No mundo científico, há um consenso: a crise só vai acabar de fato quando houver vacina. Mas no Brasil, a verba, de tão escassa, força pesquisadores a fazerem vaquinha e tirarem dinheiro do próprio bolso para investigar.
Após ter seu projeto negado no edital do governo voltado para a covid, o professor e pesquisador Heitor Evangelista decidiu fazer sua pesquisa por conta própria.
O projeto tinha como objetivo o monitoramento de carga viral em locais de grande circulação. E, segundo o professor e pesquisador do departamento de Biofísica e Biometria da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), poderia trazer uma forma de monitorar o quanto um grupo populacional está contaminado sem precisar fazer testes individuais, escassos no Brasil.
“Temos o apoio de um laboratório da Uerj, que faz nossas análises usando a estrutura deles, e vamos pegando dinheiro aqui e ali, fazendo vaquinha com dinheiro nosso e do que sobra de algum projeto”, conta o professor. O caso de Evangelista exemplifica a situação de cientistas envolvidos com a pesquisa da covid-19 no Brasil, onde a verba é escassa.
Quando a crise do coronavírus se tornou global, vários países lançaram pacotes de ajuda econômica e, dentro deles, de investimento em ciência e pesquisa para a busca de soluções relacionadas à pandemia.
O Brasil também lançou seus editais para pesquisa científica na área, mas, conforme mostra um levantamento do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), o valor é pequeno, mesmo quando comparado com o próprio orçamento do país para o setor. Isso faz com que os cientistas como Evangelista peregrinem para conseguir mais verba ou até toquem projetos com dinheiro do próprio bolso.
Os Estados Unidos, por exemplo, destinaram 6,1 bilhões de dólares adicionais para pesquisas relacionadas ao novo coronavírus, verba extra, ou seja, além do que já era previsto para a ciência neste ano. A cifra equivale a 4,1% do orçamento total americano para o setor.
Na Alemanha, um orçamento suplementar prevê o equivalente a 2,34 bilhões de dólares para pesquisa e inovação especificamente para tratamentos da covid-19, equivalente a 6,3% do orçamento total do país para pesquisa.
Já no Brasil, segundo o Ipea, foram disponibilizados 470 milhões de reais (ou 100 milhões de dólares) para pesquisa e inovação no combate à doença. O valor corresponde a 1,8% do orçamento para pesquisa do país. O levantamento do Ipea levou em consideração apenas verba federal para todos os países.
“Você tem os países se mobilizando para investir em medicamento e vacina, com base no fato de que essa crise só vai acabar quando tiver uma vacina” , diz a pesquisadora do Centro de Pesquisa em Ciência, Tecnologia e Sociedade do Ipea Fernanda de Negri, uma das autoras do estudo. Segundo ela, sai mais barato investir em pesquisa para encontrar soluções do que arcar com os custos de uma economia parcialmente paralisada.
Boa parte do valor vem de um crédito suplementar aprovado em favor do MCTI, de R$ 352,8 milhões de reais, sendo 307 milhões para o Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT). No entanto, o montante não recompõe contingenciamentos. Principal fonte de financiamento de pesquisa no país, o FNDCT tem um orçamento previsto de 5,2 bilhões de reais para este ano, dos quais 4,2 bilhões estão contingenciados.
“Isso significa que o Brasil está investindo pouco, muito menos do que deveria, se a gente faz essa comparação (com outros países). Estamos fazendo uma campanha para liberação integral da verba do FNDCT porque é um absurdo completo ficar um recurso congelado quando ele é essencial para enfrentar a pandemia”, diz o presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), Ildeu de Castro Moreira.
O próprio ministro de Ciência, Tecnologia e Inovações, Marcos Pontes, afirmou na última quarta-feira (24/6) que 90% dos recursos do fundo permanecem bloqueados pelo governo. “Todos os ministérios sofrem com a falta de recursos, mas o investimento em ciência e tecnologia é essencial para o desenvolvimento do país e pode ser solução para a crise”, declarou em comissão na Câmara dos Deputados.
