Crise empurra mais 200 mil pessoas para o trabalho na rua.

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Trabalhadores que tinham carteira assinada e até com curso superior viraram ambulantes para sobreviver.

A crise econômica empurrou trabalhadores para as ruas e abarrotou as calçadas dos centros urbanos. Para garantir renda para a sobrevivência, cerca de 200 mil novos ambulantes passaram a disputar espaço com pedestres nas vias das grandes cidades entre 2014 e 2017, quando o número de brasileiros ganhando a vida como camelôs chegou a quase 1,7 milhão. É o que mostram os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua, do IBGE. Segundo o instituto, apenas 5% desse contingente no país têm licença para trabalhar. A crise fez com que trabalhadores que antes tinham carteira assinada e, em alguns casos, até curso superior tivessem de trabalhar nas ruas.

No Estado do Rio, que tem a terceira maior população de ambulantes do Brasil, esse grupo cresceu 20% nos três últimos anos, para 145 mil em 2017. Em outros 14 estados, o aumento também foi de dois dígitos, com destaque para Bahia (26%) e São Paulo (25%). Boa parte desses novos ambulantes perdeu a estabilidade de um emprego com carteira assinada e passou a lidar com a imprevisibilidade do varejo informal.

— Na rua, você fica mais exposto a tudo — define a copeira Sueli dos Santos Freitas, de 45 anos, que começou a vender meias no Centro do Rio há seis meses e ainda tenta se acostumar. — No início, até pegar amizade, é mais difícil. Tem que ter um bom relacionamento com um comerciante, para ele deixar você usar o banheiro, e com os colegas de rua, para cuidarem da sua banca. Se chove ou venta, não dá para trabalhar. E ainda tem os guardas municipais. Quando alguém grita que eles estão vindo, é preciso recolher tudo rápido e correr com a mesa na cabeça.

No auge da crise, em 2015, Sueli foi demitida da empresa prestadora de serviços onde trabalhou por cinco anos. Era copeira em um hospital. Não conseguiu mais uma nova vaga. Em maio de 2016, foi a vez de o marido perder o emprego de porteiro depois de ter trabalhado 16 anos no mesmo condomínio. O filho, bombeiro civil, está desempregado desde o fim dos Jogos Olímpicos. O jeito foi a família toda ir para o mesmo quarteirão do Centro vender meias.

— Trabalho desde os 12 anos e, depois dos 18, sempre com carteira assinada. Estou na rua agora por necessidade. Para poder levar o pão de cada dia para casa. Mas, se Deus quiser, vou sair daqui — diz Sueli, que não deixou de entregar currículo nas agências das redondezas nem parou de contribuir com o INSS, preocupada em contar tempo para a aposentadoria.

‘UMA TÁBUA DE SALVAÇÃO’

Para Cimar Azeredo, coordenador de Trabalho e Rendimento do IBGE, o crescimento dos ambulantes é um indicativo de que a recuperação econômica ainda é fraca:

— Essas pessoas foram lançadas na rua contra a vontade. Ninguém sonha em ser ambulante. Mas, na atual conjuntura, encontram na informalidade uma tábua de salvação.

Allan Felippe Sousa da Silva perdeu o emprego na construção civil e agora vende óculos de sol na rua – Márcia Foletto / Agência O Globo

Em um largo próximo à banca de Sueli, um estudante vende cuecas para pagar a faculdade. Ele está no 4° período de Direito e pede para não se identificar. Mas conta que trabalhou por oito anos como vendedor de uma grande rede varejista até ser demitido no ano passado. Desde então, não conseguiu outro trabalho formal. Allan Felippe Sousa da Silva, 26, também perdeu o emprego na construção civil no ano passado. Há um ano e três meses vendendo óculos de sol a R$ 10 para brasileiros e US$ 10 para os turistas estrangeiros nas ruas, ele ganha quase o dobro do salário que tinha quando estava empregado. Mas não vê a hora de sair da rua:

— Tem muita concorrência. Estou sem pagar o INSS, não ganho mais alimentação nem tenho mais plano de saúde.

Apesar de muitos camelôs contarem que o que ganham com as vendas, sem descontos no contracheque, pode superar o salário que tinham no mercado formal, os dados do IBGE mostram que a renda média dos ambulantes não chega à metade da média de todos os trabalhadores. Com mais gente trabalhando nas ruas, o rendimento desse grupo caiu. No último trimestre do ano passado, dado mais recente do IBGE, somava R$ 958. Há três anos, era de R$ 996. No Estado do Rio, ainda que maior que a média nacional, também houve queda: de R$ 1.163 para R$ 1.145, no mesmo período.

O desemprego provocado pela crise também levou para a informalidade trabalhadores com qualificação. Formada em Administração, Marianne Silva, 26, trabalhou por cinco anos no setor administrativo de uma fabricante de doces. Há três, ela vende quentinhas na rua.

