Com mercado clandestino, segurança privada no Brasil tem uso abusivo de força, ‘bico’ de policiais e falta de fiscalização

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Com o pressuposto de proteger, a segurança privada no Brasil muitas vezes faz justamente o contrário.

É o mercado clandestino, com seus profissionais sem certificação – não raro policiais fazendo “bicos” ilegalmente – e a falta de fiscalização, inclusive do mercado formal, que levam a crimes e casos abusivos de força física.

Para João Alberto Silveira Freitas, conhecido como Beto Freitas, homem negro de 40 anos que fazia compras em um Carrefour de Porto Alegre na semana passada, isso lhe custou a vida. Dois seguranças – um deles era PM temporário – o espancaram e mataram. Foram presos em flagrante.

A atividade é fiscalizada pela Polícia Federal, mas especialistas concordam que a instituição não tem capacidade de fiscalização necessária. Há centenas de empresas especializadas e registradas para oferecer a atividade. As outras, não registradas, parte do enorme mercado clandestino que existe, não têm fiscalização alguma.

“Nós entregamos armas e poder na mão de pessoas que não controlamos”, afirma o sociólogo Ignacio Cano, do LAV (Laboratório de Análise da Violência) e professor da UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro).

Um exército de 545 mil vigilantes estavam ativos em 2020, segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública deste ano, com mais de 90% deles homens.

Mas os vigilantes e as empresas formais registrados na Polícia Federal são a “ponta do iceberg”, diz Cléber Lopes, professor do departamento de ciências sociais da Universidade Estadual de Londrina e coordenador do laboratório de estudos sobre governança da segurança da mesma instituição. O mercado paralelo é gigante, algo “muito marcante no mercado brasileiro e da América Latina”, diz ele.

“Boa parte da nossa economia funciona na informalidade, e não é diferente no mercado de segurança privada. A maior parte do mercado é formada por empresas que funcionam sem regulamentações da Polícia Federal. O mercado irregular é enorme.”

Segundo Ricardo Tadeu, presidente da Abcfav (Associação Brasileira de Cursos de Formação e Aperfeiçoamento de Vigilantes), para cada vigilante legal homologado na Polícia Federal, existem três clandestinos ou policiais militares que exercem a função de segurança paralela, “inclusive trabalhando com a arma de fogo da própria instituição”.

Quem vigia os vigilantes?

No mercado formal, já existe um problema de fiscalização na formação dos profissionais e na condução das empresas, segundo Viviane Cubas, pesquisadora do NEV (Núcleo de Estudos da Violência) da Universidade de São Paulo.

“Os escritórios regionais da PF não dão conta de fiscalizar as empresas. A capacidade do Estado de fazer esse controle é muito precária.”

Para Cubas,”não há controle externo que acompanhe as atividades dos vigilantes”. “E eles têm uma atuação cada vez mais ampla, estão em áreas de lazer, consumo, moradia. Quem faz o controle é a própria empresa.”

“Há uma série de outros casos de abuso de autoridade ou até de força física que simplesmente somem porque não há canal para fazer reclamação direta sobre isso e, quando se faz para a empresa, ela não tem interesse em tornar público.”

No mercado clandestino, então, nem se fala. A prestação de serviço irregular não é crime – é uma infração administrativa. Portanto, diz Lopes, da Universidade Estadual de Londrina, não há instrumentos para inibir esse mercado, e a Polícia Federal não pode fazer muita coisa.

É justamente nesse mercado paralelo onde predominantemente ocorrem os problemas. Segundo Lopes, a maior parte deles está associada ao uso abusivo da força física. “O policial tende a abusar de uso da força letal, disparo da arma de fogo. Na área de segurança privada é diferente, tem mais a ver com o uso da força física”, diz ele.

Muitos casos não têm o desfecho trágico como o do Carrefour, então não chamam a atenção e passam impunemente. De acordo com Lopes, o uso abusivo da força física acontece em espaços específicos, como bares, casas noturnas, estabelecimentos comerciais e terminais de transporte coletivo. Ele lembra de um caso no Rio, em 2009, quando agentes foram gravados chicoteando passageiros para garantir que as portas dos trens se fechassem.

“São espaços muito conflitivos, de fluxo de massa e onde seguranças são constantemente demandados a atuar”, diz.

Tampouco há controle sobre o treinamento dos profissionais. Um vigilante que atua numa casa noturna, por exemplo, deve ter treinamento específico, já que é um local com facilitadores de conflito, com jovens e bebidas alcoólicas.

E, sem fiscalização, a responsabilização fica fragilizada. As chances de haver impunidade são maiores.

O ‘bico’ ilegal

A impunidade também cresce quando é um policial que comete um desvio enquanto faz o famoso “bico”. Isso porque quando policiais se envolvem em ocorrências, elas dificilmente são registradas, diz Lopes. “Os policiais podem proteger-se uns aos outros. É a consequência de estarmos num mercado com uma zona cinzenta que a gente conhece muito pouco.”

