De Bem com a Vida: Como a falta de medicamento à base de BCG coloca milhares de pacientes com câncer em risco no Brasil

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Faltava apenas uma aplicação de Imuno BCG para o professor universitário Jorge Moysés Netto, de 73 anos, finalizar a primeira fase de seu tratamento contra um câncer na bexiga.

Mas há quase um mês, ele não encontra mais a dose que falta desta imunoterapia — que tem a mesma base, o Bacilo Calmette-Guérin, de sua “prima” mais conhecida, a vacina BCG, usada para prevenir a tuberculose.

O caso de Netto não é único. Uma paralisação que já três dura anos na única fábrica no Brasil que produz os medicamentos à base de BCG tem aumentado os riscos de piora em milhares de pacientes com câncer de bexiga que necessitam do produto.

A aplicação intravesical (diretamente na bexiga, via sonda) da Imuno BCG é uma das principais etapas no rol de tratamentos deste tipo de tumor.

O professor conta que já havia feito cinco das seis aplicações semanais do remédio, procedimento padrão para evitar a recorrência do tumor após sua retirada.

Ele tem procurado a imunoterapia em cidades do Estado da Bahia e de São Paulo, sem sucesso. “Me informaram que ele só voltará a ser distribuído no primeiro trimestre do ano que vem”, diz.

Aplicada pela primeira vez em bebês idealmente ainda na maternidade, a vacina BCG também sofreu irregularidades no abastecimento em 2019, conforme mostrou a BBC News Brasil em julho. Mas, neste caso, parte da demanda é suprida pela importação de doses da Índia. Segundo o Ministério da Saúde, a situação da vacina BCG foi regularizada em agosto.

No Brasil, os medicamentos à base de BCG são produzidos exclusivamente pela Fundação Ataulpho de Paiva (FAP), laboratório carioca que existe desde 1900.

Em dezembro de 2016, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) interditou os trabalhos da fundação, o que acabou paralisando sua produção.

O professor Jorge Moysés Netto, 73, paralisou seu tratamento de câncer na bexiga
O professor universitário Jorge Moysés Netto, 73, paralisou seu tratamento de câncer na bexiga por falta de remédio. Direito de imagem ARQUIVO PESSOAL

Segundo a Anvisa, a interdição à FAP ocorreu porque a entidade “não cumpria os requisitos técnicos de boas práticas de produção de medicamentos”. Questionada pela BBC News Brasil, a agência não explicou quais seriam esses pontos não cumpridos pela Ataulpho de Paiva.

A FAP também não detalhou o que levou a agência sanitária a interditá-la, nem comentou a intervenção do órgão, mas afirmou que planeja retomar a produção de Imuno BCG no primeiro trimestre de 2020.

‘Um total descaso’

Quase três anos depois da interdição, a situação se agravou no segundo semestre deste ano, pois os estoques de Imuno BCG praticamente ficaram zerados no Sistema Único de Saúde (SUS) e na iniciativa privada. Achar o medicamento virou tarefa quase impossível para os pacientes com câncer, para quem o tratamento integral e gratuito é, em regra, garantido pelo SUS.

A aquisição da Imuno BCG pelo sistema público não é centralizada — os hospitais credenciados fazem a compra do material e depois são ressarcidos pelo Ministério da Saúde. A pasta garante que há medicamentos alternativos a esta imunoterapia, como a doxorrubicina, a mitomicina C e a gemcitabina, mas médicos dizem que eles não têm resultados tão eficazes quanto a Imuno BCG.

A fisioterapeuta Cíntia Cardoso Borba, 41, precisou recorrer a outros pacientes para conseguir que seu pai, o aposentado Eli Borba, 80, terminasse a primeira parte do tratamento do câncer — as seis aplicações semanais do remédio.

“Liguei em distribuidores em todos os Estados do país, mas não encontrei a Imuno BCG. Então entrei em um grupo de pacientes e consegui comprar de uma pessoa que também tinha câncer e guardou dois frascos”, conta ela, que vive no Rio de Janeiro. No mercado, cada ampola do remédio custa por volta de R$ 700.

Porém, o aposentado ainda precisa usar o medicamento por pelo menos três anos, com novas aplicações mensais. Por ora, seu tratamento está paralisado pela falta da imunoterapia no mercado.

“Meu pai descobriu o câncer em estágio inicial. E, segundo os médicos, o tratamento com BCG tem grandes chances de melhora. É uma situação desesperadora não encontrar o remédio, um total descaso com as pessoas com a doença”, diz Cíntia.

O aposentado Eli Borba, 80, que tem câncer na bexiga, e sua esposa Elci Cardoso Borba
O aposentado Eli Borba, 80, que tem câncer na bexiga, e sua esposa Elci Cardoso Borba. Direito de imagem ARQUIVO PESSOAL

Já o professor Jorge Moysés Netto, que vive em Itabuna, na Bahia, corre o risco de precisar remover a bexiga por causa da interrupção do tratamento com a Imuno BCG, conhecida também como Onco BCG.

