De Bem com a Vida: “Se beber, não nade” a perigosa ligação entre álcool e mortes por afogamento

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Um dia de verão, um copo de cerveja ou drink refrescante para acompanhar, um mergulho na água do mar ou do rio.

Pode não parecer, mas há um erro aí.

Quem diz são duas organizações da área da saúde, o Centro de Informações sobre Saúde e Álcool (CISA) e a Sociedade Brasileira de Salvamento Aquático (Sobrasa), que estão lançando uma campanha para alertar sobre o papel do álcool nos afogamentos – que matam mais de uma dezena de pessoas por dia no Brasil.

Na verdade, os afogamentos, para os quais o álcool é considerado um importante fator de risco, são um tema que preocupa em todo o mundo. De acordo com a estimativa mais recente e consolidada da Organização Mundial da Saúde (OMS), de 2014, cerca de 370 mil pessoas morrem afogadas no planeta anualmente.

Em números absolutos, o Brasil aparece neste relatório da OMS como o terceiro país com mais mortes por afogamentos (6.487, com ano base em 2011), atrás de Rússia (11.981, em 2010) e Japão (8.999, em 2011).

Quando considerado o valor proporcional ao tamanho da população, que no Brasil foi de 3,3 mortes por 100 mil habitantes, o país se afasta das primeiras colocações e da média mundial (5,2). Mas, ainda assim, fica acima do panorama de países ricos (2,3 por 100 mil habitantes) e da região das Américas (3 por 100 mil habitantes).

Quem trabalha com o tema diz que estes números provavelmente são subestimados, pois há muitas mortes por afogamentos que não são registradas como tal – tanto no Brasil quanto no mundo. E há outro desafio para os pesquisadores: quantificar o papel do álcool nestes incidentes.

Enquanto as pesquisas sobre o papel do álcool nos afogamentos se aprimoram, quem trabalha na linha de frente – com os pés na areia, por exemplo – vê nesta associação uma velha conhecida.

“A gente sabe que o álcool tem relação direta com afogamento. Estudos têm mostrado que ele pode variar como fator determinante em 15 a 60% dos óbitos”, diz David Szpilman, diretor médico da Sobrasa e que trabalhou por décadas como tenente-coronel do Corpo de Bombeiros no Rio de Janeiro, período no qual prestou diversos atendimentos a pessoas afogadas em praias.

“O consumo de álcool na areia é um sinal que já deixa os guarda-vidas em alerta. Tem um comportamento clássico, da pessoa que vai à praia não para entrar na água, e sim para beber. Em algum momento ela vai querer entrar na água e não consegue ver que está sob risco, mesmo aquelas que sabem nadar”, diz Szpilman.

Bandeira vermelha fincada em praia no Rio de Janeiro dizendo: 'Perigo, correnteza - Você pode ser arrastado e se afogar'
Álcool influencia nas capacidades física e mental em lidar com riscos como correntezas. Direito de imagem GETTY IMAGES

A campanha, inclusive, recomenda que quem for nadar não beba nada: “Se beber, não nade”.

“Já temos hoje uma cultura de não misturar álcool e direção, mas a associação álcool e lazer ainda existe. É algo que ainda se vê muito nos barcos, por exemplo. E vemos também diferenças de lugar para lugar. Onde tem mais turismo pode haver maior consumo de álcool, que faz parte da proposta de se divertir. Tende a ser diferente de cidades em que ir à praia já faz mais parte da rotina”, exemplifica Szpilman.

Mais de 15 afogamentos fatais por dia no Brasil

A partir de dados do Ministério da Saúde, a Sobrasa estima que, em 2017, 5.692 pessoas morreram afogadas no Brasil, uma taxa de 2,7 por 100 mil habitantes (ao longo das décadas, os números absolutos e relativos de afogamentos fatais no Brasil têm diminuído). São cerca de 15 mortes por dia no país.

Os meses de novembro a fevereiro, portanto incluindo o verão, concentram 44% dos casos. Mais de 65% dos óbitos acontecem nos finais de semana e feriados, o que vai ao encontro da associação entre lazer, álcool e afogamentos.

