Não poucos líderes estudantis cultivavam também uma noção, difusa, de que a ditadura brasileira seria vencida
‘Não faremos como os colegas de 1968, não lutaremos pelo poder”. A frase, de autoria de um líder estudantil, foi recordada em recente entrevista de Vladimir Palmeira. Trata-se de um equívoco, a ser esclarecido, mesmo porque continua sendo compartilhado por uma certa memória social que confunde numa mesma aventura as lutas dos estudantes daquele ano e as experiências guerrilheiras de luta armada que marcaram a história do país entre 1966 e 1974.
A confusão, como é próprio do exercício memorialístico, tem fundamentos reais. As maiores lutas estudantis e as primeiras ações armadas ocorreram numa mesma temporalidade, 1966-1968. Por outro lado, eram inegáveis as simpatias da maioria dos estudantes pelos vietnamitas em guerra contra a invasão dos EUA, assim como pela saga do Che Guevara, assassinado na Bolívia, em 9 de outubro de 1967. Não poucos líderes estudantis cultivavam também uma noção — difusa — de que a ditadura brasileira seria vencida, em algum momento, pela mesma força — armada — com que se impusera. Tais referências seriam ainda mais defendidas depois do Ato Institucional nº 5, que fechou as possibilidades, por tempo indeterminado, de alterações pacíficas do poder, e incentivou inúmeros estudantes a aderir às organizações comprometidas com a luta armada.
Estas aproximações não autorizam, porém, a estabelecer um sinal de igualdade entre os movimentos sociais estudantis e a luta armada contra a ditadura. Coincidindo no tempo e muito embora compartilhassem algumas importantes referências, constituíram linhas de força autônomas, de qualidade diversa.
As concepções de luta armada começaram a fermentar antes mesmo do golpe de 1964. Inspiravam-se nos exemplos de revoluções vitoriosas (Rússia, China, Cuba, Argélia), e em movimentos de libertação nacional que se fortaleciam na época. Tratava-se, segundo o paradigma então hegemônico entre os revolucionários, de tomar o poder central pela violência e, a partir daí, sob a vigência de uma ditadura revolucionária, efetivar as mudanças consideradas essenciais para a construção de uma nova sociedade.
No Brasil, tais perspectivas nutriam-se também da desesperança de que reformas profundas pudessem ter lugar de modo pacífico. A partir do golpe civil-militar de 1964, renomados intelectuais construíram, com suas obras, uma espécie de “utopia do impasse”. O Brasil entrara num beco sem saída. A repressão cresceria sem parar. A luta armada impunha-se como “solução” inevitável.
Formaram-se, então, grupos guerrilheiros em várias partes do país. No campo e na cidade tentaram fazer valer seus projetos. Não obtiveram, porém, apoio da população, sendo massacrados por um aparelho repressivo centralizado, que usou e abusou da tortura como política de Estado.
Já os movimentos estudantis que alcançaram o auge em 1968 assumiriam um perfil muito distinto. Suas raízes são posteriores ao golpe de 1964, tomando corpo a partir de 1965-1966. Premidos pelas circunstâncias e pela repressão da ditadura, efetuaram-se algumas rupturas — históricas — com a tradição das lutas estudantis. Não mais o apoio e a proteção do Estado, inviáveis sob a ditadura, mas a conquista da autonomia frente às instituições e aos partidos políticos legais. A proposta de concentrar as lutas estudantis na defesa de reivindicações imediatas e contra a política educacional do governo potencializou bastante a força das entidades estudantis, que se tornaram representativas, capilarmente estruturadas nas faculdades e nas universidades. Foram estas características que ensejaram um notável processo de auto-organização, visível na realização das passeatas e nos métodos de autodefesa que permitiram que os manifestantes não apenas fugissem dos policiais, mas os enfrentassem, às vezes com êxito, com o apoio do “povo da cidade”.
Assim, e sem abandonar as denúncias contra a ditadura, o movimento estudantil aproximou-se de um outro paradigma de mudança social, apoiado na persuasão das consciências e na conquista progressiva de direitos. Daí é que advieram sua força e sua representatividade.
As distinções entre a proposta de luta armada revolucionária e a dinâmica democrática do movimento estudantil ficariam muito evidentes no dia 26 de junho de 1968. Enquanto as lideranças sociais — não apenas estudantis — concentravam-se na organização da maior passeata do período, conquistando — pela luta — o direito de se manifestar pacificamente; nesse mesmo dia, de madrugada, sem qualquer articulação com — e sem nenhum respeito pelo — movimento estudantil, um grupo guerrilheiro jogava um carro cheio de explosivos sobre a entrada do Quartel-General do II Exército, em São Paulo, matando o soldado Mario Kozel.
Evidenciavam-se aí duas linhas de força — autônomas —, distintas experiências e projetos políticos, cujas diferenças — radicais — as ilusões da memória, no futuro, iriam apagar.
Artigo publicado no jornal O Globo – disponível na internet 25/07/2018
Nota: O presente artigo não traduz a opinião do ASMETRO-SN. Sua publicação tem o propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.