— Eu e muitos colegas fomos demitidos juntos. Na época, minha mãe já vendia comida na rua e estava cansada. Como não consegui mais emprego, resolvi ajudá-la e aqui fiquei — conta a jovem.

A atual explosão de ambulantes não é exclusividade da atual crise, que ainda desemprega 13,7 milhões de brasileiros. É um movimento recorrente no país em tempos de recessão, como nos anos 1980 e 1990, observa a cientista social e antropóloga Rosana Pinheiro Machado, que estuda o tema há 20 anos:

— No imaginário brasileiro, isso não é visto como um trabalho, mas hoje os ambulantes estão salvando o país de uma crise que poderia ser ainda maior.

Para Benedito Roberto Barbosa, advogado do Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos, de São Paulo, a falta de regulamentação de territórios próprios para ambulantes está por trás do caos urbano associado a esta atividade:

— O poder público, junto da sociedade, precisa definir que tipo de comércio é possível em cada região. Sem controle sobre o território, há infiltração de pessoas indevidas, e a informalidade se generaliza. Aumentam conflitos com a polícia, comerciantes e pedestres.

‘PERDA DE CAPITAL HUMANO PODE SER IRREVERSÍVEL’

Economista da FGV, Fernando Veloso, alerta para os impactos negativos do aumento da informalidade na produtividade e na retomada da economia

Quais são os impactos negativos do aumento da informalidade na economia?

Uma maior informalidade diminui a velocidade da recuperação econômica, pois a produtividade do setor formal é cerca de quatro vezes maior que a do informal. Os negócios informais usam menos capital, menos tecnologia, empregam trabalhadores com menor escolaridade e qualificação e não têm acesso a crédito, ficando impossibilitados de crescer. E os ambulantes estão no extremo inferior da informalidade.

Isso quer dizer que, se esse grupo aumenta, prejudica ainda mais a retomada?

Sim, pois você está deslocando trabalhadores para o setor menos produtivo de toda a cadeia. O fato de pessoas que tinham carteira terem ido para a rua mostra que a informalidade não só prejudica o crescimento como a recuperação da própria produtividade do trabalho. O ambulante é o trabalhador menos produtivo de todo o mercado de trabalho.

Quais são os impactos para esse trabalhador?

Numa empresa, a tendência é que a produtividade do trabalhador cresça em razão da vivência naquele ambiente, das experiências que ele vai acumulando e de seu desenvolvimento dentro daquele ambiente. Ao partir para a informalidade, há uma perda de capital humano.

Essa perda pode ser recuperada?

Quanto mais tempo esse trabalhador passar na rua, mais persistente será essa perda, mais as habilidades dele ficarão defasadas. Talvez, quando ele voltar a ter um emprego com carteira, não consiga mais acompanhar as mudanças que estão acontecendo em termos de tecnologia e robótica, por exemplo. É uma perda que pode ser irreversível.

No Rio, mais de 5 mil ambulantes esperam licença para se formalizar. Prefeitura diz que há vagas, mas para atuar no interior dos bairros

Juliana se formou em gastronomia, mas não conseguiu emprego na área. Trabalha na rua, como a mãe – Márcia Foletto / Agência O Globo

Com mais desempregados buscando renda alternativa no comércio de rua, o Rio tem quase 5,5 mil ambulantes na fila de espera por uma licença para trabalhar formalmente nas ruas. A demanda aumentou com a crise, mas a grande maioria trabalha sem autorização. Segundo o coordenador de Licenciamento e Fiscalização da prefeitura do Rio, Luiz Felipe Gomes, há 14,3 mil ambulantes formais na cidade, enquanto o número de informais é estimado em quase 56 mil, totalizando perto de 70 mil ambulantes na capital fluminense. Antes da crise, esse número não passava dos 50 mil, diz o coordenador.

Enquanto a fila de espera cresce, a prefeitura diz que sobram 4,2 mil licenças, mas não nos lugares onde os ambulantes querem ficar. As vagas são para zonas periféricas dos bairros das zonas Norte e Oeste, mas o Movimento Unidos dos Camelôs (Muca) argumenta que a demanda nessas zonas é baixa, fazendo com que a atividade não compense. Os camelôs disputam as áreas centrais dos bairros, além do Centro e Zona Sul.

— Não há mais como acomodar ambulantes no Centro, ou nos centros de Bangu e de Campo Grande, por exemplo. Para o interior dos bairros eles não querem ir — diz Gomes.

RISCO COM DEPÓSITO CLANDESTINO

Allan Felippe Sousa optou por vender óculos num ponto movimentado do Centro para ficar no caminho dos clientes:

— Já havia sido camelô há oito anos. Depois consegui emprego com carteira e não queria outra vida. Como tive de voltar para a rua, escolhi um lugar por onde passa muita gente, sem outros vendedores de óculos.

A própria presidente do Muca, Maria de Lourdes do Carmo, queixa-se do aumento descontrolado de camelôs.

