Por que Getúlio Vargas criou o Ministério do Trabalho, que Bolsonaro quer extinguir

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Hoje, esse ministério é responsável por elaborar diretrizes para geração de emprego e renda, além de emitir documentos e fiscalizar as relações trabalhistas no Brasil, investigando denúncias de trabalho escravo e infantil e o cumprimento da legislação por parte das empresas. Mas sua criação teve outro propósito.

Quando surgiu, em 26 de novembro de 1930, a ideia era que a pasta fosse responsável por intermediar as relações entre trabalhadores e empresários, até então sob a responsabilidade do Ministério da Agricultura.

“Era uma política alinhada com o que se pensava então sobre o papel do Estado como um mediador das relações entre grupos e indivíduos”, explica Renan Pieri, professor de Economia da Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP) e do Insper.

“Vargas dá um golpe de mestre e assume a dianteira deste processo, estatizando estas relações.”

A criação do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio foi uma das primeiras iniciativas de Vargas ao assumir o governo por meio de um golpe, após a Revolução de 1930, que culminou com a deposição do então presidente Washington Luís (1869-1957) e o impedimento de que seu sucessor, Júlio Prestes (1882-1946), assumisse o cargo, dando fim à República Velha.

A pasta foi batizada de “ministério da Revolução” por Lindolfo Collor (1890-1942), seu primeiro titular e avô do ex-presidente Fernando Collor de Melo.

“Essa revolução se refere a uma ruptura com a velha oligarquia agrária por meio da criação de um Estado positivista, a instauração de um modelo legal e burocrático que passa a organizar as relações sociais por meio do monopólio da força através de um sistema normativo”, diz Marcelo Nerling, professor do curso de Gestão de Políticas Públicas da Universidade de São Paulo (USP).

“O Estado passa a ser o protagonista, baseado na crença de que é possível mudar a realidade social por meio de normas criadas de cima para baixo.”

Nerling explica que não havia na época no Brasil um Estado como conhecemos hoje. “A administração pública só começa a se organizar a partir da década de 1930. Até então, as principais forças do país estavam concentradas nos municípios, comandados por coronéis. Era um modelo descentralizado e patrimonialista, em que não se separava o público do privado.”

Qual foi o impacto da criação do Ministério do Trabalho?

Uma das primeiras medidas do novo ministério neste sentido foi criar uma nova regulamentação da atividade sindical, com critérios para a criação de sindicatos.

Entre as novas regras, estava haver uma única representação para profissionais de uma categoria dentro de uma mesma região, um mínimo de 30 membros, com ao menos dois terços de brasileiros, veto a qualquer manifestação política e ideológica, punições a empresários que impedissem a sindicalização dos trabalhadores e a aprovação da entidade pelo ministério – até então, não se dependia de autorização do governo.

O ministro Collor declarava na época que enxergava os sindicatos como uma forma de mediar os conflitos e tinha como objetivo trazer estas organizações para a órbita do novo ministério para que passassem a ser controladas pelo Estado.

“Vargas queria que os sindicatos se tornassem satélites do governo, politizando as relações entre empresas e trabalhadores”, diz Pieri.

Na época, o Brasil ainda era um país extremamente rural, mas havia uma indústria nascente, que ganha força em reação ao crescente impedimento de importar produtos da Europa a partir da Primeira Guerra Mundial.

Ao mesmo tempo, a abolição da escravatura lançou um grande contigente de mão de obra ao mercado enquanto houve simultaneamente uma chegada massiva de imigrantes a partir do fim do século 19, facilitada pela Constituição de 1891, que, ao mesmo tempo, consagrou o direito de livre associação.

Surge, assim, uma classe de trabalhadores urbanos e de profissionais liberais, e se formam os primeiros movimentos sindicais, que foram reconhecidos e regulamentados em lei ao longo da primeira década do século 20, primeiro para os trabalhadores agrícolas e, depois, para os urbanos.

“Com a formação de uma economia de mercado, foi natural a formação de sindicatos especializados para representar os trabalhadores”, diz Pieri.

Ao mesmo tempo, nas questões relativas a direitos, o regime de Vargas buscava atender reivindicações históricas dos trabalhadores, alinhado com a ideia da outorga dos direitos trabalhistas pelo Estado.

“Vargas havia acompanhado o que ocorreu na Rússia a partir de 1917 com a revolução, quando, em meio ao conflito entre capital e trabalho, o proletariado assumiu o poder. Então, ele, que era um capitalista, sabia aonde isso poderia acabar”, diz Nerling.

