No país da papelada, leis e regras oneram empresas

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Bancos que precisam trocar os detetores de metal por máquinas de escaneamento corporal. Nos shoppings, é inútil ter um sensor de presença para as escadas rolantes, pois a exigência é que funcionem ininterruptamente. As academias, além de darem palestras sobre os riscos de anabolizantes todo mês, têm de ter um posto médico. Na fachada das farmácias, uma iniciativa prevê a necessidade de instalação de uma cruz de neon verde. Os bares até hoje têm de informar ao Procon quaisquer queixas que, em plena era digital, são registradas em um clássico livro de reclamações. São alguns exemplos de leis locais que dificultam a vida de empreendedores, por serem, muitas vezes, inócuas e elevarem os gastos de forma desproporcional.

E a lista cresce a cada ano. Para especialistas e empresas, esse emaranhado de obrigações gera despesas desnecessárias e não contribui para a melhoria dos serviços. Empresários e entidades do setor apontam ainda um agravante: a “exportação” dessas leis e projetos para outras cidades e estados. Funciona assim: a ideia vira um projeto, que é aprovado pelo legislativo local e, depois, reproduzido Brasil afora. Há casos em que uma mesma iniciativa está em andamento em mais dez casas ao mesmo tempo.

O cenário ajuda a entender o porquê de o Brasil ter cerca de 5,7 milhões de leis, decretos e normas complementares editados desde a Constituição de 1988, em âmbito municipal, estadual e federal, segundo o Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação (IBPT). Recentemente, por exemplo, tornou-se obrigatório as embalagens de produtos de limpeza apresentarem, em destaque, alertas sobre a necessidade de economia de água.

Segundo o advogado João Augusto Basilio, o país vive hoje uma “inflação legislativa”, reflexo da burocracia estatal e tentativa de intervenção na atividade privada.

Livro aberto
João está interessado na opinião dos clientes sobre seu restaurante
EXPECTATIVA:
criou um e-mail só para ouvir sugestões e queixas e colocou o endereço num cartaz bem vistoso
REALIDADE:
Acabou multado porque, em plena era digital, a lei da cidade dele obriga todo restaurante a manter o bom e velho livro de reclamações. Ainda que ninguém escreva nada ali

— É uma quantidade de leis que criam regras desnecessárias, elevando os custos para as empresas e sem agregar nada para o consumidor. No Rio de Janeiro, por exemplo, teve lei obrigando empresas prestadoras de serviço a higienizarem os ambientes. Mas isso é tão óbvio que não precisa de uma lei. Perdemos tempo com essas coisas, em vez de pensar em ideias mais importantes — afirma Basilio.

ESCÂNER EM BANCO E PALESTRA EM ACADEMIA

Vários setores sofrem com isso. Há uma série de leis e projetos focados em segurança que vêm causando preocupação no setor bancário. Um caso envolve o Rio, onde as agências são obrigadas a usar película fumê em todas as suas fachadas. E, em Niterói, um projeto de lei as obriga a instalarem máquinas de escaneamento corporal (semelhantes aos dos aeroportos dos Estados Unidos) em vez de detectores de metal. Outra iniciativa estadual quer ainda que bancos tenham vigilância armada 24 horas, nos sete dias na semana.

— O setor vem sendo alvo de leis e projetos improdutivos. Deveria ser regulado apenas pela União, e não de forma difusa. Há projetos que proíbem a contratação de serviços para idosos usando a biometria e ainda preveem o atendimento bancário diferenciado domiciliar a pessoas internadas, doentes e enfermas — diz uma fonte do setor.

Nem as academias de ginástica escapam. Na Câmara dos Deputados, por exemplo, uma iniciativa tenta obrigar cada unidade a ter um posto médico com enfermeiro. Outro projeto, replicado em vários estados, determina que as empresas de ginástica têm de abrir suas dependências para qualquer profissional de educação física, mesmo sem vínculo empregatício com a academia, atuar como personal trainer para os clientes.

