Começar de novo.

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O governo federal se mexe em torno da economia, com leis precisas contra a quebradeira. Mas nenhuma proposta de futuro para o país desmoralizado, sem autoestima

O melhor é começar tudo de novo. Está difícil encontrar na política brasileira um porto seguro, alguém em quem possamos confiar sem limites e sobressaltos. Não estou me referindo só à honestidade pessoal já tão rara, mas também aos planos e projetos que ninguém nos propõe. Minha impressão é a de que quem já não está mofando na cadeia faz do silêncio sua defesa prévia, uma estratégia contra a condução coercitiva.

O governo federal se mexe em torno da economia, com leis precisas contra a quebradeira. Mas nenhuma proposta de futuro para o país desmoralizado, sem autoestima ou o mínimo de entusiasmo para seguir em frente. A espada de Dâmocles, que costuma estar pendurada sobre a cabeça dos líderes, desta vez se encontra, segura por um fino fio, sobre a da população em geral. Como Cícero, o tribuno romano, comentava a propósito daquela espada, “não pode haver felicidade para aqueles que estão sob apreensões constantes.”

Tenho para mim que a violência, que hoje assola o cotidiano brasileiro, é também o resultado de nosso desgosto, da sensação de que o Armagedon nacional em que vivemos nos permite todos os gestos de desespero, mesmo aqueles que sabemos não serem justos. As estatísticas estão todo dia nos jornais — em um ano, 58.495 seres humanos sofreram morte violenta no país, em assaltos ou querelas particulares.

Essa semana, um pai goiano matou seu filho anarquista e depois se suicidou, indignado com a opção política do rapaz de 20 anos. No Maranhão, um homem asfixiou sua cunhada, por quem se dizia apaixonado e não era correspondido. Em São Paulo, não se sabe bem por que, cinco adolescentes a caminho de uma festa foram liquidados por policiais e seus corpos abandonados num matagal. Titi, de 2 anos, filha adotiva de Bruno Gagliasso e Giovana Ewbank, foi selvagemente agredida pela internet por ser negra. E até abelhas venenosas foram soltas na relaxante Pedra do Arpoador. Podemos preencher mais de 50 mil páginas de jornal por ano com notícias como essas.

Quando a tragédia é anterior à redenção, nos sentimos revigorados e aprendemos a viver com o exemplo funesto do passado. Em Sarajevo, o filho de um herói da guerra na Bósnia-Herzegovina instalou uma pousada, a que chamou de War Hostel, onde reproduz as condições locais nos anos 1990, quando a ofensiva do Exército servo-bósnio matou quase 13 mil moradores desarmados. Além da decoração do hostel com objetos da guerra e recortes de jornais da época, o rapaz passa documentários sobre o cerco de Sarajevo e monta excursões aos fronts de batalha. Os hóspedes deixam a pousada amando um pouco mais a humanidade. Entre nós, a guerra ainda está na esquina e nós queremos mais é ter a sorte de escapar dela.

Chega de culpar o Trump, chega de falar de Trump como se fosse ele quem vai decidir o nosso futuro. Os eleitores de Trump não são muito diferentes dos de Crivella, Kalil ou Doria, pensemos neles. Já enfrentamos uma ditadura cruel e sanguinária que durou 21 anos e achávamos que, depois dela, viveríamos no paraíso da democracia. Felizmente, a democracia chegou, às vezes meio mambembe, nem tão paradisíaca assim. Mas essa é uma conquista da qual não podemos nunca mais abrir mão, apesar de todas as desilusões.

Depois da ditadura, tivemos governos de direita, de centro e de esquerda. Em nenhum deles o país tomou um rumo certo e seguro. Uns foram mais austeros do que outros, uns mais abagunçados do que outros; mas nada mudou de fato. Talvez aquele rumo certo e seguro nem exista. Durante os governos considerados populares, acreditamos na mudança de estrutura, na revolução em nossos costumes políticos e sociais. Depois de 13 anos desses governos, a população continua sem saúde, a educação é uma piada, falta saneamento nas zonas pobres, a inflação voltou, o transporte segue um caos, não temos sistema de energia etc., etc., etc. Tudo igual. Ou talvez pior — agora vivemos a maior taxa de desemprego do período democrático.

Só nos resta confiar em nós mesmos, em nossa capacidade de mudar, mesmo sabendo que nem todos pensamos e nunca pensaremos igual. Nós, brasileiros, somos um bando de gente muito diferente entre si. Filhos de brancos, pretos, índios e variados imigrantes, somos católicos, espíritas, evangélicos e umbandistas. Pouquíssimos ricos e uma vasta multidão de miseráveis. Mas alguma coisa precisamos fazer para que o país liquide o passado social e político, como liquidou a ditadura. Tentemos começar tudo de novo, sem compromisso com nada do que vimos, vivemos e sabemos.

O grande poeta russo Vladimir Maiakovski, um dos maiores do século XX, morto aos 37 anos de idade vítima do stalinismo, cujo nome e obra sobreviverão aos de Stalin, escreveu num poema que ouvira dizer que havia um homem feliz em algum lugar do mundo, parece que no longínquo Brasil. Tomara que ele esteja certo.

Crédito: Artigo publicado no O Globo no dia 20/11/2016 na página do DIAP – disponível na web 21/11/2016

Nota: O presente artigo não traduz a opinião do ASMETRO-SN. Sua publicação tem o propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

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