— As pessoas que antes compravam da gente agora vêm para a rua trabalhar e disputar espaço e clientes. Com isso, nossa renda caiu. Mas não há como trabalhar no interior dos bairros. Não tem quem compre — diz a comerciante com 23 anos de experiência na rua, há quatro anos formalizada.

A filha de Maria de Lourdes, Juliana do Carmo, de 27 anos, já teve emprego formal, mas atualmente vende balas, chicletes e biscoitos ao lado da banca em que a mãe trabalha. Ela concluiu o curso superior de Gastronomia, há um ano e meio, mas não conseguiu emprego na área.

— Só saio da rua quando conseguir emprego na minha área. Mas, em todo restaurante que vou, eles dizem que só aceitam homens na cozinha — reclama a jovem, que de quarta a sexta complementa a renda, de cerca de R$ 1,2 mil mensais, com a venda de churrasquinho em outro local, onde ganha mais R$ 800.

Em busca de uma alternativa para garantir a sobrevivência, os novos ambulantes acirram a disputa do território urbano com pedestres, antigos camelôs e lojistas, numa relação por vezes amigável e por outras conflituosa. Além da maior competição, o aumento de vendedores agravou outro problema: a falta de locais adequados para o depósito das mercadorias.

O coordenador do departamento de Fiscalização disse que a prefeitura está finalizando uma nova regulamentação que vai obrigar os ambulantes licenciados a usarem crachá e manterem junto às barracas as notas fiscais dos produtos, para facilitar a identificação dos vendedores legais e coibir a venda de produtos sem origem comprovada. Com relação a uma possível solução para os depósitos das mercadorias, informou, por e-mail, que trata-se de “‘questão de relação privada dos ambulantes com os donos do depósitos”

A prefeitura do Rio estima que 70 mil ambulantes atuem nas ruas, a maior parte na informalidade – Márcia Foletto / Agência O Globo

Segundo a coordenadora do Muca, a maior parte é obrigada a pagar entre R$ 50 e R$ 60 por semana a pessoas que se apropriam de prédios abandonados para fazer desses locais depósitos clandestinos:

— Eu pago R$ 1,5 mil por mês por uma sala comercial para guardar as roupas que vendo. Mas a maioria, que não tem condições, acaba deixando em depósitos clandestinos, sujeitos a fiscalização. E, quando eles aparecem (os fiscais), levam tudo.

O presidente do Clube de Diretores Lojistas do Rio de Janeiro, Aldo Gonçalves, defende que a prefeitura aumente a fiscalização para tirar da rua vendedores sem licença ou com produtos sem comprovação de origem (roubados, contrabandeados e piratas).

— O aumento de ambulantes é péssimo. Para o comércio, que perde renda, para o vendedor, que deixa de ganhar comissão, e, além disso, derruba a arrecadação de impostos. Eles (os ambulantes) sujam a cidade, tomam conta das calçadas e impedem as pessoas de chegarem até a porta das lojas. O Rio vive uma desordem urbana terrível. A cidade está abandonada — reclama.

ORIGEM DAS MERCADORIAS

Para o urbanista Washington Fajardo, a fiscalização abandonou as ruas do Rio. Ele sugere que a prefeitura ofereça treinamentos para gastronomia de rua, artesanato e técnicas de venda e organize quermesses, feiras de bairro e festas culturais para converter o trabalho ambulante numa experiência urbana positiva:

— São necessárias políticas públicas de emprego e renda e é importante dar ordem à ocupação do espaço público. Não pode ser “liberou geral”.

A cientista social e antropóloga Rosana Pinheiro Machado, que mapeou a origem das mercadorias vendidas por ambulantes e pelo comércio formal, diz que, muitas vezes, os camelôs vendem mercadoria dos mesmos fornecedores dos lojistas:

— Há uma queixa histórica do comércio sobre a procedência dos produtos dos ambulantes. Ela faz sentido, mas não é a regra. Há camelôs que compram de grandes centros de distribuição em São Paulo, por exemplo. Produtos vendidos na Rua 25 de Março ou de um mesmo fabricante chinês podem ser encontrados tanto no comércio formal quanto nas mãos dos ambulantes — diz a antropóloga, que defende a formalização como solução. — Nunca vi alguém ter orgulho de ser marginal. Sempre que houver políticas de legalização adequadas, eles vão atender porque querem se tornar empreendedores. É a melhor forma de controlar a procedência dos produtos.

O coordenador do departamento de Fiscalização disse que a prefeitura está finalizando uma nova regulamentação que vai obrigar os ambulantes licenciados a usarem crachá e manterem junto às barracas as notas fiscais dos produtos, para facilitar a identificação dos vendedores legais e coibir a venda de produtos sem origem comprovada. Com relação a uma possível solução para os depósitos das mercadorias, informou, por e-mail, que trata-se de “‘questão de relação privada dos ambulantes com os donos do depósitos”

Crédito: Daiane Costa /O Globo – disponível na internet 14/05/2018

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