Não há nenhum santo.

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Por ter sobrevivido a 27 anos de encarceramento, o líder antiapartheid Nelson Mandela cuidava de não jogar palavras fora. Escreveu em sua autobiografia: “Diz-se que ninguém conhece uma Nação até ter estado nas suas prisões”. Ele foi preciso: “Uma Nação não deve ser julgada pela forma como lida com os seus privilegiados, mas pela maneira como trata os mais humildes”. O livro está disponível há anos em português, baratinho (R$ 26), editado pela Nossa Cultura com o título de “Longa Caminhada até a Liberdade”.

Pena que não seja leitura recomendada nos gabinetes federais e estaduais do Brasil. Tampouco parece ter-se alojado na consciência dos brasileiros. Continuamos a tratar nossos mais humildes, criminosos ou não, sob custódia ou não do Estado, como lixo.

Um ano atrás, diante de um país atônito e desconfortável com a matança de 57 detentos no Complexo Penitenciário Anísio Jobim, em Manaus (57 mortos, decapitações a rodo), e após cinco dias de silêncio sepulcral, o presidente Michael Temer fez um pronunciamento à nação: “Quero mais uma vez solidarizar-me com as famílias que tiveram seus presos vitimados nesse acidente pavoroso”, disse.

Esta semana, após a explosão de violência entre facções na colônia penal de Aparecida de Goiânia, nem isso. O foco do chefe da nação estava alhures. “Estou recuperadíssimo”, “Estou ótimo”, preocupou-se em demonstrar durante uma caminhada com local e horário agendados para as câmeras, referindo-se à sua condição física.

Amanhã a togada Cármen Lúcia, presidente do Supremo Tribunal Federal e do Conselho Nacional de Justiça, também deve fazer demonstração de musculatura com garantia de farta cobertura. Está prevista uma visita da ministra ao dilapidado muquifo prisional de Goiânia.

Cabe a pergunta: para ver o quê, além do que já foi inspecionado e relatado em ofício dias atrás? Para descobrir o quê, além do que já constava de um relatório produzido em 2015 e que alertava para “a precariedade da situação do sistema de cumprimento de pena no regime semiaberto” e “fortes indícios de conflito entre grupos rivais”?

Empenhada em destravar a falência dos presídios nacionais, Cármen Lúcia visitou 14 prisões de 7 Estados e Distrito Federal nos seus primeiros doze meses à frente do SFF e do CNJ. Prometeu que até abril de 2018 o Banco Nacional de Monitoramento de Prisões, uma plataforma com dados processuais de presos, deverá estar em funcionamento em todos os estados da União. Mas entre avanços e recuos, o quadro pouco se alterou.

Um ano atrás, depois que 30 presos foram decapitados em Roraima, o então ministro da Justiça Alexandre de Moraes proclamara, com empáfia, que no prazo de seis meses todos os dados sobre presídios, processos criminais e fichas pessoais de 3 detentos estariam informatizados. Já se vão doze meses, mas as prioridades do hoje juiz do Supremo, migraram.

Entrementes, o Brasil ultrapassou a Rússia em tamanho de população prisional e pulou de quarto a terceiro colocado, atrás apenas de Estados Unidos e China. Pelos dados do Depen (Departamento Penitenciário Nacional), também alcançamos a terceira maior taxa de encarceramento por 100 mil habitantes (342). Somos o único país entre esses top five no qual a população carcerária só faz crescer, enquanto o número de vagas diminui e o percentual de presos sem condenação (40,2%), aumenta .

O que muda o patamar de insegurança nas ruas do Brasil está diretamente ligado ao sistema carcerário nacional, classificado de “medieval” por outro ex-ocupante da pasta da Justiça, José Eduardo Cardozo.

Em entrevista à “Folha de S.Paulo” um dos coordenadores da ONG Conectas Direitos Humanos, Rafael Custódio, faz diagnóstico semelhante ao de Mandela, apenas usa linguagem diferente: “O Brasil continua insistindo no erro de encarceramento em massa de pobres, negros e jovens. Um Estado que deixa sua taxa de ocupação chegar a esse ponto é um Estado omisso e conivente. O resultado do levantamento é o reflexo de uma opção política”. E da anuência do eleitorado nacional.

Em janeiro de 2017, em resposta à chacina de 17 horas que matou quase 60 detentos sob guarda, o então governador do Amazonas, José Melo (Pros) afirmara que “não tinha nenhum santo” entre os mortos na selvageria.

Na ocasião, Melo também voluntariou “tirar dinheiro do meu estado e colocar em um fundo” de combate à entrada de drogas no país. Promessa cumprida em parte. Segundo investigação da Operação Maus Caminhos, ele de fato tirou dinheiro do seu estado (da verba da saúde), mas não para financiar o trabalho das Forças Armadas nas fronteiras.

Foi preso às vésperas do último Natal por suspeita de desvio de R$ 50 milhões.

É em sua casa que parece não haver nenhum santo. Três dias a esposa Edilene também foi presa e levada para a carceragem da Polícia Federal. Segundo a juíza Jaiza Praxe, recaem sobre ela “provas suficientes de materialidade do crime de peculato, do crime de lavagem, do crime de fraude em licitações, do crime de corrupção e do crime de formação de organização criminosa”.

Feliz Ano Novo.

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