“Vargas sabia que, se os trabalhadores fizessem greve atrás de greve para reivindicar direitos, poderiam quebrar o capital. Ele opta por chamar para si a responsabilidade de regular estas relações, cria leis que vinculam os cidadãos. Entrega os anéis para não perder os dedos.”

O que mudou a cada Constituição?

O ministério teve sob Vargas uma atividade legislativa intensa. Foram lançadas medidas importantes, como a criação da carteira profissional (precursora da atual carteira de trabalho e previdência social), a regulamentação do trabalho feminino e infantil e o estabelecimento de juntas de conciliação de conflitos entre patrões e empregados, que seria um embrião da Justiça do Trabalho, criada pela Constituição de 1934 e que passaria a atuar a partir de 1941.

Homem segurando carteira de trabalho
Ministério criou a carteira profissional, precursora da atual carteira de trabalho e previdência social. Direito de imagem CAMILA DOMINGUES/ PALÁCIO PIRATINI

Também se destaca a criação dos Institutos de Aposentadoria e Pensões, que mudaram o sistema previdenciário do país. Ainda seriam instituídos o salário mínimo, a jornada de trabalho de oito horas e o descanso semanal, as férias remuneradas e a indenização por dispensa sem justa causa.

Uma das iniciativas de maior peso foi a instituição em 1943 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), que unificou as leis trabalhistas existentes até então. O dia em que recebeu a sanção presidencial, 1º de maio, passaria a ser o Dia do Trabalho, feriado celebrado até hoje em todo o país.

As décadas após a primeira era Vargas foram marcadas por diversas mudanças nas leis e direitos trabalhistas.

Em 1946, a Assembleia Constituinte convocada após o fim da ditadura, acrescentou novos pontos como o direito à greve e o descanso remunerado aos domingos e feriados.

O Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) surge em 1966, já durante o regime militar, para proteger o trabalhador demitido sem justa causa com uma conta aberta em seu nome, vinculada a seu contrato de trabalho, na qual são depositados mensalmente o correspondente a 8% do salário.

A Constituição de 1967 instituiu a aplicação da legislação trabalhista a empregados temporários, a proibição de greve em serviços públicos e atividades essenciais e o direito à participação do trabalhador no lucro das empresas, entre outras medidas.

A partir da Constituição de 1988, passam a ser previstos medidas de proteção contra demissões sem justa causa, o piso salarial, a licença maternidade e paternidade, o veto à redução do salário, a limitação da jornada de trabalho a oito horas diárias e 44 horas semanais e proibição de qualquer tipo de discriminação quanto a salário e critérios de admissão do trabalhador portador de deficiência. Também foi criado o Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), destinado em parte ao custeio do Programa de Seguro Desemprego.

“São políticas criadas e geridas dentro do Ministério do Trabalho, por ele oferecer um corpo técnico e orçamento dentro do governo para discutir essas relações, mas que têm muito mais a ver com o ambiente político de cada época, a pressão popular por mudanças e cada governo do que com o órgão em si”, avalia Pieri.

O economista destaca que a partir dos anos 1990, a pasta assume um papel cada vez mais de fiscalização do cumprimento das normas e leis trabalhistas e na gestão de recursos como os do FGTS e do FAT.

E se o ministério acabar?

Se sua extinção se confirmar, não será a primeira vez que o Ministério do Trabalho será fundido com outras áreas.

Ao surgir em 1930, a pasta também era responsável por indústria e comércio. Em 1960, passa ser Ministério do Trabalho e Previdência Social. Torna-se puramente Ministério do Trabalho em 1974. Em 1990, volta a incorporar a Previdência.

Jair BolsonaroDireito de imagemREUTERS
Image captionPresidente eleito anunciou a extinção do Ministério do Trabalho

Dois anos depois, passa a ser o Ministério do Trabalho e da Administração Federal e, em 1999, do Trabalho e Emprego. Em 2015, vira mais uma vez Ministério do Trabalho e Previdência Social, até, em 2016, tornar-se novamente apenas Ministério do Trabalho.

Ao tratar do tema, Bolsonaro já declarou em entrevistas que o trabalhador terá de”decidir entre menos direito e emprego ou todos os direitos e desemprego”. “Os encargos trabalhistas fazem com que se tenha aproximadamente 50 milhões de trabalhadores brasileiros na informalidade”, disse à rádio Jovem Pan.

Pieri avalia que, com o anúncio do fim da pasta, surge uma “incerteza jurídica” sobre quem exercerá os papéis que hoje cabem ao ministério. “Isso é uma questão mais importante do que se terá ou não um status de ministério, que é algo secundário.”

