A imprevisibilidade de que a garantia oferecida ao agente colaborador será efetivamente aplicada pelo Estado esvazia o instituto do acordo de leniência
Nas últimas semanas, ganhou destaque nacional a discussão acerca da amplitude dos efeitos dos acordos de leniência celebrados por empresas com o Ministério Público Federal. Se durante muito tempo os noticiários se ocupavam do processo de negociação desses acordos por grandes empresas nacionais, agora, com a estabilização dos pactos, os seus efeitos e abrangência parecem querer figurar como pontos de polêmica. Essas polêmicas, no entanto, devem ser afastadas, pois, levando-se a legislação e a Constituição Federal a sério, não há margem para interpretações que queiram enfraquecer o instituto.
O acordo de leniência é internacionalmente reconhecido como meio de combate à corrupção e às organizações criminosas. Sem ele, a tarefa de se desmantelar organizações institucionalizadas seria muito mais árdua e, talvez, inalcançável. O pacto é um instrumento consensual, em que ambas as partes — de um lado, o Estado, e, de outro, o agente privado — devem oferecer elementos que tornem a celebração do acordo atrativa.
Enquanto para o Estado é necessário que o agente criminoso traga elementos novos, de interesse público, que viabilizem investigações novas ou alavanquem as existentes, para o agente o acordo também deve também trazer contrapartida relevante. Nesse tocante, o prévio conhecimento pelo agente da penalidade que lhe será imposta pelo Estado é a moeda de troca mais eficaz. Assim, a imprevisibilidade de que a garantia oferecida ao agente colaborador será efetivamente aplicada pelo Estado esvazia o instituto do acordo de leniência, pois retira o estímulo para que o pacto seja celebrado por novos agentes. A incerteza quanto ao resultado final do acordo impede que o agente privado anteveja os seus ganhos futuros. Estimula, por conseguinte, a manutenção do silêncio e a perpetuação da agenda ilícita.
Ganha relevo, portanto, sugestão recente do Tribunal de Contas da União de que as empresas que celebraram acordo de leniência podem ter drasticamente majorados os seus pactos financeiros firmados com o MPF. Trata-se de afirmação alinhada à atual postura, ainda pontual, da Advocacia-Geral da União de se opor judicialmente à validade dos mesmos acordos de leniência, ao frágil fundamento de que todo e qualquer órgão público afetado por um pacto dessa relevância precisaria participar previamente da negociação.
O maior problema decorrente da posição é justamente a quebra da previsibilidade necessária à celebração de acordos de leniência, com forte mensagem de desestímulo para que futuros grupos empresariais adotem práticas semelhantes. Se o propósito for efetivamente suplantar as condições estabelecidas no acordo celebrado com o MPF, TCU e AGU terminarão por esvaziar o instituto.
Não há fundamento legal ou constitucional que autorize esse raciocínio. A previsibilidade das garantias do acordo de leniência não só deve ser assegurada ao agente colaborador como meio de se viabilizar o acordo, mas é consequência da própria unicidade da administração pública, que, uma vez representada pelo MPF em acordos dessa envergadura, não pode transmitir mensagens contraditórias aos administrados apenas em razão de conflitos internos entre os seus órgãos e agentes públicos. A segurança jurídica é pressuposto para que os acordos de leniência continuem a ser vistos como opção possível pelas empresas e, assim, sejam mantidos como um dos principais instrumentos dos quais o Poder Público pode lançar mão para desmantelar organizações e esquemas criminosos.
Artigo publicado no Jornal O GLOBO – disponível na internet 12/04/2017
Nota: O presente artigo não traduz a opinião do ASMETRO-SN. Sua publicação tem o propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo