Manifestação de diplomatas contra o governo Temer provoca divisão no Itamaraty.

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Uma carta subscrita por mais de 160 diplomatas (leia íntegra abaixo) tem colocado ainda mais lenha na fogueira da mais grave crise do governo Michel Temer em seu primeiro ano de mandato. Intitulada “Diplomacia e democracia”, a carta aberta critica o uso das Forças Armadas para reprimir manifestações, segundo decreto de 24 de maio revogado no dia seguinte por Temer, e chega a falar em a retomada da normalidade legitimada “pelo voto popular”, em clara alusão à eleição direta – uma das principais demandas dos opositores da gestão peemedebista. Embora tenha reunido número significativo de adesões, o documento é contestado pela Associação dos Diplomatas Brasileiros (ADB) e provoca insatisfação da maioria dos servidores do Itamaraty (Ministério das Relações Exteriores). Como pano de fundo, o atrito entre a Organização das Nações Unidas e a cúpula da chancelaria brasileira em razão do decreto presidencial (leia mais abaixo).

“Ao reconhecer a seriedade da situação política nacional, a Associação entende que cabe aos servidores da carreira diplomática preservar o espírito de institucionalidade que caracteriza a diplomacia brasileira”, diz a entidade, por meio de nota (íntegra abaixo), contrapondo-se a posicionamentos de “cunho político-partidário”.

A carta cita nominalmente a providência de Temer contra as manifestações organizadas em 24 de maio por centrais sindicais e movimentos sociais. Na ocasião, milhares de pessoas foram ao centro do poder em Brasília pedir a saída de Temer, formalmente investigado no Supremo Tribunal Federal por corrupção passiva, associação criminosa e obstrução de Justiça, e protestar contra as reformas estruturais em discussão no Congresso. O dia acabou com um aposentado baleado, cerca de 50 feridos e oito manifestantes detidos – e com as Forças Armadas nas ruas, o que provocou repercussão negativa inclusive entre os militares.

Clamando por diálogo entre lideranças políticas e a própria sociedade no sentido de combater a crise multifacetada, a carta condena a postura de Temer em relação aos protestos contra seu governo. “Para que esse diálogo possa florescer, todos os setores da sociedade devem ter assegurado seu direito à expressão. Nesse sentido, rejeitamos qualquer restrição ao livre exercício do direito de manifestação pacífica e democrática. Repudiamos o uso da força para reprimir ou inibir manifestações. Cabe ao Estado garantir a segurança dos manifestantes, assim como a integridade do patrimônio público, levando em consideração a proporcionalidade no emprego de forças policiais e o respeito aos direitos e garantias constitucionais”, diz outro trecho da mensagem.

A assessoria de imprensa do Itamaraty disse ao Congresso em Foco que não haverá pronunciamento formal da pasta sobre a carta dos diplomatas. De Washington (EUA), onde participou de um fórum promovido pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento, o ministro das Relações Exteriores, Aloysio Nunes Ferreira, minimizou a divulgação do manifesto e negou que haverá punições a quem o assinou.

“É uma manifestação livre. São cidadãos brasileiros, dizem o que pensam. Eu não faço caça às bruxas no Itamaraty e não farei”, ponderou o senador licenciado do PSDB. Ele não se manifestou sobre o fato de que seu partido está rachado sobre a situação do governo, em um cenário em que a bancada na Câmara, em grande parte formada por jovens deputados, já defende o rompimento da aliança com Temer – espécie de rebelião contida pela cúpula formada por tucanos mais experientes. Diante da iminência do desembarque tucano, o presidente articula uma reunião de emergência com o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, um dos presidenciáveis do partido.

Ineditismo

Diante da quantidade de membros da diplomacia brasileira, a divulgação da carta, vista como um “manifesto” pela ADB, representa uma minoria na classe. Atualmente, são cerca de 1.500 diplomatas no quadro do MRE, ou seja, a carta aberta é assinada por pouco mais de 10% dos diplomatas. A maioria dos servidores que apoiaram o documento é formada por diplomatas, mas oficiais de chancelaria também assinam seu conteúdo.

Mas a divulgação do texto em momento agudo de crise política ganha força pelo seu ineditismo. De acordo com fontes ouvidas pela reportagem, jamais um grupo de diplomatas se insurgiu para protestar contra os rumos de um governo ao qual deve obediência.

O caráter de novidade se reflete nas discussões de um fórum de discussão de diplomatas ao qual o Congresso em Foco teve acesso. Em uma das manifestações, um deles reclama do conteúdo da carta aberta. “A desonestidade desse documento, desse texto, dessa coisa, é por demais evidente. Lamento por todos os que assinaram sem perceber que estão sendo enganados por aqueles que os enganaram durante TREZE anos, e mais…  Ou eles só agora descobriram que o país está dividido? O país está dividido desde muito tempo antes, de 2003 inclusive, entre ‘nós’ e ‘eles’, entre o povo e as elites, entre os trabalhadores e os patrões…  Como é possível que pessoas razoavelmente bem informadas, até bem formadas possam ser tão ingênuas?”, diz a mensagem.

