‘Máscara deve ser obrigatória como o cinto de segurança’, diz diretor do Sírio-Libanês.
Empresas preparam testagem em massa para retomada das atividades após quarentena.
Cinco propostas para retomar economia após coronavírus.
“Maior perigo não é o vírus, mas ódio, ganância e ignorância”
Pandemia e alta do dólar desafiam indústria a nacionalizar fabricação de insumos
‘Máscara deve ser obrigatória como o cinto de segurança’, diz diretor do Sírio-Libanês
Diretor-geral do Hospital Sírio-Libanês, o médico cirurgião Paulo Chapchap, 65 anos, foi chamado para uma grande missão nesta pandemia: alocar de forma eficiente o R$ 1 bilhão que o Itaú Unibanco doou para apoiar o Sistema Único de Saúde (SUS) no combate à Covid-19.
Em duas semanas, a equipe comandada por Chapchap — que inclui, entre outros, os médicos Drauzio Varella e Sidney Klajner (do Hospital Albert Einstein) — já colhe alguns resultados: a instalação de gabinetes de crise em quase todos os estados, com painéis de controle para acompanhamento em tempo real da demanda por leitos e equipamentos, além da doação de milhares de equipamentos de proteção individual.
A iniciativa, batizada de Todos pela Saúde, também começou a atrair novos doadores e já levantou mais R$ 10 milhões. Em entrevista ao GLOBO, Chapchap defendeu o uso da infraestrutura privada para complementar a do SUS e disse que a melhor arma que temos hoje para enfrentar a pandemia é a prevenção, incluindo o uso obrigatório de máscaras pela população. Leia abaixo:
E como conscientizar quando temos governantes que agem de forma contraditória?
Não tenho dúvida de que mensagens ambíguas, num projeto que por si só já é muito difícil, prejudicam bem. O uso de máscaras em ambiente coletivo é uma das coisas mais importantes para enfrentar a crise. Você não está só se protegendo. Está protegendo o outro. Aí entra a responsabilidade do Estado de proteger a todos.
A máscara deve ser obrigatória?
Algumas cidades instituíram, mas estou estranhando que não seja ainda uma política nacional. Tem que ser obrigatório. É para proteger nossa vida, como cinto de segurança. Não vai ser para sempre. Todas as pandemias acabaram.
Essa ainda vai demorar?
Tem duas possibilidades para a gente sair dessa: um remédio ou uma combinação de remédios que sejam realmente efetivos para destruir o vírus, e uma vacina. Elas se somam. Se você descobrir um remédio muito bom, você encurta o período de testagem da vacina.
Vocês estão recebendo muitos pedidos de estados e municípios?
Sim, e estamos doando em grande quantidade. Atuamos sempre em parceria com o ente público. Ninguém sozinho consegue suprir toda a necessidade. Já doamos 77 milhões de máscaras cirúrgicas, 2,3 milhões de máscaras N95, 190 ventiladores mecânicos, 50 mil óculos, além de luvas e aventais, tentando enviar o mais rápido possível.
Vocês estão ajudando em Manaus, que vive hoje uma situação dramática?
Estamos com uma equipe de TI do Itaú Unibanco montando painéis de controle para que a secretaria enxergue a evolução da demanda de leitos, ventiladores, EPIs e equipes, agilizando a tomada de decisão.
A situação de Manaus vai se repetir em outras localidades do país?
Infelizmente, vai. O que Manaus está vivendo, e outras capitais como Fortaleza e Recife estão muito perto, é reflexo do passado. Não tem como reverter. As pessoas não se dão conta de que o comportamento de hoje só vai se refletir em internações daqui a duas ou três semanas. E resultar em mortes daqui a três ou quatro.
O novo Ministro da Saúde, Nelson Teich, declarou que o Brasil “é um dos países que melhor performa em relação à Covid”. Estamos indo bem?
Depende do lugar. Até agora, não sei se há razão para ser otimista, mas São Paulo tem conseguido achatar a curva. Quando a gente compara a evolução desde a primeira perda e compara o estado com outras regiões onde ela foi mais crítica, como o Norte da Itália, Espanha ou Nova York, a inclinação da nossa curva é um pouco mais benigna. Mas tenho medo de afirmar isso e as pessoas relaxarem.
Não dá pra baixar a guarda?
Não dá. Essa coisa de ir para shopping desprotegido não pode. A proteção é a máscara, tem que levar álcool gel. Não pode dar abraço e beijo.
Mas pode sair, desde que protegido?
Eu não sairia agora. Mas, se sair, tem que ser de máscara. A última coisa que eu abriria são os bares e restaurantes, pois, para comer, tem que tirar a máscara. Ainda não vencemos a pandemia. A crise é longa e a gente tem que se conformar com isso. Acho que vai haver abertura progressiva, racional, baseada em dados. Mas tem que começar pelas populações menos vulneráveis. Aí, espera duas ou três semanas para ver se pode avançar mais uma etapa.
A testagem em massa pode ajudar a flexibilizar o isolamento?
Os testes são importantes para monitorar, isolar quem está infectado e, com isso, ajudar a controlar o avanço da doença. Mas seria impossível testar todo mundo a cada três dias. Ninguém fez isso. A Coreia do Sul testou só 9% da população. Com um programa de testagem rápida em larga escala, posso ficar testando a população e planejar uma retomada da força de trabalho. Mas a população positiva hoje ainda deve ser baixa. O ideal é esperar para começar essa testagem mais pra frente. E aí também teremos testes com mais sensibilidade, permitindo que a testagem seja mais eficiente. Mas tem um complicador. Será que quem tem anticorpos está imune? Provavelmente, mas ainda não temos certeza absoluta.
O Conselho Nacional de Saúde defende uma fila única para os leitos de UTI. Qual a posição do Todos pela Saúde?
