Quando um jovem antropólogo perguntou a um chefe indígena como ele administrava seu povo, sua resposta foi exemplar. Quando — disse ele — o pátio central da aldeia precisa ser limpo, eu pego o meu facão e inicio a tarefa. Pouco a pouco, os outros chegam, e logo todos estão fazendo o que deveria ser feito. Esse mesmo chefe ensinou a esse mesmo rapaz uma antinorma da antipolícia brasileira: um bom chefe não acumula, ele distribui…
O exemplo como exemplo é o apanágio dos humanos. Esses bichos que não nascem prontos. São programados para não terem programa e, por viverem na dúvida, precisam de mandamentos, leis e ideologias, quase sempre vindas do céu e dos deuses, que variam entre si, dependem de pessoas e, como ensinou Marx, de circunstâncias. O que é amizade aqui, é corrupção por lá; o que é ativismo político acolá, é crime aqui… Por isso, esse “bicho-homem” mata em nome da vida, suplicia em nome de Deus, torna-se criminoso aviltando boas causas.
No nosso caso, eis a descoberta simultaneamente alarmante e transformadora, os partidos do poder sempre foram donos e “cuidadores” do povo brasileiro. Os eternos “doutores”, tidos como sábios, sabiam o que fazer para levar o Brasil a um nobre futuro. Tanto isso é verdade que hoje conseguimos ter linhagens de boçais que, cruzando entre si, estão suicidando o país mas sem deixar de fazer — sejam eles de um lado ou do outro — o que sempre tiveram o direito de fazer: roubar a coisa pública em redes de favores.
Eu fico chocado quando ouço pessoas falando do “Brasil” como se elas não fossem também o Brasil e não precisassem de ninguém para fazer o país que desejam. Na nossa alma, somente o “governo” é responsável e capaz de modificar o Brasil. Neste caso, o exemplo viria dos administradores-donos, não somente do poder (na fórmula de Faoro), mas desse coisificado Brasil.
Uma visão vertical do sistema nos leva a olhar quem está por cima (para pedir ou obedecer) ou por baixo (para favorecer ou cuidar) mas uma perspectiva horizontal, hoje obrigatória, muda tudo. Agora, o exemplo vem, esperamos, dos “supremos”, mas também do bom senso igualitário: de um olhar agudo para os lados. Sem isso, vamos continuar procurando messias e santos e encontrando caudilhos e boçais.
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Cito um exemplo clássico:
“Quando Xerxes, o grande rei dos persas, perguntou como aquelas cidades gregas sem rei se levantariam contra ele, Demaratus (rei de Esparta exilado) replicou: ‘Eles têm, sim, um senhor, e esse senhor é a lei que eles temem muito mais do que qualquer dos seus súditos. O que esse mestre comanda eles obedecem, e esse comando jamais varia — ele jamais retrocede nas guerras quaisquer que sejam as circunstâncias e permanecem em formação para conquistar ou morrer’.” (ver Alan Ryan, “On Politics”)
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Estamos muito longe dos gregos e mais ainda dos “índios”, que a boçalidade cultural situa na “Idade da Pedra”. Como ibéricos, o que vale para uns não vale para os outros. Cada caso é um caso e, embora a lei seja a mesma, o que conta não é o crime, mas quem o praticou. Não é a lei que submete o “paciente”; é — estamos pagando para ver — o “paciente” que a engloba.
A lei, reitero neste Domingo de Páscoa com um desalento esperançoso, depende de quem estamos falando.
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No livro de Suzanne Chantal, “A vida quotidiana em Portugal ao tempo do terremoto (1755)”, Lisboa: Livros do Brasil, 1962, ela fala de uma instituição pouco analisada, mas rotineira lá e aqui: o empenho.
“O chefe da família (e da casa) era, mais ou menos, o responsável (…) pelo casamento das raparigas e pelo emprego dos rapazes. Acresce, assim, que muitas vezes tinha que meter empenhos por seus protegidos, e fazia-o sem escrúpulos nem vergonha. ‘Nomeie, pois, este rapaz oficial num dos seus regimentos’ — dizia tranquilamente um português ao Conde de Lippe, vindo para reorganizar o Exército — ele foi meu companheiro durante vinte e cinco anos e isso merece recompensa.
Custava recusar qualquer coisa a um amigo — que aliás era quase sempre um pouco compadre ou parente (…) por isso abundavam funcionários inúteis, legiões de criados, os procuradores parasitas que gravitavam, obsequiosos e sem problemas, à volta de todo homem de bem.
A proteção (…) estendia-se aos mais deserdados mas também aos menos merecedores. Recomendava-se um incapaz e afiançava-se sem hesitações um malandrim. Desde que fosse primo de uma criada ou bastardo de um primo irrequieto. Uma pessoa influente pede a outra em benefício de uma terceira, geralmente indigna ou nula, e obtém para esta um favor imerecido, ou a sua isenção de um antigo merecido. De fato. (…) a influência pessoal era usada a torto e a direito.(…) Um pedido tornava-se um teste. Quanto pior fosse o caso, quanto mais o protegido tivesse ofendido a moral ou a lei, quanto mais obstáculos houvesse a vencer, mais o protetor afirmaria o seu poder.(…)” (pagina 141).
Seria daí que viria o exemplo?
Artigo publicado no Jornal O Globo – disponível na internet 05/04/2018
Nota: O presente artigo não traduz a opinião do ASMETRO-SN. Sua publicação tem o propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.