“Os pesquisadores que estão trabalhando (na pesquisa da covid no Brasil) são os que já tem recursos de pesquisa aprovados em momentos anteriores, e que estão direcionando a verba para a covid”, afirma, por sua vez, Fernanda de Negri.
Fundações estaduais
Além da verba federal, houve também dinheiro das 17 fundações estaduais de amparo à pesquisa (FAPs) direcionado para pesquisa em covid. Segundo levantamento da Conselho Nacional das Fundações Estaduais de Amparo à Pesquisa (Confap) feito a pedido da DW Brasil, ao todo foram destinados 105 milhões de reais nestes novos editais de 15 fundações – duas não informaram valores.
Do total, cerca de 16,6 milhões são de verba não prevista originalmente nos orçamentos. É preciso levar em conta também que 81% do valor se concentra em três unidades da federação: São Paulo, Rio de Janeiro e Distrito Federal. Nas demais, a verba é relativamente menor e se torna bastante pulverizada entre os projetos.
Mesmo sem o valor total necessário, alguns pesquisadores têm tocado seus projetos. Em Santa Catarina, por exemplo, a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado (Fapesc) destinou 100 mil reais para um projeto que pretende testar a vacina oral da pólio contra a covid-19, conduzido por um grupo de professores e pesquisadores da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
O ideal, diz o coordenador do estudo e pesquisador da UFSC Edison Fedrizzi, seria 1,5 milhão de reais. Descobrir que empresas privadas poderiam doar para o projeto e peregrinar com o pires na mão virou parte da rotina de Fedrizzi. “No Brasil, a gente tem que rebolar para fazer ciência.”
Nos EUA, diz, há estudos semelhantes para a vacina BCG, e um artigo recente da revista Science, de coautoria de Robert Gallo, cientista que descobriu o HIV, fala da estimulação da imunidade inata por vacinas, citando que a oral da pólio poderia proteger temporariamente contra o Sars-Cov-2.
Burocracia é entrave adicional
Além da verba ser escassa, há a questão da burocracia. Segundo a pesquisadora do Ipea, em outros países, como EUA e Inglaterra, houve mecanismos de aprovação rápida das verbas para a ciência diante da emergência da pandemia.
“Em meados de maio já tínhamos pesquisadores trabalhando com recursos novos para isso em outros países. O Brasil tinha lançado dois editais, e os resultados só iam sair agora, enquanto nos EUA a pesquisa já está acontecendo há meses”, diz De Negri. “O que temos acontecendo de pesquisa aqui é muito por conta da vontade dos pesquisadores”.
No caso do edital do CNPq específico para a covid, lançado em abril, os 45,3 milhões de reais aprovados devem começar a chegar em agosto para os 90 projetos aprovados. Por meio de nota, o conselho afirma que “a demanda superou as expectativas, com 2.219 propostas apresentadas” e que houve um “prazo encurtado para submissão de propostas que a urgência da ação exigia (21 dias)”.
O grupo independente de monitoramento Ação Covid-19, criado na segunda quinzena de março, optou por ir em busca de verba privada por conta da agilidade e também por não se enquadrarem no escopo de prioridades do governo. Composto por 24 membros, entre professores e pesquisadores, o grupo procura entender como a desigualdade afeta a evolução da doença no Brasil e criou um simulador do avanço da covid no território brasileiro, dividido por bairros.
“Inscrevemos o projeto para a Universidade Federal do Grande ABC (UFABC), e foi aprovado sem recursos. Fiquei sabendo que a Fundação Tide Setubal lançou um edital e apresentei o projeto”, diz o idealizador do grupo, o economista José Paulo Guedes Pinto, professor da UFABC.
“Várias pessoas que são reticentes com dinheiro de fundação privada resolveram aceitar porque era um dinheiro rápido.” Para ele, embora os editais tenham sido lançados com agilidade pelo governo federal, houve demora na aprovação dos projetos.
Crédito: Deutsche Welle Brasil – disponível na internet 27/06/2020