Lixo, luxo e política.

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Submeter alguém a um processo transparente na Justiça demanda instituições amadurecidas e sociedade informada

O ano eleitoral de 2018 se apresenta tóxico: mistura violência urbana com intervenção militar, soma degradação da cidadania ao sucateamento das políticas públicas, chafurda em ilícitos. Com um quadro destes, há de se saudar que um ativismo político extremado ainda não tenha se mostrado à luz do dia.

Quatro anos atrás, militantes ucranianos passaram a jogar no lixo — literalmente no lixo — políticos e funcionários “ficha suja” do governo derrubado oito meses antes. E o mundo assistiu com deleite às cenas de humilhação pública de derrocados corruptos. Àquela época, por toda parte, já reinava uma exasperação cívica global com os desmandos dos donos do poder (funcionários miúdos ou graúdos), facilitando a identificação de muitos internautas com o “castigo” aplicado por milicianos ucranianos.

Em apenas um mês, uma dúzia de congressistas, deputados estaduais e funcionários públicos foram interceptados nas ruas, levados até alguma caçamba de lixo, e mergulhados em dejetos por ativistas parrudões. Estava-se a um mês das eleições de 2014 para substituir o governo do líder enxotado Viktor Yanukovych.

O detonador desse justicialismo fora a descoberta do que escondiam os seis metros de muralha na residência de Yanukovych: uma propriedade do tamanho de meia Mônaco banhada em opulência delirante, com zoológico, restaurante e campo de golfe privados. Além de uma já clássica coleção de carros de luxo, só que vintage.

A indignação nacional acabou mergulhando em lixo todo tipo de acusado: um médico de hospital público que embolsara propina, parlamentares que haviam apoiado leis antiprotestos, um fiscal municipal dado a mordomias, um deputado ficha suja com pretensões de reeleição, um promotor que se recusava a deixar o posto. Todos saíam fedendo da imersão forçada, alguns agarrados a suas pastas executivas, com restos de comida colados às roupas e à cabeça.

Por trás dessas “ações de higienização direta” estavam grupos da extrema-direita.

“O povo está cansado de esperar, está desiludido”, justificava um dos líderes mais atuantes da aliança Setor Direito, Boryslav Bereza. “Quando o governo não é capaz de assumir o cumprimento da lei, cabe às ruas tomar a si a tarefa”.

Deu em nada. Em seu Índice anual de Percepção da Corrupção, a Transparência Internacional lista a Ucrânia como 131º pior colocado entre 176 países avaliados. O naco mais corrosivo da roubalheira apenas migrara. Do setor estatal de energia e gás que abasteceu as fortunas dos grandes predadores da era Yanukovych, passou para a indústria militar dos poderosos que lhe sucederam. Reportagem recente do “New York Times” cita o exemplo de uma pequena peça de metal do tamanho de um parafuso: Ela custava US$ 50 no governo defenestrado. Passou a custar US$ 4.000 um ano depois, com fornecedor novo.

Esta semana, na cidade boliviana de San Buenaventura, perto de La Paz, moradores imobilizaram o prefeito Javier Delgado numa armadilha de madeira para animais. Mantiveram-no exposto a céu aberto durante uma hora, acusado de má gestão e de mentir a seus eleitores. Em anos anteriores Delgado já havia sido submetido duas vezes ao mesmo castigo tradicional na região. Pelo jeito, também ele não se emendou. Entrevistado pelo diário “El Deber”, de Santa Cruz de la Sierra, o prefeito declarou-se perseguido por madeireiros abastados e adversários políticos.

Jogar uma autoridade numa caçamba de lixo ou expô-la ao opróbrio público é relativamente fácil e garante satisfação instantânea. Submeter alguém a um processo transparente na Justiça demanda instituições amadurecidas e uma sociedade informada, com condições de exigir, e não apenas de sobreviver.

As eleições de 2018 vêm aí. Ao invés de tentar adivinhar quem vai ocupar o Palácio do Planalto, vale dar peso também máximo às escolhas para vereador, deputado estadual e Congresso. A construção de uma catástrofe ou a possibilidade de alguma mudança estão nas mãos do eleitor.

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Em tempo: esta semana Jaques Wagner — ex-governador da Bahia, atual secretário estadual de Desenvolvimento Econômico e até então plano B de uma candidatura petista ao Planalto — foi alvo de um mandado de busca e apreensão no âmbito da operação Cartão Vermelho. Wagner é suspeito de ter recebido R$ 82 milhões de empreiteiras na reconstrução e gestão do estádio Arena Fonte Nova, acusação que ele e seus advogados negam.

Wagner revelou-se igualmente indignado ao saber que os 15 relógios apreendidos em sua residência haviam sido qualificados pela delegada Luciana Caires como sendo “de luxo”.

“Como fui algumas vezes à China, comprei alguns relógios de réplica, chineses. Gosto de relógios”, corrigiu em entrevista.

Fosse esse o caso, não precisava ter ido tão longe. Numa concorrida galeria de quinquilharias made in China da nobre Avenida Paulista, entre sedes bancárias e o prédio da Fiesp, a oferta é ilimitada. Ali, um mesmo relógio ou bolsa de grife estão disponíveis em três versões. A mais cara atende pelo nome de “primeira linha” — são cópias saídas das mesmas fábricas da grife original, perfeitas, do mesmo material. Logo abaixo vem a categoria “réplica”, mais acessível, para olhos menos exigentes. Por fim existe a linha “falsificado”, tosca e baratinha.

Uma das vendedoras mais bem-humoradas da galeria aceita, como é de regra, pedidos por WhatsApp. Apenas solicita ao comprador que envie mensagem em áudio, pois não sabe ler em português. Ela certamente tem todos os 15 modelos verdadeiros ou falsos de Jaques Wagner. E se não tiver, ela acha no grosso catálogo que lhe serve de bíblia.

Artigo publicado dia 04/03/2018 no jornal do O Globo – disponível na internet 05/03/2018

Nota: O presente artigo não traduz a opinião do ASMETRO-SN. Sua publicação tem o propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

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