As praias, no entanto, concentraram apenas 15% óbitos em 2017. A maior parte, 75% dos incidentes fatais, aconteceu em lugares de água doce. E é o Norte a região brasileira com o maior número relativo de casos (5,1 por 100 mil habitantes), seguido pelo Nordeste (3,1); Centro-Oeste (2,8); Sul (2,7); Sudeste (1,98).

Essa distribuição geográfica indica também que as mortes podem ocorrer não só em momentos de lazer, mas também em atividades rotineiras, como de trabalho e transporte.

“Possivelmente, o litoral tem uma segurança maior, por ter mais agentes capacitados supervisionando as pessoas”, explica Szpilman.

“Cada ambiente aquático exige uma competência aquática diferente: não é só saber nadar, mas conhecer o ambiente que se está entrando. E o álcool afeta essa capacidade de avaliação, inclusive para quem sabe nadar”, diz o diretor da Sobrasa. “Os rios, por exemplo, podem aparentar serem lugares tranquilos para mergulhar, mas além da correnteza, têm obstáculos como lodo, galhos, pedras e desníveis rápidos.”

O psiquiatra Arthur Guerra, presidente executivo do Centro de Informações sobre Saúde e Álcool (CISA), aponta que uma dose já é capaz de levar a alterações psicológicas e fisiológicas na pessoa alcoolizada, por isso reforça a recomendação “se beber, não nade”.

O site do CISA traz uma tabela relcionando níveis de concentração de álcool a certas alterações – com 0,01 a 0,05g de álcool por 100 ml de sangue, por exemplo, várias funções do sistema nervoso já passam por alterações, além de aumento do ritmo cardíaco e respiratório.

“Claro que há fatores que influenciam neste impacto do álcool, como se a pessoa se alimentou antes, seu peso, altura e etc”, explicou à BBC News Brasil por telefone.

“O álcool inibe a censura, fazendo a pesoa se sentir mais confiante e eufórica; mas também deixa a pessoa mais lentificada, com menos relfexos. Imagine a cena onde uma pessoa está alcoolizada e enfrenta uma correnteza, ondas fortes. É como uma ‘tempestade perfeita’.”

Duas pessoas de costas sentadas em pedras, sobre as quais passa um rio em meio a floresta
Em 2017, maior parte dos afogamentos no Brasil aconteceu em locais de água doce. Direito de imagem GETTY IMAGES

Há ainda a preocupação com o efeito negativo do álcool na supervisão de crianças, um grupo de risco importantíssimo nos afogamentos.

No Brasil, a Sobrasa destaca que afogamentos são a principal causa de morte acidental de crianças com idades entre um e quatro anos, conforme mostrou a BBC News Brasil no ano passado.

“Fisiologicamente, o problema do afogamento é a aspiração de líquido que vai para o pulmão e atrapalha as trocas gasosas. Há uma baixa do oxigênio que pode levar a uma parada respiratória e depois cardíaca. Isso pode acontecer em um minuto e meio de afogamento, é um processo muito rápido”, explica David Szpilman.

A OMS também destaca, no relatório Evitando Uma Das Maiores Causas de Morte, que quando uma pessoa começa a se afogar o “desfecho é quase sempre fatal”. “Diferente de outros ferimentos, a sobrevivência (a um afogamento) é quase exclusivamente determinada na cena do incidente, e depende de dois fatores cruciais: quão rápido a pessoa é tirada da água e quão rapidamente o procedimento de ressuscitação adequado é feito.”

Álcool como indicador fundamental

Normalmente, pesquisas que buscaram detalhar o papel do álcool nos afogamentos recorreram a atestados de óbitos, autópsias e, por vezes, inquéritos policiais. Costumam ficar de fora dados sobre afogamentos que não levaram à morte; aqueles intencionais, como suicídios e homicídios; e os que são resultado de enchentes ou transportes aquáticos.

Austrália, Canadá e Nova Zelândia têm as melhores bases de dados no mundo sobre afogamentos, e foi a partir destes países que foram publicados, em junho, resultados de uma das pesquisas mais recentes sobre o assunto.