Outro diplomata adota tom mais conciliador. “Concordamos em algo, ainda que a carta chame ao diálogo, eu mesmo não acredito que as pontas de lança desse processo (de um lado os sindicatos aparelhados e de outro os burocratas herdeiros do butim) estejam interessadas no diálogo. Tampouco tento seduzi-lo – nem eu nem você somos agentes que teriam força para estabelecer esse diálogo: a sedução se é que se pode chamar assim – prefiro sensibilização ou chamamento – seria para outros atores. O voto popular é a fonte legítima de poder. O voto popular elegeu os constituintes e, por consequência, legitima a atual constituição e seus ditames, que estabelecem exatamente o procedimento a ser adotado em caso de queda do atual governo. Se a carta contivesse qualquer menção a realizar diretas agora, eu não assinaria”

Mas, no fórum, também há quem defenda a carta. “Acredito que o R. [os diplomatas pedem anonimato] descurou o fato de que os que foram às ruas obstruir, impedir outros que queriam trabalhar ou simplesmente circular, facilitar a destruição de patrimônio público, esses não queriam, de fato, nenhum diálogo. Do contrário teriam feito manifestações pacíficas, como foram TODAS aquelas que saíram à ruas para pedir o fim do governo mais CORRUPTO que já vimos no Brasil, aquele comandado por uma organização criminosa que insiste, justamente, em DIVIDIR o país, da maneira como se ‘manifesta’”, diz outro oficial da diplomacia.

Deu no New York Times

À parte a controvérsia entre os chamados “cidadãos do mundo”, o assunto já transpôs de vez as fronteiras brasileiras. Depois de manifestações da Organização das Nações Unidas e de editoriais dos principais veículos de imprensa internacionais, o jornal The New York Times, que tem se posicionado a respeito da situação brasileira de perto, publicou reportagem nesta quinta-feira (1º) sobre a carta dos diplomatas brasileiros. E também se concentra no fato de que a postura do governo colocou em atrito o departamento da ONU pelos direitos humanos, que criticou as Forças Armadas nas ruas, e o próprio Ministério das Relações Exteriores, que divulgou nota acusando a entidade, entre outros termos, de leviandade.

“A carta surgiu poucos dias depois que o Ministério das Relações Exteriores do Brasil criticou duramente uma declaração das Nações Unidas condenando a violência contra os manifestantes em Brasília, em 24 de maio. Nessa manifestação, mais de 35 mil pessoas protestaram contra as medidas de austeridade econômica propostas por Temer, incluindo mudanças na Previdência e nas leis trabalhistas. Os manifestantes também pediram a saída de Temer [da Presidência da República] por causa de investigação sobre obstrução da Justiça”, diz trecho da reportagem do jornal nova-iorquino.

Leia a carta dos diplomatas:

“Nós, servidoras e servidores do Ministério das Relações Exteriores, decidimos nos manifestar publicamente em razão do acirramento da crise social, política e institucional que assola o Brasil. Preocupados com seus impactos sobre o futuro do país e reconhecendo a política como o meio adequado para o tratamento das grandes questões nacionais, fazemos um chamado pela reafirmação dos princípios democráticos e republicanos.

  1. Ciosos de nossas responsabilidades e obrigações como integrantes de carreiras de Estado e como cidadãs e cidadãos, não podemos ignorar os prejuízos que a persistência da instabilidade política traz aos interesses nacionais de longo prazo. Nesse contexto, defendemos a retomada do diálogo e de consensos mínimos na sociedade brasileira, fundamentais para a superação do impasse;
  2. Desde a promulgação da Constituição Federal de 1988, a consolidação do estado democrático de direito permitiu significativas conquistas, com reflexos inequívocos na inserção internacional do Brasil. Atualmente, contudo, esses avanços estão ameaçados. Diante do agravamento da crise, consideramos fundamental que as forças políticas do país, organizadas em partidos ou não, exercitem o diálogo, que deve considerar concepções dissonantes e refletir a diversidade de interesses da população brasileira;
  3. Para que esse diálogo possa florescer, todos os setores da sociedade devem ter assegurado seu direito à expressão. Nesse sentido, rejeitamos qualquer restrição ao livre exercício do direito de manifestação pacífica e democrática. Repudiamos o uso da força para reprimir ou inibir manifestações. Cabe ao Estado garantir a segurança dos manifestantes, assim como a integridade do patrimônio público, levando em consideração a proporcionalidade no emprego de forças policiais e o respeito aos direitos e garantias constitucionais;
  4. Conclamamos a sociedade brasileira, em especial suas lideranças, a renovar o compromisso com o diálogo construtivo e responsável, apelando a todos para que abram mão de tentações autoritárias, conveniências e apegos pessoais ou partidários em prol do restabelecimento do pacto democrático no país. Somente assim será possível a retomada de um novo ciclo de desenvolvimento, legitimado pelo voto popular e em consonância com os ideais de justiça socioambiental e de respeito aos direitos humanos.”

Agora, leia a nota da Associação dos Diplomatas Brasileiros:

“Nota de Esclarecimento

A Associação de Diplomatas Brasileiros (ADB) tomou conhecimento de manifestação pública, subscrita por servidores do Ministério das Relações Exteriores, intitulada “Diplomacia e Democracia” e gostaria de esclarecer que a iniciativa não conta com o endosso da ADB.

Ao reconhecer a seriedade da situação política nacional, a Associação entende que cabe aos servidores da carreira diplomática preservar o espírito de institucionalidade que caracteriza a diplomacia brasileira, o que é incompatível com manifestações de cunho político-partidário.”

Crédito: Fabio Goís/Congresso em Foco – disponível na internet 03/06/2017

 

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