Enquanto Venezuela convocou referendo para consultar população sobre anexação de território, Guiana aposta em processo na Corte Internacional de Justiça
Uma região disputada há séculos, com fronteiras estabelecidas e questionadas por meio de acordos em uma região de petróleo abundante. Poderia se tratar de uma disputa distante geograficamente do Brasil, mas não é o caso: trata-se de de um conflito na fronteira de dois países vizinhos com o estado de Roraima.
Dois mapas da mesma região são considerados legítimos, a depender do lado do conflito. Em um deles, o limite da Venezuela avançaria mais de 75% do que é, hoje, considerado território de Guiana. Assim, o país chegaria até o Rio Esequibo, no pedaço que compõe a Guyana Esequiba.
O mapa tem sido apresentado, de acordo com a Associated Press, como parte da campanha realizada por Caracas para um referendo que será realizado em 3 de dezembro. Na data, segundo publicação no site oficial do governo bolivariano do país, “a Venezuela fará valer-se nas ruas, na luta, e no dia 3, em uma única voz, dirá sim cinco vezes”, disse Nicolás Maduro, mandatário do país, na quarta (22).
Ainda de acordo com o site oficial, o presidente afirmou, na mesma ocasião, que “empresas petrolíferas transnacionais, o Comando Sul e os Estados Unidos buscam as riquezas da pátria”. A menção de Maduro ao interesse das petrolíferas tem relação com a descoberta, em 2015, de campos de petróleo no território sob disputa pela companhia americana ExxonMobil.
A companhia, inclusive, foi alvo de Maduro nesse mesmo discurso. O mandatário afirmou que a petrolífera estaria pagando políticos no país para sabotar e falar mal do referendo. “Que o povo decida o destino da Guiana Esequiba! Muito dinheiro está circulando para comprar políticos e políticas da ultradireita para se oporem ao referendo e enfraquecer e dividir novamente a Venezuela”, acrescentou.
Nesta semana, os ministros de Defesa e das Relações Exteriores de todos os países sul-americanos se reuniram em Brasília, em reunião orquestrada por Mauro Vieira, chanceler brasileiro.
“Os delegados da Guiana e da Venezuela apresentaram suas posições, e os outros países os pediram para que cheguem a um entendimento por meio de canais diplomáticos e resolvam suas disputas pacificamente”, afirmou o chanceler, de acordo com o Estadão.
O acirramento do conflito coincide com o crescimento da economia da Guiana em cerca de 40% neste ano, de acordo com dados do Fundo Monetário Internacional (FMI). O país, hoje, detém reservas de petróleo com potencial expansão rápida nos próximos anos e projeções indicam a possibilidade de a Guiana se tornar o maior produtor de petróleo do mundo, superando o Kuwait.
A abundância tem promovido aumento de gastos com educação, saúde e infraestrutura, através da aprovação de fundo soberano para os rendimentos provenientes da commodity.
O que aconteceu no território?
O território entre o Rio Essequibo e Rio Orinoco foi alvo de conflito entre o Reino Unido e a Venezuela desde o século XIX e, na década de 1890, os EUA sugeriram a instituição de um procedimento arbitral para definição. O processo foi estabelecido no Tratado de Washington, assinado em 1897 e, dele, foi estabelecido o laudo que considera o pedaço como parte do que era a colônia inglesa na época.
Desde então, os questionamentos esfriaram, mas não deixaram de existir do lado venezuelano. A reclamação tomou forma em 1962, com a informação ao Secretário Geral das Nações Unidas pela própria Venezuela sobre a disputa com o Reino Unido. O país buscava algum acordo, que foi rechaçado pelo colonizador da Guiana, por considerar que o assunto já havia sido encerrado com o tratado estabelecido em 1899.
A assinatura do Tratado de Genebra por todos os países envolvidos em 1966 permitiu que a Venezuela desenvolvesse o entendimento de que o assunto deveria ser resolvido por negociações diretas entre os dois países.
