Habilidades socioemocionais dividem espaço com tecnologia.

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Especialistas indicam que, daqui para frente, a palavra ‘profissão’ dá lugar ao substantivo ‘carreira’; a sequência de experiências pode contar mais que a formação inicial

No estudo do Escritório de Carreiras da USP (Ecar), que mapeou as dez carreiras do futuro, já não se utiliza a palavra profissão. Isso é reflexo da mobilidade que os profissionais têm hoje em seus trabalhos. “Carreira é a sequência de experiências pessoais de trabalho ao longo do tempo. A gente vai transitando. Começa com uma formação inicial e vai fazendo migrações”, diz Tania Casado, diretora do ECar.

O modelo de sucesso desse novo modo de construir uma vida profissional é a chamada “carreira inteligente”. “Dentro desse conceito, é preciso saber o porquê, os valores que te movem em uma carreira; descobrir o como chegar onde se almeja, que caminho trilhar; e quem pode te auxiliar e te guiar nesse caminho. É o que chamamos de ‘knowing why, knowing how, knowing whom’”, explica a professora.

Professora da USP, Tania Casado, coordenou pesquisa que definiu as áreas do futuro.FOTO: WERTHER SANTANA/ESTADÃO

Que a tecnologia deve permear praticamente todos os segmentos daqui para frente, não há dúvidas. No entanto, isso não significa que estudar Tecnologia da Informação (TI) seja a única solução para conseguir emprego. Na pesquisa, a carreira de ‘transformação digital’, por exemplo, envolve diferentes profissionais. Ela é definida como: “produtos e serviços voltados a mudanças estruturais nas organizações e na sociedade, por meio da tecnologia”.

O segmento deve englobar áreas como business intelligence, responsável pelo processo de coleta, organização e análise de informações que dão suporte à gestão de uma empresa; IoT, área dos profissionais que cuidam da internet das coisas; e big data, setor de análise de dados, entre outras. “Os novos profissionais têm de aprender sempre. Tecnologias abrem novos espaços de trabalho e tornam irreais outros postos. Mesmo um profissional de TI já não vai mais poder se preparar para ser especialista em apenas uma linguagem de dados. Ele terá de estar atento às novidades”, diz Tania.

Fernando Mantovani, diretor-geral da Robert Half.FOTO: ROBERT HALF
Para Fernando Mantovani, diretor-geral da Robert Half, empresa especializada em recrutamento e seleção, o futuro do mercado será marcado por duas características: a presença da tecnologia – em todas as áreas de atuação – e a necessidade de habilidades socioemocionais. “Tem uma mão de obra nova chegando ao mercado que tem uma relação diferente com o trabalho. As empresas vão ter de aprender a lidar com esses novos profissionais, que valorizam o bem-estar e condições mais humanas de trabalho”, diz.
 

Paulo Sardinha, presidente da ABRH-Brasil.FOTO: ABRH-BRASIL

Dentre as demais áreas estabelecidas pela pesquisa da USP, uma das que chamam a atenção é a da saúde. Para Paulo Sardinha, da Associação Brasileira de Recursos Humanos (ABRH), depois de áreas ligadas a desenvolvimento de softwares e aplicativos, as carreiras na área da saúde que mais exigem formação são as que mais vão precisar de profissionais daqui para frente.

“Temos um déficit de profissionais na área da saúde. E vai faltar a mão de obra mais qualificada. Temos, por exemplo, muitos técnicos em enfermagem, e poucos enfermeiros”, diz Sardinha.

Ele afirma ainda que “a era dos talentos solitários acabou” e que a falta de capacidade de interação e comunicação que alguns jovens apresentam, em razão das muitas horas atrás de telas, pode afastá-los de vagas de trabalho.

 

Ricardo Basaglia, diretor geral da Michael Page e Page Personnel – empresas da PageGroup, companhia voltada para recrutamento e seleção -, argumenta que a tecnologia facilitou algumas tarefas e evidenciou aquelas que só podem ser executadas por humanos. “Eu realmente não acredito que agora todo mundo vai ter de trabalhar com dados”, diz.