“Recentemente, descobri outro tumor na próstata. Se eu não usar a BCG na bexiga, vou precisar fazer quimioterapia para combater o outro tumor, em vez de radioterapia. Meu médico disse que a quimio pode danificar a bexiga e eu precisaria retirá-la, e usar uma sonda”, diz.

Riscos para as vidas dos pacientes

O Instituto Nacional do Câncer (Inca) estima que houve cerca de 9.500 novos casos de câncer de bexiga em 2018. Porém, como o tratamento com Imuno BCG normalmente dura três anos, é possível que um número maior de pacientes tenha sido afetado pela paralisação da produção do remédio.

De acordo com o médico Ari Adamy Junior, do departamento de uro-oncologia da Sociedade Brasileira de Urologia, a Imuno BCG é utilizada na maioria dos casos da doença, quando o tumor é dito superficial — por não ter atingido camadas musculares do órgão. A aplicação da droga é chamada de um procedimento adjuvante, ou seja, é posterior à intervenção principal, que é a retirada do tumor.

“BCG evita que a lesão retorne ou se infiltre em camadas mais profundas da bexiga”, afirma o médico.

Acredita-se que a imunização com a bactéria atenuada estimule as células do sistema imunológico, tornando-as mais ativas no revestimento da bexiga — evitando, assim, que células cancerígenas se expandam.

Segundo Adamy Junior, a interrupção do tratamento com BCG, como tem ocorrido com pacientes dependentes do medicamento, pode agravar a doença.

“Quando não se faz o tratamento da maneira adequada, existe um risco de o tumor se infiltrar nessas camadas musculares da bexiga. Isso pode causar uma necessidade de retirada da bexiga ou uso de quimioterapia, que é algo mais invasivo e tem uma série de efeitos colaterais.”

O médico afirma que, nos casos em que o tumor não invade as camadas musculares, 70% dos pacientes têm uma sobrevida de cinco anos — ou seja, eles não morrem por causa do câncer após cinco anos do diagnóstico. Já no tipo mais agressivo do câncer, apenas 5% dos pacientes sobrevivem mais cinco anos.

Homem de jaleco em sua mesa, perto de equipamentos de uso médico, aponta para miniatura simulando uma bexiga
Médicos apontam que o tratamento com Imuno BCG é uma etapa fundamental após a retirada do tumor na bexiga. Direito de imagem GETTY IMAGES

Daniel Fernandes Saragiotto, oncologista da Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica (SBPC), endossa a centralidade da Imuno BCG para o tratamento do câncer de bexiga.

“A Onco BCG é a terapia padrão para tratamento adjuvante de tumores superficiais invasivos de bexiga”, escreveu à BBC News Brasil, por e-mail. “Na ausência da BCG, temos que utilizar muitas vezes outras opções mais agressivas, como o uso de quimioterapia intravesical com gemcitabina ou mitomicina-C. Temos dado preferência à gemcitabina, pois esta droga é facilmente disponível no Brasil.”

Em nota enviada à BBC News Brasil, a diretoria da Fundação Ataulpho de Paiva, que tem o monopólio da produção do remédio no Brasil, afirmou que “momentaneamente, por motivos de atendimento de exigências da Anvisa, deixou não só de produzir como também de receber os recursos resultantes da venda dos produtos”.

“Recursos estes que não só mantêm nossas atividades industriais bem como subvencionam nossas atividades na área social. Esta descontinuidade acarreta atraso nas obrigações, pois não temos nenhuma subvenção de governo em qualquer esfera.”

“Nossa previsão de retomada das atividades é a partir do primeiro trimestre de 2020, disponibilizando assim os nossos produtos Vacina BCG ID e Imuno BCG 40mg, para atendimento a todos os pacientes no território nacional, garantindo assim a continuidade de nossa entidade centenária.”

‘Parque industrial mundial de vacinas não está dando conta’

Adamy Junior destaca que não só o Brasil, mas o “mundo todo” tem problemas com abastecimento de imunizações à base da BCG.

“A produção é feita com base em um bacilo (um tipo de bactéria), que precisa de um tempo de cultura. Não é como um medicamento sintético que produz-se o quanto quiser. E, financeiramente, não é uma produção tão vantajosa para a maior parte dos laboratórios. Então, há um limite na produção que não dá conta da demanda”, explica o médico.

Em entrevista à BBC News Brasil em julho, Renato Kfouri, presidente do departamento Imunizações da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), também havia apontado para a dimensão global do problema.

“O desabastecimento é uma situação constante, não só para a BCG, e nem apenas no Brasil, mas no mundo. O lado bom é que o consumo de vacinas no planeta vem aumentando, e a exigência por qualidade e segurança também. Mas isso não vem acompanhado na mesma velocidade pelo parque industrial mundial”, explicou, destacando a complexidade da produção e transporte de vacinas, que envolve fiscalização alfandegária, inspeções sanitárias, certificações, além do transporte e armazenamento.

“Claro que, no Brasil, algumas etapas poderiam ser mais rápidas, mas isso certamente não resolveria todas as questões, pois há um problema maior nas condições de produção”, diz Kfouri, apontando para a importância da transferência de tecnologia e da produção nacional de doses para chegar mais perto de uma autossuficiência.

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