O tema seguiu controverso e acompanhado pela ONU até 2015. Em setembro deste ano, de acordo com documento da Corte Internacional de Justiça (CIJ), o Secretário-Geral realizou uma reunião com os Chefes de Estado da Guiana e da Venezuela.
Após o encontro, houve a emissão, em 12 de novembro de 2015, de documento no qual informava às partes que “[s]e uma solução prática para a controvérsia não fosse encontrada antes do final de seu mandato, [ele] pretendia iniciar o processo para obter uma decisão final e vinculativa da Corte Internacional de Justiça”.
Guiana recorre a Corte Interacional de Justiça
Enquanto a solução, para a Venezuela, está no referendo que trará a “resposta das ruas” sobre o assunto, segundo previsão constitucional do país, de acordo com o governo, a Guiana aposta na Corte Interacional de Justiça (CIJ) para o caso desde 2018.
“A Corte Internacional de Justiça é um órgão judicial da ONU e tem por função dirimir conflitos jurídicos entre Estados por meio consultivo ou litigioso, sendo este último o caso da Guiana”, explica a advogada e mestre em função social do Direito, Stéphanie Havir.
O tema da reclamação registrada junto ao órgão internacional foi a disputa pela “validade legal e o efeito vinculativo do Laudo referente à Fronteira entre a Colônia da Guiana Britânica e os Estados Unidos da Venezuela, de 3 de outubro de 1899”, de acordo com documento que admitiu o pedido da Guiana para instauração de processo.
Como explica a advogada, a admissão do processo apenas significa que o órgão entende que tem competência (pode julgar) e que o assunto deve ser tratado naquela esfera.
“Primeiro são analisados os requisitos de admissibilidade, e, se o caso, determinadas medidas cautelares para resguardar o direito objeto do debate. O caso, então, é posto em julgamento e as decisões da Corte devem ser cumpridas pelos Estados, sob pena de recurso ao Conselho de Segurança da ONU, que poderá adotar medidas para forçar o cumprimento”, destaca Stéphanie.
No mesmo ano, a Venezuela contestou a jurisdição da corte para decidir sobre o caso e se negou a participar dos procedimentos. A não participação do país, no entanto, não afeta a validade do julgamento, de acordo com o documento da CIJ.
No documento mais recente emitido pela Corte sobre o caso, em abril de 2023, ficou decidido que o Reino Unido não terá participação no processo que se desenrola no órgão internacional.
A posição da Venezuela é baseada no Acordo de Genebra, pactuado em 1966, que estabelece que os países devem negociar um acordo “prático, amigável e satisfatório para ambas as partes”, de acordo com pronunciamento de Maduro nesta semana. “Com paciência, temos esperado que a Guiana se sente cara a cara, para conversar”, afirmou o mandatário, que, de acordo com a imprensa governamental da Venezuela, teria enviado carta ao presidente da Guiana e recebido como resposta uma negativa de diálogo.
Impacto nas eleições venezuelanas
O tema tem fortes chances de impactar as eleições venezuelanas, uma vez que a principal opositora de Maduro, María Corina Machado é contra a realização do referendo. A candidata, que venceu a votação realizada por políticos da oposição, está impedida pela justiça venezuelana de disputar a eleição, mas apresenta-se como mais provável nome para liderar a oposição.
Em sua visão, o território deve, sim, ser defendido como parte do país bolivariano, mas perante a CIJ. Por enquanto, o referendo foi testado no último domingo e o governo anunciou que foi “um sucesso”, sem mencionar mais detalhes da natureza do teste.
“Há nervosismo na Guiana, no norte, fiquem muito nervosos, suem muito, porque chova, troveje ou relampeje, o referendo em 3 de dezembro acontecerá e o povo decidirá o destino de sua soberania, território, paz e futuro”, afirmou Maduro.
Crédito: Camille Bocanegra / InfoMoney – @ disponível na internet 28/11/2023