Ele chama a atenção para a quantidade de opções que os trabalhadores têm pela frente agora. “Com a expectativa de vida aumentando, a tendência é que os trabalhadores tenham de três a quatro carreiras durante a vida. Nesse sentido, é muito importante seguir estudando e se atualizando. É comprovado hoje que, quando um indivíduo se forma na graduação, aquilo que ele aprendeu no 1.º ano já está 80% desatualizado”, explica.

Ricardo Basaglia, diretor geral da Michael Page e Page Personnel.FOTO: GABRIELA GONÇALVES

CARREIRAS

Neste modelo de carreira fluida e constantemente em construção, decidir por onde começar fica mais complexo. Para Mantovani, da Robert Half, esse novo conceito faz a escolha de jovens de 17 anos, prestes a se inscreverem nos vestibulares, ainda mais difícil. “Você tem de saber qual a sua aptidão, quais áreas que te trazem mais felicidade e quais cursos universitários são mais indicados para te dar a base necessária para chegar até onde você almeja. É uma escolha muito mais complexa do que de uma profissão apenas”, diz.

Ricardo Basaglia, da PageGroup, diz que é preciso lembrar ainda que as carreiras, daqui para frente, serão mais curtas, justamente pela alta velocidade com que as necessidades das pessoas mudam em razão de novas tecnologias.

Nesse contexto, o fato de a escolha da área de atuação no mercado de trabalho se dar muito cedo pode causar uma série de frustrações. “Eu mesmo sou um exemplo de quem, a princípio, não soube planejar a carreira. Sou formado em análise de sistemas. Por outro lado, se naquela época eu dissesse para o meu pai que seria ‘headhunter’ (caçador de talentos), ele não entenderia nada. Essa profissão nem existia”, diz.

Para Basaglia, o importante para os novos profissionais, é manter a cabeça aberta para possíveis migrações e oportunidades, além de seguir atualizado para atender às novas necessidades do mercado.

“Estamos trabalhando para o futuro”, conclui Tania Casado, do ECar. Ela acredita que a transformação do mercado já começou e deve se estender pela próxima década.


A busca pelo emprego na área

O que fazer para alcançar a posição para a qual se estudou e como saber a hora de migrar

Gustavo Godoy, de 22 anos, formou-se em marketing há cerca de um mês, mas já está fora do mercado há mais de seis. Ele tem formação técnica na área e estagiou por dois anos durante a graduação. Após o fim do contrato, já em julho de 2019, ele se dedicou ao último semestre da faculdade, voltando a buscar emprego em novembro. “Estar em uma rotina mais calma agora do que no ano passado é muito frustrante”, diz. Sua maior dificuldade até o momento foi preencher todos os pré-requisitos para as vagas que surgiram. “Eu achei que, por ter experiência, seria mais fácil. Mas as vagas solicitam habilidades que não fazem parte do curso de marketing”, conta.

Gustavo Godoy, formado em marketing, está em busca de emprego.FOTO: NILTION FUKUDA/ESTADÃO

A situação de Godoy é comum a muitos jovens brasileiros. Segundo dados do IBGE relativos ao 3º trimestre de 2019, o desemprego atinge 25,8% das pessoas nessa faixa etária. E a situação de quem, mesmo sendo graduado, não encontra emprego é comum. De acordo com o presidente da Associação Brasileira de Recursos Humanos (ABRH), Paulo Sardinha, o momento econômico que o País atravessa, mesmo com a lenta recuperação econômica, ainda é o grande fator que dificulta a contratação de jovens profissionais. “Se a economia encolhe, as pessoas ficam superqualificadas para as vagas. Se a economia melhora, faltam profissionais qualificados. Dependemos de uma melhora na economia para que a situação do emprego melhore”, diz.