Além disso, observa ele, os contatos com as corporações podem facilitar a resolução de problemas de maneira rápida e informal.

É por isso, e por uma série de outros elementos vistos como vantajosos, que empresas de vigilância irregulares dão preferência à contratação de policiais – que também são vistos com bons olhos nas empresas onde atuam como vigilantes.

Os profissionais, por sua vez, procuram o mercado usualmente por causa dos salários baixos da carreira.

Uma das “vantagens” é seu porte de arma. Enquanto vigilantes privados só podem portar armas durante o exercício da profissão e em locais onde a vigilância armada é considerada necessária, policiais têm porte de arma – e costumam usar a das corporações.

O problema é que a participação dos policiais no mercado informal incorre em conflitos de interesse e atrapalha o momento de folga em que deveriam estar se recuperando da atividade – exaustiva e estressante – do policiamento.

“Quando os policiais duplicam a sua jornada, sua irritabilidade pode aumentar e ele pode se tornar mais suscetível a cometer desvios. Isso vulnerabiliza policiais e a segurança pública”, diz Lopes.

Além disso, policiais se tornam muito mais vulneráveis quando realizam segurança particular do que segurança pública.

É notório que policiais morrem mais fora do serviço do que dentro do serviço – e uma das explicações para isso é o bico policial. Ali, ele está trabalhando sozinho, sem apoio da equipe e sem uniforme da polícia, que representa um poder simbólico durante sua atividade. Pode sofrer retaliação de um criminoso ou ser mesmo vitimado.

Apesar desses problemas e apesar de ser ilegal, a participação dos policiais no mercado de vigilância é tolerada, diz Cubas, do NEV. “Fazem vista grossa.”

Treinamento

Um dos homens presos preventivamente por agredir e matar Beto Freitas era policial militar temporário, ou seja, contratado por um processo seletivo simplificado, sem treinamento policial.

Além disso, ele não tinha Carteira Nacional de Vigilante, segundo a Polícia Federal.

Os dois eram funcionários da empresa Vector, que prestava serviços para o Carrefour de Porto Alegre. De acordo com a PF, a Vector havia sido fiscalizada em agosto de 2020, e não foram encontradas irregularidades.

Para ser vigilante no Brasil, um profissional deve passar por uma das quase 300 escolas regulamentadas pela Polícia Federal, com instrutores homologados e credenciados pela instituição. São 200 horas para o curso básico, e uma lei obriga que o vigilante retorne a cada dois anos para a sala de aula para uma reciclagem. É depois desse curso que o vigilante recebe a Carteira Nacional de Vigilante.

No curso, diz Tadeu, da Abcfav, há disciplinas como a de relações humanas no trabalho, primeiros socorros, direito – direito constitucional, direito ambiental, direito trabalhista e direitos humanos, “onde está a matéria que a gente fala sobre qualquer tipo preconceito, como o racial”, diz ele.

“E ainda tem a matéria ‘Uso progressivo da força’. É onde houve o excesso.”

Para ele, as imagens gravadas do caso em Porto Alegre mostram que “não houve nenhuma técnica de imobilização, houve um espancamento”.

“A imobilização tem como técnica imobilizar mãos e pernas. Você não pode entrar numa linha de sufocamento, excesso de choque. Não pode ficar sentado em cima do tórax de uma pessoa”, afirma.

Um vigilante sem certificação, como aquele que trabalhava no Carrefour, não passa por esse curso – que já estava em vias de ser reforçado justamente com aulas antirracismo e sobre preconceito, em parceria com a Universidade Zumbi dos Palmares – projeto que deve ser agora acelerado depois do caso de Beto Freitas.

“Ninguém já viu um cliente branco ser vítima de uma agressão dessa violência. 99% dos casos que nós temos é sempre o negro e o negro e pobre sofrendo esse tipo de agressão. Temos um recorte claro e definitivo”, diz José Vicente, reitor da Universidade Zumbi dos Palmares, à BBC News Brasil.

A morte de Beto Freitas, gravada por testemunhas, aconteceu às vésperas da celebração do Dia da Consciência Negra.

“Os freios de contenção foram todos liberados diante do negro. Nós vimos uma raiva solta, brutal. Ninguém faria isso se fosse uma pessoa branca. Os freios não permitiriam isso. É esse tipo de autorização mental que se estabelece diante de um branco e diante de um negro que precisa mudar”, diz Vicente.

A expansão do mercado

Historicamente, são as polícias que nascem do setor privado, e não o contrário. Milícias privadas protegiam príncipes e reis e trabalhavam para grupos importantes nas comunidades, como proprietários de terra, sem nenhum controle, conta André Zanetic, doutor em ciências políticas e autor de vários estudos sobre segurança privada.

Conforme os Estados foram se instituindo, as polícias foram se institucionalizando também. O marco da criação da polícia pública é a polícia de Londres, em 1829. Quando a polícia pública se institucionaliza nos Estados europeus e nos Estados Unidos, no começo do século 20, a milícia se retrai.