Reserva de mercado
Cecília voltou de uma viagem à Europa interessada em empreender com uma ideia original: abrir um bar e vender drinks com destilados
EXPECTATIVA:
Poder alterar o mix e o estoque de produtos para surpreender os clientes do Rio
REALIDADE:
Será obrigada a disponibilizar quatro rótulos de cachaças produzidas no Estado do Rio por causa de uma lei estadual

— Esse projeto que permite que qualquer profissional de educação física entre na academia e dê aula para os clientes começou em uma cidade e foi aprovado pelos vereadores. Com isso, foi replicado exatamente igual em outras cidades e estados. Há casos como Aracaju (Sergipe) e Guarujá (São Paulo). Há iniciativas ainda em Paraíba, Mato Grosso do Sul e Amazonas. Há hoje uma epidemia de projetos de lei. Esse é um exemplo de algo que não faz sentido, pois uma academia tem limitação de espaço. Além disso, como você vai permitir que um profissional ministre aulas na sua rede sem saber se ele teve uma formação adequada? — questiona Marcio Duarte, assessor jurídico da Associação Brasileira de Academias (Acad).

Mas a lista vai além. No Rio, uma lei já determina que as academias concedam palestras mensais gratuitas alertando sobre os riscos do uso de anabolizantes, conta Duarte:

— Dependendo do tamanho da empresa, você fecha a academia, sobretudo se for pequena, ao criar determinado tipo de proporção ou exigindo a criação de espaços como posto médico. Hoje, 90% das 30 mil academias são as de bairro, com espaço de 500 metros quadrados.

FARMÁCIAS COM CRUZ EM NEON E NUTRICIONISTA

No Congresso, há 375 projetos de lei voltados para as farmácias. Um deles obriga que toda drogaria instale em sua fachada uma cruz de neon verde, como já é comum em países europeus. Entre diversos estados, como Rio, Minas Gerais e Espírito Santo, há projetos em andamento que obrigam cada farmácia a manter um nutricionista. Sérgio Mena Barreto, presidente-executivo da Abrafarma, entidade que representa o setor, com 76 mil farmácias no país, conta que, em muitos casos, o texto é idêntico.

— Muitas vezes, o texto é o mesmo, como o que envolve os nutricionistas. Há iniciativas para tudo que se possa pensar. O estado não pode regulamentar uma atividade. Essa iniciativa é um problema, pois a farmácia já conta com farmacêutico e ainda será obrigada a ter nutricionista para orientar na venda de produtos nutricionais sequer especificados pela lei — diz Barreto.

Shopping centers também são alvo de projetos de lei detalhistas, que, algumas vezes, beiram o absurdo. Como um caso em Campinas (SP), onde uma lei obrigava os empreendimentos a terem um número específico de vagas para bicicletas, mesmo que os complexos comerciais ficassem em rodovias, onde não há movimento de ciclistas. Em Manaus, outro projeto determinava que as escadas rolantes dos shoppings funcionassem o tempo todo.

— Em Manaus, o projeto determinava que a escada rolante funcionasse durante todo o horário de funcionamento do shopping. Não adiantava ter detetor de presença. Tivemos de ir até lá e mostrar que isso era ineficiente. O mesmo ocorreu com o bicicletário em Campinas. E, muitas vezes, um projeto de lei nasce em um estado e vai para outros locais. Já vi caso de um deputado que simplesmente copiou todo o texto, esquecendo-se de mudar o nome do estado — diz Glauco Humai, presidente da Abrasce.

OFERTA DE CACHAÇA REGULAMENTADA

Entre os bares e restaurantes, as exigências também são alvo de críticas. Segundo o SindRio, associação do setor na cidade do Rio, há leis que obrigam as casas a informarem sobre a presença de glúten e seus derivados e até a incluir cachaças produzidas no Estado do Rio em sua carta de bebidas — esta, recentemente suspensa. Para empresários, as leis oneram as companhias e não trazem benefícios ao consumidor. Segundo o SindRio, esses são exemplos de iniciativas que mostram a interferência do estado na iniciativa privada, onerando o funcionando das empresas.

Um empresário do setor destaca a obrigatoriedade de ter de informar ao Procon, mensalmente, o volume de queixas que o estabelecimento recebe em seu livro de reclamações. Caso não seja feita essa comunicação, o restaurante é multado.

— Isso tudo em plena era digital. O problema não é o livro. A questão é você ser multado. Há muitas disparidades e obrigações. Se eu precisar de uma quantidade maior de energia elétrica, tenho de comprar o transformador e doar o equipamento para a Light. O mesmo ocorre com a água. Tenho de doar o equipamento que garante uma vazão maior para a Cedae. O que não entendo é que eles é que têm de prover o serviço, mas eu é que tenho de pagar por isso. Não vejo contrapartida — queixa-se esse empresário.

