De Bem com a Vida: Enfermeira do Hospital Pedro Ernesto (RJ) abriga jovem com leucemia.

0
1948
Amizade nasce na dor

O olhar de Bia encontra o de Aline, e as duas começam a rir. Existe entre elas a comunhão de muitas coisas compartilhadas, embora tenham se conhecido há apenas nove meses. Bia diz “parece que somos amigas desde sempre”, e qualquer um é capaz de notar isso. No dia 14 de abril de 2016, aos 21 anos, ela entrou assustada no Hospital Universitário Pedro Ernesto com uma leucemia recém-diagnosticada, ao lado da tia Fabiana. Mal começara a estudar psicologia na Universidade Católica de Petrópolis e já era preciso trancar a matrícula. A enfermeira Aline estava de plantão, e nunca mais saiu de perto da estudante. Alguns dias depois, sugeriu à menina que raspasse os cabelos cacheados, pois a tristeza seria maior se os fios caíssem aos poucos. Foi Aline quem os raspou.

— Estava passando na televisão a reprise da novela “Laços de família”, em que a personagem da Carolina Dieckmann descobre uma leucemia. Eu disse para Bia: “Isso não é novela, não precisamos chorar, vamos só cortar o cabelo” — lembra Aline Muniz, de 32 anos, uma mulher que a vida fez durona, mas também generosa.

Após um mês de internação, lutando pela cura com sessões de quimioterapia, Ana Beatriz Maciel não poderia ficar longe do hospital. Com o sistema imunológico enfraquecido (a quantidade ideal de leucócitos é 4 mil, ela tinha apenas 100), uma simples febre pode ser fatal. Diante do risco de voltar para Petrópolis, ela e a família decidiram que era melhor continuar no Rio. Mas onde? Uma conhecida dos pais, que havia prometido hospedagem, começou a criar obstáculos, como um suposto foco de dengue no vizinho. Ao perceber que não existia um plano B para a jovem, Aline conversou com seu marido, Anderson Andrea, e os dois concordaram: Bia poderia morar com eles e os três filhos.

— Na hora, achei que fosse brincadeira. A verdade é que não estamos acostumados a receber ajuda de alguém que mal nos conhece. Saí do leito de isolamento e cheguei a passar um dia na enfermaria de doenças infecto-parasitárias, pois não havia outro lugar no hospital. Aceitei o convite da Aline — recorda Bia, sentada no sofá do apartamento de sua nova família, com três crianças pulando e cantando ao redor. — Hoje até que elas estão quietinhas.

Duda, de 7 anos, penteia os cabelos de Bia, para quem cedeu o quarto – Hermes de Paula / Agência O Globo

Desde maio do ano passado, Bia dorme na casa da enfermeira quase todas as noites. Volta para Petrópolis apenas quando a quimioterapia entra na fase oral, com remédios ministrados por ela mesma, como o metotrexato e o tioguanina. Mas alguns dias depois está de novo em Jacarepaguá, onde é tratada como irmã pelos três filhos de Aline: Maria Eduarda, de 7 anos, e os gêmeos Arthur e Miguel, de 5. Dorme no quarto de Duda, que, embora não seja o tipo de criança que gosta de qualquer um, nunca sentiu ciúme: ela adora passar a mão na cabeça de Bia, e também pentear seus cabelos curtinhos.

TRÊS MESES SEM SALÁRIO

É uma amizade improvável. Dificilmente Bia e Aline ficariam tão próximas caso tivessem se cruzado em circunstâncias diferentes. As dificuldades do Hospital Pedro Ernesto, que sofre com os raros repasses do governo estadual desde outubro de 2015, fez as duas se unirem ainda mais. Se faltam agulhas ou seringas, Aline dá um jeito de conseguir, contando com a ajuda de colegas que também trabalham em outras unidades de saúde. Uma vez, Bia passou três dias internada sem tratamento, pois faltavam drogas para a quimioterapia. Lá estava Aline, ao seu lado, mesmo sem poder fazer nada. A generosidade impressiona ainda mais por ela estar, como seus colegas servidores, há quase três meses sem salários. Não fosse o marido, enfermeiro igual a ela, ter mantido o emprego, a família talvez estivesse nas mãos de agiotas, como muitas colegas de Aline.

— Contei para poucas pessoas que “adotei” a Bia. Ela me faz bem, fico muito sozinha com as crianças, pois meu marido trabalha embarcado. Sou assim porque nunca tive nada. Minha mãe era esquizofrênica e me trancava sozinha em casa. Aos 5 anos, uma tia me adotou, mas a vida era muito difícil. Nunca ganhei uma boneca — conta Aline, com lágrimas caindo. — Por isso não entendo as crianças de hoje terem celulares. Que tipo de gente estamos criando? Meus filhos não têm videogame, mas têm um pula-pula no quintal.

Bia com os três irmãos: quando ela volta para Petrópolis, todos sentem saudade – Agência O Globo / Hermes de Paula

Uma vez, quando a menina saiu do hospital dez quilos mais magra — devido à falta de pagamento do estado a fornecedores do hospital, a comida se tornou intragável —, Aline disse para Bia “hoje você vai comer”, e a levou ao Burger King. Também já foram passear no Village Mall, sempre com as três crianças.

Pedro Ernesto resiste ao descaso

Apenas 92 dos 500 leitos do hospital estão abertos – Hermes de Paula / Agência O Globo

O Pedro Ernesto respira por aparelhos. E os aparelhos, neste caso, são os técnicos de enfermagem, enfermeiros e médicos, a maioria residentes, que, mesmo sem receber — a última das nove parcelas do salário de novembro foi paga semana passada —, continuam atendendo os pacientes que, como Bia, dependem deles para sobreviver. Para se ter uma ideia, apenas 92 dos 500 leitos estão funcionando.