Nerling discorda e acredita que a transformação da pasta em uma secretaria sinaliza quais serão as prioridades do novo governo.

“Isso representa uma mudança de paradigma. Quando você dá a uma área status de ministério, diz que as políticas públicas nesta área serão priorizadas. Em um governo, a tomada de decisões ocorre em camadas, e a alteração de status precariza o cumprimento das competências que hoje cabem ao ministério, retira força e abala a eficácia de suas políticas”, diz Nerling.

“Ao dizer que se deve escolher entre trabalho e direitos, o presidente eleito diz que os direitos são um problema, mas isso só é um problema para o capital. Se antes o Estado se posicionava para garantir os direitos dos trabalhadores, agora, ele pesa a mão para o outro lado e passa a priorizar o capital.”

Por sua vez, Pieri destaca que, com a Reforma Trabalhista, passou a prevalecer sobre as leis trabalhistas a negociação entre sindicatos e empresas.

“O fim do ministério pode sinalizar um novo tempo em que o Estado não mais intermedia a relação entre capital e trabalho. Isso teria no futuro o efeito de despolitizar os sindicatos”, diz Pieri.

“Será necessário entender o que o presidente quis dizer com o fim do ministério. Significa um relaxamento da fiscalização e que o governo não está mais pensando nestes problemas ou apenas uma mudança burocrática? Bolsonaro não pode dar uma canetada e tirar direitos, mas temos de debater se alguns benefícios previstos na lei de fato beneficiam o trabalhador.”

Para Senador Paulo Paim, fim do Ministério do Trabalho é um retrocesso

Anúncio da pulverização da pasta é rechaçado por representantes dos trabalhadores. Procurador-chefe alerta para precarização de serviços

Rio – O anúncio de que o Ministério do Trabalho vai acabar, feito essa semana pelo presidente eleito Jair Bolsonaro (PSL), recebeu severas críticas de políticos e especialistas. De acordo com personalidades ouvidas pelo DIA, “eventual fusão implicaria na limitação ou falta de autonomia de pasta essencial para que o Brasil supere a crise por seu papel preponderante na geração de emprego e renda”. Advertiram ainda que o papel de fiscalização das relações de trabalho, garantia de direitos de trabalhadores, e serviços nos postos da pasta ficarão comprometidos. E defendem que, ao invés de pulverizar ou extinguir a pasta, o governo eleito deveria fortalecer a atuação do órgão.

“Acabar com o Ministério do Trabalho é um retrocesso sem precedentes. Este governo eleito é a continuidade do anterior, e quer fazer com o Trabalho como foi feito com o Ministério da Previdência. Ou seja, desarticulou as políticas sociais e todo o trabalho desenvolvido pela pasta”, critica o senador reeleito Paulo Paim (PT-RS). “O fim do ministério vai, inclusive, dificultar a fiscalização para coibir o trabalho escravo”, adverte o senador.

“Enxugar a máquina pública às custas do trabalhador é dar poder a um Estado neoliberal, em que o direito ao trabalho cada vez mais se torna desnecessário como proteção ao cidadão e à sua família”, alerta José Gozze, presidente da Federação das Entidades dos Servidores Públicos de São Paulo e vice-presidente da Pública Central do Servidor.

“Um governo disposto a mudar a situação do Brasil tem a obrigação de começar exatamente por aqueles que fazem o país crescer, cuidando de seus direitos universais, e aqui, não cabe excluir um dos ministérios mais importantes de proteção ao trabalhador, enquanto outros protegem as grandes corporações”, critica Gozze.

Ao que o senador Paim complementa: “Foi este modelo de governo que parte dos brasileiros escolheu. Agora todos terão que arcar com as consequências de um Estado anti-social e privatista, onde os direitos e as conquistas dos trabalhadores não são levados em conta”.

“O fim de um Ministério do Trabalho independente é preocupante. Transmite uma mensagem de que o futuro governo não dá a devida importância para as relações de trabalho e seus efeitos”, adverte o advogado Jorge Gonzaga Matsumoto, do escritório Bichara Advogados.

Petrus Elesbão, presidente Sindicato dos Servidores do Congresso Nacional (Sindilegis) e Tribunal de Contas da União (TCU), chama atenção para a manutenção de direitos. “Seja qual for a mudança que o Ministério do Trabalho venha a passar, os direitos dos trabalhadores e as boas relações de trabalho não podem ser afetadas. O que esperamos é o fortalecimento e a modernização da instituição, além da desburocratização das leis, e não a redução de seu poder de atuação a uma pasta qualquer. As relações sindicais e de trabalho em longo prazo também não podem ser prejudicadas. Não podemos retroceder quando o assunto é direito dos trabalhadores”, afirma.

