Legislativo bate recorde de derrubada de vetos presidenciais em 2019 e barra metade das medidas provisórias do governo. Cientistas políticos veem postura mais altiva do Congresso como mudança benéfica a longo prazo.
O atual Congresso brasileiro tomou posse com o desafio de lidar com um presidente da República peculiar no trato com o Legislativo em relação aos anteriores: Jair Bolsonaro não repartiu seu ministério entre partidos políticos em troca de apoio, não se esforçou para criar consensos em torno da pauta de votações e dispara com frequência ataques verbais a princípios democráticos.
Um ano depois, o país tem um Congresso que, se não bloqueou totalmente o Executivo, como fez no final da gestão Dilma Rousseff, tampouco agiu em sintonia com o Planalto, como nos mandatos de Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva.
Um termômetro da relação entre Executivo e Legislativo é a análise dos vetos presidenciais. As leis aprovadas pelo Congresso são enviadas ao presidente para que ele sancione ou vete o dispositivo. Se o presidente o rejeita, o veto é enviado ao Congresso, que então pode derrubá-lo ou mantê-lo. Se o veto for derrubado pelos deputados e senadores, a lei entra em vigor apesar da contrariedade do presidente
Em 2019, o percentual de vetos derrubados pelo Congresso bateu recorde: 37,8% dos vetos de Bolsonaro foram rejeitados total ou parcialmente pelo Legislativo. O levantamento feito pela DW Brasil começa em 2014, primeiro ano em que o Legislativo passou a analisar todos os vetos do presidente, após uma mudança no seu regimento interno. O percentual registrado neste ano é 76% superior ao de 2018 e mais do que o dobro do de 2017.
Outras métricas que avaliam o desempenho de um presidente junto ao Congresso apontam na mesma direção. Bolsonaro é o presidente em primeiro ano de mandato com mais medidas provisórias barradas desde 2003 — 12 das 24 medidas com tramitação encerrada neste ano foram rejeitadas pelo Legislativo, segundo levantamento do jornal O Globo. E o presidente aprovou apenas 14 dos 72 projetos de lei que enviou ao Congresso — taxa de sucesso de 19%, a menor para um presidente em primeiro ano de mandato desde Fernando Henrique Cardoso em 1999, segundo o site Poder 360.
A moderação exercida pelo Congresso
Emerson Cervi, professor de ciência política da Universidade Federal do Paraná (UFPR), afirma à DW Brasil que o aumento do percentual de vetos presidenciais derrubados pelo Legislativo neste ano “reforça a ideia de que o Parlamento agiu com independência em relação ao Executivo”.
Outro exemplo da atuação moderadora do Congresso é, segundo ele, a tramitação da reforma da Previdência, cujo resultado final foi diferente em diversos pontos da proposta apresentada pelo governo. Entre outros itens, não passaram a adoção do sistema de capitalização desejada pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, nem o endurecimento das regras do Benefício de Prestação Continuada (BPC), pago a idosos ou deficientes que comprovem ter baixa renda.
A tentativa do governo de fazer ampla flexibilização das regras para porte de armas e munições também foi barrada no Legislativo. No início de maio, Bolsonaro editou um decreto facilitando o porte e ampliando o rol de armas e o limite de munição autorizadas. Líderes do Congresso reagiram e, duas semanas depois, o presidente revogou seu decreto e editou outro no lugar. O novo texto continuou desagradando ao Legislativo, foi derrubado pelo Senado e caminhava para ter o mesmo fim na Câmara. Bolsonaro então revogou o segundo decreto e aceitou enviar os trechos mais polêmicos do texto via projeto de lei.
No campo simbólico da defesa dos princípios democráticos, líderes do parlamento também reagiram a declarações ou atos do presidente e de seus filhos que colocaram em xeque a defesa da democracia, como um vídeo postado no perfil de Bolsonaro do Twitter em que comparava o Supremo Tribunal Federal e a imprensa a hienas ou à declaração de Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) de que poderia haver “um novo AI-5” em caso de radicalização da esquerda. Rodrigo Maia (DEM-RJ), presidente da Câmara, definiu o vídeo como “agressivo e desnecessário”, e a declaração de Eduardo como “repugnante”.