Cláudia Cohn, presidente do Conselho Administrativo da Associação Brasileira de Medicina Diagnóstica (Abramed), lembra que o setor precisa estar constantemente atento aos projetos voltados para a área médica. Ela cita um projeto de lei que classifica como prática abusiva quando um hospital ou clínica pede autorização prévia ao plano de saúde para um procedimento médico:

— Há ainda um projeto que quer proibir a publicação, nos exames clínicos, das taxas de referências de glicose etc. Um projeto desses pode atrapalhar a todos, já que existem mais de três mil tipos de exames. Estamos sempre trabalhando de forma reativa. Havia uma lei em São Paulo, por exemplo, que proibia a circulação de material biológico em determinados horários. Tivemos de ir ao Ministério da Saúde.

Uma das cargas tributárias mais elevadas do mundo e um sistema complexo de pagamento de impostos são os principais entraves para que o Brasil tenha um ambiente de negócios favorável ao crescimento econômico. Isso é o que mostra um estudo dos economistas Marcelo Curado e Thiago Curado dentro da série “Desafios da Nação” preparada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).

Com base em um conjunto de fatores apontados pelo Banco Mundial como importantes para assegurar um bom ambiente de negócios (incluindo tempo para a abertura de empresas, custo para exportar, carga tributária e obtenção de alvarás), os especialistas definiram um indicador para medir a distância que os países estão das melhores práticas internacionais.

A variável é escalonada de zero a 100. No caso do Brasil, a pontuação média é de 56,2. Assim, para chegar à fronteira desejada é preciso avançar 43,8 pontos. O resultado é substancialmente menor que o observado em outras economias emergentes. Na China, por exemplo, o índice global é de 63,7. Outros exemplos são Malásia (74,9), México (71), Peru (68,3) e África do Sul (63,6). Entre os chamados Brics, só ganhamos — e por pouco — da Índia (55,2).

Considerando os indicadores individualmente, o trabalho mostra que o atraso brasileiro é bem mais crítico quando o assunto é o pagamento de impostos. Nesse quesito, o país obteve apenas 32,8 pontos, a maior distância do que seria considerado ideal. Isso significa que o país está a 67,2 pontos da fronteira desejada. Nos demais emergentes, o índice é mais favorável: China (60,3), Malásia (74,5), México (66,2), Peru (63,4) e África do Sul (79,3).

Entraves brasileiros
De acordo com metodologia desenvolvida pelo Ipea, o Brasil não vence outras nações emergentes em nenhum quesito usado pelo banco mundial para avaliar o ambiente de negócios dos países

PIB PER CAPITA PODERIA SER MAIOR

No Brasil, também há dificuldades na obtenção de crédito (45 pontos apenas) e na solução de insolvência (51 pontos). O indicador no qual o Brasil apresenta melhor desempenho é na obtenção de eletricidade (83,4 pontos).

Os pesquisadores afirmam que, num exercício extremo, no qual o Brasil conseguisse atingir o nível mais avançado de desenvolvimento do ambiente de negócios, teria acontecido um ganho de 2,48 pontos percentuais no crescimento médio do PIB per capita, indicador da renda, entre 2010 e 2015. Se o país alcançasse o mesmo patamar da Nova Zelândia, país com melhor colocação no ranking (86 pontos), a taxa anual de crescimento do PIB per capita do Brasil teria sido 1,88 ponto percentual maior.

O estudo destaca a pouca atenção que políticas para melhorar o ambiente de negócios recebem no Brasil, o que atrapalha investimentos e a geração de empregos. “Os resultados obtidos sugerem que são urgentes a alteração desse quadro e a inserção do tema em nossas discussões sobre o crescimento”, diz o texto.