Mas os anos 1940 e 1950 trazem também uma proliferação de atividades privadas, e uma demanda por vigilância. Nessa época, a polícia privada começa a crescer no mundo. Hoje, a segurança privada é maior que a polícia na maior parte dos países, diz Zanetic.

No Brasil, a segurança privada começa formalmente em 1969, durante o regime militar. “A justificativa foi pautada nos assaltos a bancos naquele período, cometidos pelas guerrilhas. O decreto-lei estabeleceu que os bancos deveriam fazer uso obrigatoriamente da segurança privada”, afirma Zanetic.

Além dos assaltos, já havia um setor pulsante que pressionava pela regulamentação do negócio para poder desenvolvê-lo.

A partir dos anos 1970, surgem os primeiros shoppings centers e uma diversificação do mercado, ampliando o rol de vigilância e exigindo uma nova lei para o setor, de 1983. O final dos anos 1980 vê a abertura de empresas especializadas em guarda-costas, transporte de valores, vigilância patrimonial, entre outros, diz Lopes.

Mas o boom é nos anos 1990. “Tem a ver primeiro com problemas na área de segurança. Essa ideia de que a segurança privada cresce quando a violência cresce e a polícia não dá conta é só um pano de fundo, e não se aplica. O mercado é gigantesco na maior parte dos países desenvolvidos, como a Inglaterra e os Estados Unidos”, explica Lopes.

Então por que o mercado cresceu? A resposta está nas demandas do setor privado. Eram muito específicas de empresas e organizações para os quais o setor de segurança pública não teria vocação ou recursos para responder, diz Lopes. Exemplos: furto no interior das corporações, demandas de shoppings center, demandas de propriedades privadas abertas ao público.

“Imagina uma planta petroquímica, com demandas muito específicas. O setor de segurança pública não tem vocação”, exemplifica.

“Tem a ver com mudanças mais amplas sobre como a economia se organiza. E para as corporações também se torna vantajoso terceirizar, já que representa uma vantagem competitiva para a empresa, com mais especialização e redução de custos.”

Hoje, o mercado é enorme no Brasil – a formalidade ao lado da clandestinidade -, e só deve crescer mais.

Polícia de choque em formação durante protesto contra o racismo, depois que João Alberto Silveira Freitas foi espancado até a morte por seguranças em um supermercado Carrefour em Porto Alegre
Polícia em protesto contra racismo depois da morte de Beto Freitas; historicamente, são as polícias que nascem do setor privado, e não o contrário. DIEGO VARA/REUTERS

Modernização

Há uma década, tramita na Câmara e no Senado o “Estatuto da Segurança Privada”, um texto que reuniu projetos sobre o tema que tramitavam no Congresso. Está parado no Senado, sob relatoria do senador Randolfe Rodrigues (REDE-AP).

A proposta atualizaria a lei que até hoje regula a atividade, de 1983, criminalizando e punindo quem contrata e quem oferece o serviço de segurança clandestina.

Para Cano, da UERJ, as empresas que contratam serviços de vigilância deveriam ser mais responsabilizadas. “Elas têm muitos recursos. Deveriam organizar uma rede entre elas, com uma certidão com garantia de qualidade do serviço contratado. Temos que cobrar o poder público, mas as empresas deveriam tomar iniciativa também”, afirma.

“Quando a polícia comete um crime ou faz barbaridade, se cobra do governador. Quando o vigilante do Carrefour faz isso, provavelmente não haverá consequências sistêmicas”, diz.

“Seria a questão de colocar para o Carrefour: que treinamento tinha essas pessoas, como tinham sido recrutados, que tipo de teste de seleção tinham feito?”

Em nota, o Carrefour afirmou que todas as empresas de vigilância contratadas pela empresa são homologadas pela Polícia Federal. “A contratação dos profissionais destas empresas não possui interferência do Carrefour, mas desde o triste episódio ocorrido com o Sr. João Alberto, em Porto Alegre, estamos revisando os contratos com todos os nossos prestadores de serviço para a parte de vigilância como uma forma de nos certificarmos que todos os protocolos obrigatórios do Carrefour estão sendo seguidos, incluindo a contratação de profissionais que estejam alinhados com os valores da empresa, de tolerância e respeito.”

A Vector, empresa terceirizada pelo Carrefour para a qual os profissionais que cometeram a agressão trabalhavam, por sua vez, disse ter rescindido por justa causa os contratos de trabalho dos colaboradores. Afirmou que não atuava na área de vigilância do supermercado, mas sim na de fiscalização de prevenção e perdas.

A Secretaria de Segurança Pública de São Paulo abriu uma investigação no quadro societário e de funcionários da empresa Vector. Três PMs de São Paulo são sócios da empresa, e a suspeita é de que infringiram o regulamento que proíbe agentes públicos em empregos de segurança.

Juliana Gragnani da BBC News Brasil – @internet 27/11/2020

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