metal mais caro que titânio) em 100% das operações. Com isso, as contas ficaram 64% mais caras. O tântalo deve ser usado em 10% das chamadas cirurgias de revisão – quando há dificuldade de integração óssea e o paciente precisa ser reoperado.

Desperdícios na medicina privada elevam o custo da assistência médica

Na guerra entre hospitais e operadoras de planos de saúde, as balas perdidas alcançam os financiadores do sistema. Enquanto os desperdícios ocorridos na medicina privada elevam o custo da assistência médica na folha de pagamento dos empregadores, os beneficiários de planos coletivos ou individuais sofrem com reajustes elevados e danos à saúde.

– Submeter uma pessoa a um procedimento desnecessário é uma fraude gravíssima. É um crime de lesão corporal difícil de tipificar porque sempre há opiniões diferentes. Usar uma agulha de R$ 5 quando outra de R$ 0,50 faz exatamente o mesmo efeito não é fraude, mas é um baita desperdício – afirma José Cechin, diretor-executivo da Federação Nacional de Saúde Suplementar (FenaSaúde).

Para o médico Caio Soares, diretor executivo da multinacional espanhola Advance Medical Group, que presta serviços de segunda opinião médica aos funcionários de empresas como Google, Renault e Nissan, as iniciativas para flagrar desperdícios vão continuar a ser apenas paliativas enquanto os indivíduos não assumirem a responsabilidade de cuidar da própria saúde.

– O sistema foi construído de uma forma completamente paternalista. Delegamos o controle da nossa saúde à operadora ou ao hospital, mas eles estão preocupados com a nossa doença, não com a nossa saúde. Para ter um consultório dentro do hospital, o médico precisa ter produtividade, gerar pedidos de exames, procedimentos e consumo de materiais – ressalta Soares.

A maior fatia dos ganhos dos hospitais ainda é gerada pelos materiais e medicamentos consumidos pelos pacientes. No paulistano Sírio-Libanês, por exemplo, esses itens são responsáveis por 52% das receitas. No entanto, há uma percepção geral de que a forma de remuneração baseada no Pagamento por serviço (chamado de “fee for service”) está se esgotando porque ela estimula a doença – não a saúde. Segundo essa lógica, quanto mais a situação do paciente se complica, melhor para o hospital e pior para o plano de saúde.

– É verdade que a receita do hospital é baseada nesse modelo, mas ele é insustentável. Pior do que eu não ter dinheiro é quem me paga não ter dinheiro – diz Fernando Torelly, diretor-financeiro do Hospital Sírio-Libanês.

Com clareza, Torelly descreve o atual cenário da saúde suplementar no Brasil: o médico está insatisfeito com os honorários que recebe das operadoras. O convênio está insatisfeito com a sinistralidade elevada. O empregador está insatisfeito porque paga demais pelo plano de saúde. O hospital está insatisfeito porque as tabelas pagas pelos planos de saúde são ruins. O cliente está insatisfeito porque há demora no pronto-socorro e ele não consegue ter um bom atendimento.

– A carteirinha do plano de saúde virou o passaporte da doença. O paciente faz uma tomografia em uma semana e, na outra semana, faz de novo. Pega radiação em dobro e os gastos aumentam – diz Torelly.

Uma das formas de reduzir os desperdícios é questionar a pertinência do que é feito. Inspirado pelos centros de atenção primária de países como o Reino Unido, o Sírio decidiu criar ambulatórios com médicos de família dentro das empresas. A primeira unidade foi instalada no Banco Votorantim, em São Paulo. Até o final do ano, mais dez serão inauguradas em outras companhias na cidade. Como cerca de 80% dos casos atendidos por médicos de família são resolvidos sem a necessidade de outros especialistas ou atendimento em pronto-socorro hospitalar, os custos diminuem para os empregadores.

– Somos um hospital que tem toda a sua receita vinda da doença. Agora estamos entrando em um novo modelo de negócios focado na saúde.

Nessa aposta, a remuneração foge da lógica tradicional do ‘fee for service”. O empregador paga um valor fixo para que o hospital cuide da saúde de cada trabalhador. E, em alguns contratos, há um adicional caso a instituição contribua para melhorar os indicadores de saúde daquele grupo.

Ao se instalar nas empresas e identificar casos que realmente necessitam de atendimento especializado, a instituição vai gerar demanda para seus centros de diagnóstico e para tratamentos mais dispendiosos como os de oncologia, por exemplo. Ou seja: o hospital pode receber menos por paciente, mas vai ganhar na escala de atendimento.

A mudança está acontecendo também na relação com as operadoras. Ainda neste ano, o Sírio vai inaugurar em Brasília um hospital que será remunerado pelos convênios de acordo com os desfechos clínicos alcançados pelo paciente – e não mais por volume de procedimentos. Fatores como tempo e processo de recuperação dos doentes, resultado das cirurgias, entre outros, poderão ser levados em consideração no acordo sobre os pagamentos.

Crédito: Cristiane Segatto/O Globo – disponível na internet 18/06/2018 

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