O pesquisador Marcelo Curado reconhece que o governo conseguiu avanços na agenda de reformas, como a criação da Taxa de Longo Prazo (TLP) — que passou a remunerar os empréstimos do BNDES com taxas mais próximas às de mercado, reduzindo distorções entre quem tem e quem não tem acesso a subsídios e incentivando maior competição — e a aprovação do cadastro positivo na Câmara dos Deputados. No entanto, na visão dele, o maior problema, que é a complexidade do sistema tributário, não foi atacado:

— Estamos dando passos em algumas reformas microeconômicas importantes. Mas ainda existem problemas mais gerais, de tributação e burocracia, que deixam o Brasil muito longe de ter a melhoria que a gente espera — diz Curado. — O ICMS, por exemplo, é um tributo com várias legislações por estado. Esse tipo de dificuldade, por ter uma legislação detalhada, com muitas regras, gera um custo enorme para as empresas.

EMPRESA DEIXA O PAÍS E CULPA IMPOSTOS

Um resultado concreto das dificuldades que as empresas enfrentam para atuar no Brasil foi o anúncio, no início da semana, da saída da empresa britânica de cosméticos Lush do país. Em um comunicado, ela informou que o ambiente de negócios, combinado com a instabilidade política do cenário eleitoral, levou a sua retirada do mercado brasileiro: “O Brasil é um mercado muito difícil para a operação de uma marca britânica. Apesar do crescente aumento de vendas, a alta carga tributária e a prolongada recessão econômica, somadas à instabilidade política, impossibilitaram à Lush continuar investindo e lucrar no país”.

O preço de pagar impostos
Cansada de ser só cliente, Ana Maria decidiu empreender. Montou sua própria clínica de estética
EXPECTATIVA:
ser uma empresária dinâmica, capaz de deixar
tudo em dia e
ainda dar atenção especial às
clientes
REALIDADE:
Vive enfurnada no escritório entre planilhas e formulários tentando decifrar siglas para ficar em dia com impostos e encargos trabalhistas. Além de gastar com um contador

O problema não atinge apenas as grandes empresas. Aflige também pequenos empreendedores como Alessandra Pereira, que abriu a clínica de estética My Shape em São Paulo no fim do ano passado. Ela aderiu ao Simples, mas, além de considerar a alíquota alta (6% das notas fiscais emitidas), ela se queixa de toda a burocracia para pagar impostos e encargos trabalhistas das funcionárias.

— Tenho de registrar cada nota fiscal no site da prefeitura e imprimir muitos papéis. Sou administradora, com formação em finanças, mas, mesmo assim, preciso dos serviços de um contador para me organizar, o que aumenta o custo que tenho de embutir no meu preço final. O mais difícil é entender as regras. Há muitas exceções, e tudo muda o tempo todo. Se perder um prazo, tenho de emitir novas guias para pagar. Ficar antenada nisso tudo é difícil e toma tempo — diz a empresária.

CENÁRIO ELEITORAL DIFICULTA AINDA MAIS

Os especialistas há muito alertam para a necessidade de uma reforma tributária, mas afirmam que a complexidade do sistema vai muito além dos tributos federais. A intrincada legislação do ICMS gera guerra fiscal entre os estados e aumenta as dificuldades das empresas para escolher onde fazer investimentos. Para o pesquisador do Ibre/FGV José Roberto Afonso, há pouco espaço para discutir uma reforma às vésperas da eleição.

Ele defende que o momento seja aproveitado pelos técnicos para consolidar ideias mais concretas sobre como simplificar a tributação brasileira:

— Em fim de governo, não se faz reforma, até por prudência. Ideal seria aproveitar, enquanto o mundo da política se volta para a campanha, para o mundo dos técnicos melhorar os estudos. O debate tem sido raro, ralo e desatualizado, sobretudo em relação ao resto do mundo e à revolução digital — diz Afonso, que defende uma reforma ampla, que atinja as esferas municipal, estadual e federal. — Não há mais sistema, e sim um puxadinho de tributos caindo aos pedaços. Não adianta consertar um só tributo. O efeito colateral pode ser até pior. É preciso repensar todo o sistema.

O pesquisador também acha difícil que qualquer reforma reduza a carga tributária. em um momento em que o governo tem dificuldades para fechar as contas, é pouco provável que a equipe econômica abra mão de receitas. Para Afonso, primeiro é preciso atacar as despesas e reduzir a dívida pública:

— Se houver reforma para melhorar a forma como se cobram os impostos no país, já será uma grande contribuição.

Crédito: Bruno Rosa/Ramona Ordoñez/Marth Beck/O Globo – disponível na internet 21/05/2018

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