A partir de dados de janeiro de 2005 a dezembro de 2014, os autores do artigo publicado no periódico BMC Public Health relacionaram o álcool a 36% dos afogamentos fatais no Canadá; 25,8% na Austrália; e 16,4% na Nova Zelândia. Drogas em geral também foram dectectadas em 24% das mortes no Canadá; 27% na Austrália; e 2,2% na Nova Zelândia.

Afirmando que os afogamentos são “causas de mortes evitáveis e de grandes dimensões” no mundo, mas um tema ao qual se dedica pouca atenção, os autores desse estudo sugerem que os países recolham um conjunto de dados básicos sobre: idade, sexo, localização, atividade, data, causa primária da morte e envolvimento de álcool e drogas.

Também na Austrália, a redução de afogamentos fatais relacionados ao álcool e outras drogas foi considerada um dos pontos prioritários na Australian Water Safety Strategy, um plano nacional para aprimorar a segurança aquática no país.

O governo australiano também lançou a campanha Don’t Let Your Mates Drink and Drown, algo que poderia ser traduzido como “Não deixe seus amigos beberem e se afogarem”, direcionada a homens para que estes exerçam uma vigilância mútua.

Tanto na Austrália quanto no Brasil e no mundo, os homens têm mais propensão a se afogar do que as mulheres.

No Brasil, um estudo antigo, de 2000, chegou a verificar o presença de álcool em corpos de vítimas fatais por diversas causas na região metropolitana de São Paulo. Foi detectado álcool em 64% das vítimas de afogamento; 52% de homicídios; 32% de suicídios; e 50% de acidentes de trânsito.

Quais são as responsabilidades?

Placa em praia com dizeres, em inglês: 'Alcoholic beverages prohibited'
Alguns lugares na África do Sul e Nova Zelândia proíbem consumo de álcool em praias, para evitar riscos trazidos pelas bebidas — como os afogamentos. Direito de imagem GETTY IMAGES

Para prevenir afogamentos, a OMS recomenda que os países aprimorem a regulamentação sobre a navegação e a segurança aquática.

Pelo mundo, autoridades adotam desde placas em balneários avisando para os riscos trazidos pelas bebidas alcóolicas (como as placas “Alcohol impairs judgement”, algo como “O álcool prejudica a capacidade de julgamento”) a seu banimento de praias – como é feito por autoridades locais na África do Sul e Nova Zelândia, por exemplo, onde a proibição não é necessariamente justificada apenas pela relação entre álcool e afogamentos, mas pelos riscos representados pelo álcool às pessoas e ao bem estar público em geral.

A BBC News Brasil pediu ao Ministério da Saúde dados sobre afogamentos e medidas da pasta relativas ao assunto, mas não teve resposta até a publicação desta reportagem.

O Brasil já teve alguns projetos tramitando no Congresso sobre o tema, como um apresentado em 2017 que tentou firmar novembro como o Mês Nacional da Segurança Aquática e de Prevenção ao Afogamento – ele foi arquivado – e outro que tenta incluir no ensino básico treinamento para lidar com afogamentos.

De acordo com o advogado Bernardo Camara, mestre em processo civil e professor universitário em Minas Gerais, não há uma lei nacional que defina estritamente as obrigações de entes públicos pela prevenção a afogamentos em praias ou rios, por exemplo.

Muitas praias públicas movimentadas têm guarda-vidas trabalhando como uma prestação de serviço de segurança à população, como ocorre também com policiais, ele explica. A responsabilidade das autoridades em um eventual afogamento deve ser avaliada na Justiça.

“Já para um ente particular, como um condomínio, o dever de fiscalizar é mais evidente. A premissa maior da responsabilidade civil, determinada pelo Código Civil, exige uma comprovação de causalidade entre um dano e um ato ilícito, que pode vir da negligência, imperícia ou imprudência.”

“Mas a Constituição também prevê que o município ordene questões de interesse local, então pode haver leis municipais que exijam condutas específicas como ter guarda-vidas em determinados lugares.”

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