A diferença em relação a governos anteriores
O modelo de relacionamento entre o Palácio do Planalto e o Congresso no período democrático no Brasil é conhecido como presidencialismo de coalizão. Nesse sistema pluripartidário, a legenda do presidente não consegue obter a maioria no Legislativo, mas o chefe do Executivo não consegue governar se não tiver apoio no Congresso.
Para buscar a governabilidade, FHC, Lula e Dilma repartiram a maioria de seus ministérios com os partidos políticos que o apoiassem no Congresso. A fragmentação das legendas, porém, tornou cada vez mais difícil construir uma base estável.
Ao ser eleito, Bolsonaro reduziu o número de ministérios e órgãos com status de ministério — de 29 para 22 — e também a sua distribuição entre as legendas. Desses, apenas seis são hoje comandados por filiados a partidos políticos. Como consequência, o vínculo entre Legislativo e Executivo se enfraqueceu, aumentando a liberdade de atuação dos congressistas, afirma Cervi.
“Até o primeiro governo Dilma, tínhamos um presidencialismo de coalizão no qual o Parlamento estava submisso ao Executivo, era mais dócil. No segundo mandato da Dilma, houve uma ruptura e o Parlamento se voltou contra o Executivo até derrubá-lo. Agora temos uma terceira forma, que não é nem a submissão nem a ruptura, é um contrapeso”, diz Cervi.
O professor da UFPR afirma que, antes de Bolsonaro, os principais lideres partidários assumiam cargos em ministérios e deixavam “prepostos” no Legislativo, mas hoje eles estão no Congresso usando esse espaço para atuar. “Se juntar isso ao caos que o Bolsonaro usa como forma atuação, você tem as condições ideais para que essas lideranças exerçam seu poder de maneira a constranger e frear o Executivo”, diz.
Ao longo do ano, porém, o governo passou a liberar nomeações de indicados por partidos que o apoiam para cargos de segundo e terceiro escalão, o que ajudou na aprovação de medidas de interesse do Planalto.
A liderança de Rodrigo Maia
Uma figura importante para operacionalizar essa postura do Congresso em relação ao governo foi a do presidente da Câmara, que consolidou sua imagem de líder hábil para construir consensos mínimos em torno da agenda legislativa.
Cícero Araújo, professor de ciência política da Universidade de São Paulo, afirma que Maia se aproveita desse cenário de atrito entre Legislativo e Executivo para se diferenciar da polarização entre a esquerda representada pelo PT e a extrema direita de Bolsonaro, se apresentando como uma “direita civilizada”.
“O Maia é de um partido conservador de direita, mas que endossa os princípios democráticos. Ele tenta demostrar que tem uma agenda econômica parecida com a do presidente, mas sem embarcar no discurso antidemocrático e primitivo que o presidente expressa”, afirma Araújo.
Outro ponto que estimula Maia a se distanciar de Bolsonaro é que ambos têm suas bases eleitorais no Rio de Janeiro e seus grupos políticos disputam um eleitorado semelhante, acrescenta Cervi.
Perspectivas para os próximos anos
A postura mais altiva do Congresso é positiva a longo prazo para a democracia brasileira, se continuar servindo como um contraponto que oferece alternativas aos projetos apresentados pelo governo ou às demandas da sociedade, e não apenas bloqueando o Palácio do Planalto, afirma Cervi.
Araújo, da USP, também considera positivo que um Parlamento mais forte seja o padrão no futuro, especialmente quando o Brasil voltar ter “um presidente com convicções democráticas fortes”. “Isso mostraria que é possível levar uma agenda legislativa com mais checks and balances (freios e contrapesos), algo mais próximo do padrão ideal”, diz.
Crédito: Deutsche Welle Brasil – disponível na internet 26/12/2019