Serviços dos postos comprometidos

Para o procurador-chefe do Ministério Público do Trabalho no Rio de Janeiro, Fabio Goulart Villela, serviços como Vagas de Emprego Sine e Portal Mais Emprego, Sistema de Registro de Empresas de Trabalho Temporário (Sirett); emissão da Carteira de Trabalho e Previdência Social (CTPS), Seguro-desemprego, e o e-Social ficarão comprometidos, uma vez que serão pulverizados em diferentes órgãos.

“O fim da pasta irá dificultar a fiscalização dos direitos dos trabalhadores, já bastante debilitados pela recente Reforma Trabalhista. Restarão, ainda, prejudicados o combate ao trabalho escravo, ao trabalho infantil e à informalidade, e a fiscalização da segurança e saúde no trabalho. Tudo isso, certamente, trará sérias e graves consequências econômicas e sociais para o país”, alerta Fabio Villela.

A questão dos acidentes de trabalho, foram 700 mil só em 2017, e de resgate de trabalhadores em condições análogas à escravidão apontam para a necessidade de fortalecer o ministério e não de acabar com a pasta. O alerta é de Rudinei Marques, presidente do Fórum Nacional das Carreiras de Estado (Fonacate) e diretor da Pública Central do Servidor. “É preciso ampliar sua atuação, nunca o seu enfraquecimento. Por isso, rogamos ao governo eleito que encontre uma solução não precarize ainda mais a situação dos trabalhadores brasileiros”, diz Marques.

“Desde que foi criado, há 80 anos, o Ministério do Trabalho sempre teve uma importância sem precedentes para a organização, modernização e fiscalização das relações de trabalho, servindo como poder moderador para o equilíbrio entre os interesses empresariais e dos trabalhadores. Assim, em um primeiro momento, a sua possível extinção causa um certo desconforto e é motivo de preocupação para muitos”, diz Fabio Chong, do escritório L.O. Baptista Advogados.

Mas ele acredita que a potencial mudança pode não ser de todo ruim. “O alto índice de desemprego que assola o país pode ser visto como um dos fatores que demonstram a inércia que, há anos, atinge o Ministério do Trabalho, que não é capaz de desenvolver políticas e iniciativas que fomentem a criação de novos postos de trabalho”, avalia.

‘Direitos como produto de mercado’

A similaridade entre a pulverização do Ministério da Previdência e os planos para o Trabalho foi citada por especialistas. “A extinção do Ministério do Trabalho vem na mesma orientação da extinção do Ministério da Previdência. Ou seja torna os direitos do trabalhadores e o servidores um produto de mercado”, dispara Márcio Costa, diretor Nacional da Pública Central do Servidor e servidor da Câmara dos Deputados.

Para Adriane Bramante, presidente do Instituto Brasileiro de Direito Previdenciário (IBDP), deixar a pasta a cargo de outras pessoas é cuidar de forma superficial e generalizada: “É o mesmo que ter um especialista em Ortopedia e a medicina acabar com eles e colocar os pacientes no clínico geral. É a mesma coisa? Não.”

O fim do ministério pode agravar o cenário de afrontas aos direitos dos trabalhadores, segundo Eder Fernando, presidente do Sindicato dos Servidores da Polícia Federal (SipecPF). “Recebemos a notícia com bastante apreensão. Como sindicalistas, estamos habituados a ver direitos trabalhistas serem desrespeitados e os empregadores buscando brechas na legislação. São práticas que ocorrem até mesmo dentro da Administração Pública”, diz.

“Uma nova formatação deve ser construída, ao invés de sua extinção. A recente operação Registro Espúrio, da Polícia Federal, desnudou um fraudulento esquema de concessão de registros sindicais, com altos valores de corrupção. Se esse setor apresenta problemas, pode e deve ser modificado. Mas a totalidade do Ministério do Trabalho, aí incluindo competentes servidores, não pode pagar tão caro pela parte corrupta e apodrecida”, afirma Luiz Antonio Baudens, presidente da Fenapef. “Enxergamos o Ministério do Trabalho como um importante fiscal”, complementa Eder Fernando.

Crédito:  Martha Imenes/O Dia – disponível na internet 12/11/2018

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