Ruth Nussenzweig, um modelo de cientista.

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A Parasitologia mundial perdeu, neste início de abril, um dos seus nomes mais relevantes. Trata-se de Ruth Nussenzweig, pesquisadora brasileira que, por força das circunstâncias políticas no Brasil no período 1960–1970, terminou se radicando em Nova York, onde se projetou internacionalmente graças aos seus trabalhos no campo da malária.

Além da importância científica per se, seu trabalho tem importância social, uma vez que aponta no sentido de se ter uma vacina razoavelmente eficiente para a prevenção da malária. Esta vacina, ainda que não ideal, poderá minimizar o efeito de uma doença com elevado grau de mortalidade e morbidade em vários países da África bem como no Brasil, principalmente na região amazônica.

Um dos seus nomes mais relevantes da Parasitologia mundial 

Ruth, cuja história de vida precisa ser melhor conhecida pelas novas gerações, nasceu em Viena em 20 de junho de 1928 e faleceu em 1º de abril de 2018 em Nova York. Como filha de pais judeus, sentiu de perto a perseguição nazista logo em seguida à anexação da Áustria à Alemanha.

Para facilitar a saída do país, sua mãe Eugênia se “converteu” ao catolicismo, via obtenção de um certificado de batismo através de um padre polonês, o que permitiu viver na Bélgica e, em seguida, ir para São Paulo, onde finalizou seus estudos básicos e ingressou na Faculdade de Medicina da USP em 1948, se formando em 1953.

Já no segundo ano do curso médico iniciou o que hoje chamamos de iniciação científica, na excelente equipe de Parasitologia, dirigida por Samuel Pessoa, uma das mais importantes lideranças da Parasitologia brasileira.

Ao terminar seu curso em 1954, atuou como professora assistente de Parasitologia. Em 1958, foi para o Collège de France em Paris, retornando ao Brasil em 1960, indo trabalhar com o professor Otto Bier na então Escola Paulista de Medicina. Em 1963, foi para Nova York trabalhar com o imunologista Zoltan Overy.

Regressou ao Brasil em 1965, mas encontrou um quadro conturbado politicamente e decidiu regressar a Nova York. Assumiu em 1965 a posição de professora auxiliar do Departamento de Parasitologia da New York Medical School, chefiado à época por Harry Most. Nesta instituição encontrou excelentes malariologistas como Jerry Vanderberg e Meyer Yoeli. Neste departamento fez uma rápida carreira chegando a professora associada em 1968 e a titular em 1976.

Neste espaço de tempo conseguiu estabelecer uma excelente infraestrutura de pesquisa para malária onde recebeu pesquisadores de vários países, inclusive do Brasil. Desenvolveu pesquisas fundamentais sobre o comportamento de esporozoitas (forma infectiva da malária encontrada na glândula salivar do inseto vetor) irradiados e inoculados em animais, criando as bases para o desenvolvimento de um processo preventivo para a malária, via o desenvolvimento de uma vacina.

Como marcos históricos dos seus trabalhos podemos destacar:

  1. a) os primeiros experimentos em animais em 1967 mostrando o efeito imunizador estágio específico de esporozoítos irradiados abrindo caminho para o desenvolvimento de uma vacina;
  2. b) estudos mais aprofundados que permitiram identificar a presença na superfície dos esporozoítas de uma proteína imunogênica, que ficou conhecida como circumesporozoíta (CSP);
  3. c) o desenvolvimento de peptídeos com base na estrutura primária da CSP e demonstração de sua capacidade de estimular o sistema imune;
  4. d) os primeiros testes das vacinas em voluntários humanos no Instituto de Pesquisas Walter Reed;
  5. e) o aperfeiçoamento de uma vacina utilizando a proteína recombinante, agora já desenvolvida em escala industrial pela Glaxo Smith Klein, conhecida como RTS,S, que se encontra em teste de larga escala em países como Gana, Maláui e Quênia.

Importante ressaltar que o desenvolvimento do projeto ao longo de muitos anos foi apoiado significativamente pela Agência Internacional de Desenvolvimento dos Estados Unidos (Usaid) e pela Fundação Starr.

Foi apenas no final da década de 1970 que tive o primeiro contato com Ruth graças a um convite que me fez para apresentar o trabalho que eu vinha desenvolvendo sobre a caracterização da superfície do Trypanosoma cruzi, sob a orientação de Hertha Meyer (também uma pesquisadora judia que teve que emigrar de Berlim para o Rio de Janeiro). Desde então, passamos a interagir várias vezes, seja em Nova York ou no Brasil.

O trabalho desenvolvido por Ruth teve grande repercussão internacional, o que a levou a receber muitas honrarias e prêmios. Destaco o Prêmio Paul Ehrlich and Ludwig Darnstaedter, em 1985; a Ordem do Mérito Nacional na classe Grã-Cruz, em 1998; membro da Academia Nacional de Medicina dos Estados Unidos, em 2007; a Medalha de Ouro Albert Sabin, em 2008; o Le Price Medal e a Clara Southmayd Ludloow Medal, ambas da American Society of Tropical Medicine and Hygiene; membro da Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos, em 2013.

Sua vida pessoal e profissional foi compartilhada com seu colega de faculdade, Victor Nussenzweig, também nome de grande prestígio internacional tanto na Imunologia como na Parasitologia, e que participou ativamente do projeto de desenvolvimento de uma vacina para combater a malária.

Artigo publicado dia 16/04/2018 na página do Jornal Monitor Mercantil – disponível na internet 18/04/2018

Nota: O presente artigo não traduz a opinião do ASMETRO-SN. Sua publicação tem o propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

Ruth Sonntag Nussenzweig

A bióloga Ruth Sonntag Nussenzweig nasceu na Áustria e emigrou para o Brasil ainda menina. Formou-se na Escola de Medicina da Universidade de São Paulo (USP),onde iniciou sua formação científica no Departamento de Parasitologia. Trabalhou vários anos no problema da transmissão da doença de Chagas, demonstrando que ela pode ser adquirida por transfusão sanguínea e que a adição de violeta de genciana ao sangue infectado previne a transmissão da doença. Realizou seu pós-doutoramento em bioquímica, no Collège de France. Posteriormente, foi trabalhar nos EUA, na Universidade de Nova Iorque (NYU), onde iniciou estudos relativos à resposta imune contra a malária. Fez uma grande descoberta, publicada na revista “Nature”, em 1967, demonstrando em animais de laboratório que era possível obter proteção contra o parasita causador da malária por meio da irradiação do micróbio. Desde 1984, é professora titular do Departamento de Parasitologia Médica e Molecular da NYU. Prestou consultoria à Organização Mundial de Saúde, entre outras, em atividades voltadas para o controle e a erradicação de doenças tropicais. Foi honrada com inúmeros prêmios, dentre os quais a Ordem Nacional do Mérito Científico, classe Grã-Cruz, da Presidência da República do Brasil (1998).

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