Se por um lado a economia dá sinais de retomada, por outro, a capacitação que os estudantes adquirem saindo da faculdade pode não ser suficiente. Em um mundo que caminha para carreiras fluidas, os estudantes têm de buscar, ainda mais, ir além da grade curricular proposta na faculdade. Para tentar suprir a falta de alguns conhecimentos em sua graduação, Godoy procurou, por exemplo, cursos de edição de imagens: “O marketing era para ser algo mais voltado para estratégia, mas as empresas pedem que a gente saiba produzir imagens, vídeos, o que seria mais um trabalho da publicidade. Acho que a graduação poderia dar pelo menos uma noção disso”, afirma.

Ele diz que, se não encontrar trabalho na área até o meio do ano, planeja buscar um emprego fora de sua formação para poder pagar mais cursos de capacitação. Para não ficar totalmente parado, ele criou uma página no Facebook para fazer transmissões ao vivo de games. “Acho essa uma área promissora no Marketing. Então eu exercito os meus conhecimentos e me mantenho na ativa.”

NA ESPERA

Enquanto as vagas não aparecem, o conselho é, de fato, se fazer notar. “Dentro das suas possibilidades, muitas vezes por meio de cursos gratuitos, o jovem precisa continuar estudando”, explica Sardinha. Ele diz que isso mantém o candidato sendo visto e aumenta sua rede de contatos, um artifício importante para quem, depois de algum tempo, quiser buscar, também, uma transição de carreira para uma área mais promissora.

Joyce Cirino, engenheira de produção e vendedora especializada na área de softwares.FOTO: TIAGO QUEIROZ/ESTADÃO

No caso de Joyce Cirino, de 36 anos, engenheira de produção desde 2013, a migração foi a solução para se manter no mercado. Na época da formatura, ela já trabalhava em uma área diferente do que esperava no início da graduação. “Por muito tempo, depois de formada, eu ficava buscando motivos para tirar meu registro profissional, o CREA. Procurando saber de documentos ou laudos que eu poderia ter de assinar como engenheira na empresa de tecnologia em que eu trabalhava”, conta. A busca era uma forma de justificar o sonhado diploma então conquistado. “Para a minha família, o ‘ser engenheira’ era algo importante. Meu pai foi metalúrgico e acho que tinha essa imagem de mim, com um capacete, andando pelo chão de fábrica.”

O raciocínio lógico e a facilidade em resolver problemas – características que Joyce atribui ao curso universitário que escolheu – foram o que a fizeram ingressar em um ramo promissor como o da tecnologia. A princípio, a conexão do seu emprego com a engenharia era maior. Ainda durante a faculdade, ela começou a trabalhar como instrutora de um software ligado a projetos mecânicos. Daí para frente, mesmo tentando migrar para a indústria, suas experiências profissionais a arrastaram cada vez mais para o mundo da TI: “Nem consigo dizer se fiz essa escolha ou se fui escolhida. Fui recebendo algumas promoções, migrei de uma empresa para outra e, seguindo conselhos de colegas, passei a me dedicar na área e tirar certificações que eram obrigatórias e que depois me abriram mais portas. A gente costuma resistir àquilo que não conhece, mas hoje tenho a plena certeza de que minhas escolhas foram corretas. Vejo com muito orgulho as minhas conquistas”, afirma.

Saber a hora de deixar de insistir na área dos sonhos para buscar oportunidades em segmentos anexos aos da sua formação, porém, é uma ciência longe de ser exata.“É complexo. Envolve questões psicológicas e até filosóficas do porquê aquela pessoa quer trabalhar em uma área. Mas o ideal, se ela tem o sonho de atuar em uma profissão, é que ela tente entender o porquê de não ter sido chamada para as vagas que apareceram. Falta qualificação, por exemplo? É preciso se atualizar?”, aconselha Ricardo Basaglia, diretor-geral da Michael Page e Page Personnel. A dica de Basaglia é que o aspirante a vagas em determinado setor converse com pessoas que estão inseridas nesse mercado para tentar entender o que se procura em profissionais dessa área e quais as habilidades que ele pode desenvolver para se recolocar. “É importante ter um roteiro para que as conversas sejam produtivas e não fiquem sem rumo”, explica.

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