O diretor do hospital, Edmar Santos, preferiu não dar entrevista, mas em julho já havia anunciado, em nota, a situação caótica: “A falta de pagamento pode instabilizar a continuidade dos serviços. Ratificamos nesta oportunidade nosso compromisso com a saúde da população e com o cumprimento dos nossos juramentos ético-profissionais”. Segundo médicos ouvidos pelo GLOBO, o risco de fechamento é real, caso o governo do estado não priorize o funcionamento da unidade, referência no tratamento de nada menos que 40 especialidades.

— Se o hospital fechar, não temos ideia do que pode acontecer — afirma Bia.

Duda, no colo do pai, Anderson; Arthur com a mãe, Aline; Miguel com Fabiana e, com todos, Bia: jovem de 21 anos encontrou solidariedade em meio ao caos do hospital – Hermes de Paula / Agência O Globo

Enfrentar a leucemia tem sido, para ela, uma experiência transformadora. Fez amigos no Pedro Ernesto, além de Aline. Em especial os pacientes Hudiego, de 25 anos, morador do Complexo do Alemão, e Érica, de 20, que vive no Morro dos Macacos. Ele tem a mesma doença (leucemia linfoide aguda, a LLA), ela teve um linfoma diagnosticado. Os três trocam mensagens por celular quase todos os dias. Quando soube que Hudiego também estava sem comer, dividiu com ele um pote de sorvete. Também já compartilhou os remédios que precisou comprar, como tioguanina, pois a farmácia do Pedro Ernesto vive desabastecida.

— Quando decidi estudar psicologia, não fazia ideia do que estava prestes a acontecer. Eu era infantil, dava muito valor à minha aparência. Quando minha mãe me trouxe o primeiro lenço para a cabeça, comecei a chorar. Olhava no espelho e tinha que encarar a doença. Aprendi muito com isso, estou descobrindo quem eu sou — afirma Bia, que sonha voltar aos estudos no próximo semestre.

Ela passou o Natal em casa, em Petrópolis, com a mãe, o pai, o irmão — doador compatível de medula óssea, embora ela não precise de transplante — e a irmãzinha de 3 anos. Aline, o marido e as três crianças não aguentaram a saudade. Entraram no carro e subiram a serra. Todos passaram o Natal juntos.

Flávia cuida de Marcos, diagnosticado com leucemia em outubro – Hermes de Paula / Agência O Globo

“Plantão geral fechado”, anuncia uma folha fixada na entrada principal do Hospital Pedro Ernesto. Só quem precisa muito está recebendo atendimento na unidade. Marcos Guimarães, de 38 anos, precisa muito. Tudo começou em outubro, com um cansaço excessivo e suor frio, poucos meses após o corretor de imóveis cancelar o plano de saúde, pela necessidade de economizar. Ele pesquisou na internet e achou que fosse leucemia. A médica de uma UPA disse que não. Ele ainda brincou que, se estivesse errada, ele voltaria para puxar seu pé. Estava certo: era leucemia.

Por falta de leitos de isolamento (são apenas quatro), Marcos está internado na enfermaria no momento, no meio de outros pacientes, mesmo com o sistema imunológico debilitado. O lugar ao menos tem ar-condicionado, ao contrário de outro espaço onde ele também ficou, hoje desativado, que parecia uma “enfermaria de guerra”, segundo ele. Marcos encontra força no bom humor – quando é possível.

– Marcelo Freixo – disse, ao ver o fotógrafo Hermes de Paula.

Sua companheira, a diretora e professora de teatro Flávia Lopes, está ao lado todas as horas. Conta que falta de tudo no hospital: de esparadrapo a remédios. Dia desses, soube que um paciente adulto recebeu um cateter para criança, pois não havia do tamanho maior. Uma enfermeira já comprou para Marcos, com dinheiro do próprio bolso, pomada anestésica. Outra trouxe uma agulha mais fina, da qual ele precisava. Flávia tem escrito relatos emocionantes no Facebook, onde também pede aos amigos que doem sangue, que se cadastrem como doadores de medula óssea e que compareçam às manifestações de rua em defesa do hospital.

— Fico com vontade de chorar. Minha mãe morreu de câncer há pouco tempo. Ficou em hospital particular, pagávamos um plano de saúde caro, mas não tínhamos o mesmo atendimento que aqui. Essas pessoas estão trabalhando de graça. Um dia vi uma enfermeira chorando, depois de o governador anunciar o parcelamento do salário de novembro em nove vezes – afirma Flávia. – Mas no plantão seguinte, ela estava aqui.

Marcos precisa de transplante de medula óssea para viver. Ele aguarda o Redome (Registro Nacional de Doadores de Medula Óssea) encontrar um doador compatível. Segundo Luís Fernando Bouzas, coordenador do programa, “já encontramos vários doadores no Brasil e no exterior, mas estamos fazendo os testes para confirmar a compatibilidade”. A notícia é como um raio de luz em meio à tempestade.

— São vidas que estão em jogo. A sociedade precisa se incomodar com isso, deveria ser uma briga de todos, mesmo de quem não precisa da saúde pública, pois é um direito nosso — afirma Flávia.

Marcos faz coro:

— O Pedro Ernesto não pode fechar.

Esperança da cura

Crédito: Matéria de Caio Barretto Briso,  publicada dia 22/01/2017 no caderno RIO do Jornal O Globo – disponível na web 23/01/2017

DEIXE SEU COMENTÁRIO

Por favor, insira seu comentário!
Por favor, digite seu nome!