Uma pessoa é assassinada por dia em prisões do país. Temos a quarta maior população carcerária do mundo
A cabeça humana, ao contrário da de tantos animais que a portam na horizontal, à frente do corpo, não precisa de um pescoço musculoso para sustentá-la. Nossa postura de bípedes permite que a carreguemos com leveza no alto da espinha dorsal. Mas isso nos tornou troféus mais fáceis de ser abatidos do que leões ou cervos, como registra a antropóloga britânica Frances Larson em “Severed: A History of Heads Lost and Heads Found” ( Decapitados: Uma história de cabeças perdidas e cabeças achadas).
O livro de Larson soma ciência e psicologia para historiar o espetáculo de degolas humanas através dos séculos — inclusive o ressurgimento da prática neste milênio, através das execuções perpetradas pelos jihadistas do Estado Islâmico, transmitidas online e minuciosamente coreografadas.
Da obra publicada na Inglaterra há mais de dois anos constam toda sorte de considerações sobre os motivos que levam alguém a decepar uma cabeça humana a título de troféu. Difícil saber a que conclusão a autora chegaria se visse o açougue humano no qual se transformou o sistema carcerário brasileiro, onde detentos adotam a decapitação como linguagem, resultante da inércia do aparelho do Estado e da indiferença da sociedade.
Ou, como já disse em 2015 o ministro do Supremo Tribunal Federal Celso de Mello, no julgamento de uma ação proposta pelo PSOL declarando a inconstitucionalidade do sistema penitenciário brasileiro por violar os direitos fundamentais dos detentos, um “hiato de legalidade permite qualificar o próprio Estado como marginal no ordenamento jurídico, agente transgressor à legalidade”.
Três anos atrás, em 7 de janeiro de 2013, o jornal “Folha de S.Paulo” divulgou um vídeo de dois minutos e 32 segundos feito por detentos amotinados de Pedrinhas, a principal rede de presídios do Maranhão, que registrara 62 assassinatos entre presos nos 12 meses anteriores.
O filmete mostrava a comemoração do grupo com seus troféus de guerra intestina mais recente: três cabeças decepadas e seus corpos horrendamente torturados. Em off, ouvia-se alguém recomendar a quem segurava a câmera: “Tem que ajeitar o foco”.
À época, a governadora Roseana Sarney emitiu uma nota na qual considerou a divulgação do vídeo “repudiante”. “Ela fere todos os preceitos de direitos humanos e as leis de proteção aos cidadãos e à família (dos detentos mortos)…”, dizia a nota. Roseana, que estava na chefia do Executivo havia cinco anos, talvez preferisse que o inferno chamado Pedrinhas, sob sua custódia, permanecesse longe do noticiário.
Nova matança ocorreu entre domingo e segunda-feira passados, desta vez no Complexo Penitenciário Anísio Jobim e na Unidade Prisional do Puraquequara, de Manaus: 60 detentos mortos. Mais decapitações.
Diante de um país atônito e culpado, após cinco dias de silêncio sepulcral, o presidente da República, Michel Temer, se materializou mais cavernoso do que nunca: “Quero mais uma vez solidarizar-me com as famílias que tiveram seus presos vitimados nesse acidente pavoroso”, arranhou, junto com a tentativa de empurrar a responsabilidade pelas mortes à empresa que gerencia, a peso de ouro, os presídios no Amazonas.
E o anúncio de um novo Plano Nacional de Segurança, é claro. Mas antes que este fosse delineado pelo ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, em Brasília, um solavanco já no dia seguinte, em Roraima. As primeiras informações da madrugada de sexta feira falavam de pelo menos 33 presos mortos na maior penitenciária do estado — 30 deles decapitados e alguns teriam tido o coração arrancado.
Dois meses antes, a mesma penitenciária — cuja capacidade é para 700 pessoas mas abriga 1.700 — já havia sido palco de um confronto que resultou em 11 mortes. Também com decapitações. E corpos incinerados.
Os dados desse retrato bruegeliano todos conhecem: uma pessoa é assassinada por dia em prisões do país. Temos a quarta maior população carcerária do mundo, atrás dos Estados Unidos, China e Rússia. No Brasil 42% dos presos são “provisórios”, ainda não foram julgados, enquanto a média nos países desenvolvidos é de 8%. E em Manaus, onde esse índice atinge 53% dos detentos, o repórter Thiago Herdy constatou que o Poder Judiciário segue um horário de expediente de seis horas diárias. Lei adquirida.
Desde a primeira Comissão Parlamentar de Inquérito do Sistema Carcerário, de 2008, em que o colegiado visitou 82 presídios de 18 estados e concluiu que o sistema prisional estava falido, pretende-se estabelecer normas de separação de presos por tipo de delito e pena, inspeções mensais às carceragens, priorizar penas alternativas, acelerar a legislação processual.
A segunda, instalada em 2015, tinha objetivos quase idênticos, acrescida de um alerta à sociedade. Tampouco avançou, como se vê.
Quando o reluzente Alexandre de Moraes proclama “Vamos tentar algo diferente, vamos ousar”, como fez esta semana, ao anunciar que nos próximos seis meses serão informatizados todos os dados sobre os presídios, junto com as informações pessoais dos detentos e de seus processos criminais, soou um pouco como o secretário estadual de Justiça e Administração Penitenciária de Roseana Sarney em 2013.
Em meio à tempestade da matança em Pedrinhas, Uchoa anunciara que o governo estadual investiria R$ 131 milhões no aparelhamento do sistema maranhense e ergueria seis presídios em seis meses.
Os porões da democracia liberal estão revoltosos.
Crédito: Artigo publicado dia 08/01/2017 no jornal O Globo – disponível na web 09/01/2017
Nota: O presente artigo não traduz a opinião do ASMETRO-SN. Sua publicação tem o propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e de refletir as diversas tendências do pensamento