Numa situação de calamidade, todos os leitos devem ser usados. Defendo que o governo faça um chamamento público para contratualizar e formar uma base muito maior, antecipando-se a essa necessidade. Tenho certeza de que os hospitais privados vão responder ao chamado, se o custos forem cobertos.
Como está a taxa de ocupação no Sírio-Libanês?
Antes da pandemia, a gente trabalhava com 85% de ocupação. Hoje é 50 e poucos por cento. Pode usar esses leitos? Claro que pode. A gente teve uma curva bem achatada em São Paulo. Já foi melhor. Teve um pico inicial, depois uma diminuição e agora está começando a subir lentamente de novo. Se a gente tiver um pico grande, vai ser uma contaminação geral. Nossas classe sociais não são tão apartadas assim. Por isso, insisto, se for afrouxar o isolamento, tem que ser de forma inteligente, mantendo algumas medidas fundamentais de proteção. Caso contrário, todos os sistemas, suplementar e público, vão se esgotar.
Empresas preparam testagem em massa para retomada das atividades após quarentena
A expansão maciça da capacidade de testagem da Covid-19, com testes a cada uma ou duas semanas para identificar quem está imunizado e pode voltar ao trabalho, é tida por especialistas como a maneira mais eficaz de permitir a retomada segura da economia, sem uma explosão de casos.
Depois de uma fase de escassez de insumos e de kits de testes rápidos, a produção global começa a se normalizar. A expectativa é de que a partir de maio os testes comecem a chegar ao país em grandes volumes com entregas regulares.
— Como a China passou a exigir certificado de boas práticas de seus fabricantes, alguns fecharam e quem tinha pedido ficou sem receber. Mas agora o mercado está se equilibrando, com novos fornecedores na Coreia do Sul, Europa, Estados Unidos e Canadá — diz Carlos Eduardo Gouvêa, presidente-executivo da CBDL.
Primeira empresa a obter registro de testes rápidos de coronavírus junto à Anvisa, a Celer está recebendo 800 mil kits da fabricante chinesa Wondof neste fim de semana. O lote já está todo vendido: vai para WEG, BR Foods, Shell, entre outras.
Cliente da Wondof há sete anos, a Celer também ajudou na importação dos 2,5 milhões de kits do mesmo fabricante e que foram doados pela Vale para o Ministério da Saúde.
— A partir do final de maio, vamos receber mais 1 milhão de kits a cada dez dias, até chegar a 8 milhões — diz Denilson Rodrigues, presidente da Celer.
Com a recomendação para a realização de testes a cada 15 dias, as empresas têm encomendado quatro kits por colaborador, para um horizonte de dois meses.
— As empresas não vão necessariamente testar todos os funcionários, mas os mais expostos e que tiveram contato com pessoas que desenvolveram a doença ou suspeita de terem contraído — diz Gouvêa, da CBDL.
Sob a consultoria de um epidemiologista, a Marfrig comprou 3 mil kits de testes rápidos e pretende adquirir mais nas próximas semanas. Além do uso próprio, a Marfrig também doou R$ 7,5 milhões para a compra de 100 mil testes pelo Ministério da Saúde.
Dificuldades
Nem todo mundo está conseguindo comprar. A Via Varejo, dona das Casas Bahia, quer adquirir 15 mil kits, mas ainda está avaliando a acurácia e confiabilidade e também a logística para fazer a testagem, uma vez que possui lojas espalhadas por todo o país. A XP Investimentos, que teve 40 de seus 2.500 funcionários infectados com a Covid-19, vem realizando testes nos laboratórios da Rede D’Or, mas está em busca de fornecedores para comprar de 5 mil a 10 mil kits para assegurar a reabertura dos escritórios após o fim da quarentena.
Para as empresas, não basta comprar o kit. A legislação determina a contratação de um laboratório para a aplicação e interpretação do exame. Em caso de positivo para Covid-19, é responsabilidade dos laboratórios reportar o resultado para as autoridades sanitárias.
A Cia da Consulta, rede de clínicas de especialidades médicas que faz coleta domiciliar para testagem de coronavírus, passou a oferecer o serviço também a empresas. A coleta pode ser feita em casa, por drive-thru ou em um serviço ambulatorial instalado nas empresas.
Victor Fiss, fundador da Cia da Consulta, diz que nos últimos dias foi procurado por 11 grandes empresas, de diferentes setores, interessadas na contratação de 15 mil testes para funcionários. Destes, 400 exames já foram realizados.
Aprovação da Anvisa
A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) já recebeu pedidos de avaliação de 160 testes de diferentes fabricantes, dos quais 41 foram aprovados. A maioria é de testes rápidos ou sorológicos, realizados a partir da coleta de sangue.
As empresas têm preferido estes testes, cujo resultado sai em 15 minutos, em média. Além de mais simples e baratos — custam entre R$ 80 e R$ 100 no distribuidor, sem contar o custo do laboratório —os exames sorológicos medem a resposta imunológica do corpo em relação ao vírus, permitindo identificar se a pessoa está em fase de risco de transmissão ou se já está imunizada. Porém, para ser eficaz, a coleta tem de ser feita após o 7º dia da contaminação, sob risco de acusar um resultado falso negativo.
Já o teste RT-PCR, feito a partir da coleta de mucosa do nariz e da garganta, é usado para detectar o próprio vírus, e seus resultados são mais confiáveis, ainda que sua execução seja mais complexa.
Diante da forte demanda corporativa, a B3B A Vida, distribuidora de produtos hospitalares que importa testes de PCR da chinesa Hybribio, entrou com pedido de certificação de um teste rápido junto à Anvisa.
— A demanda está absurda. Assim que eu obtiver o registro, pretendo importar de 3 milhões a 4 milhões de kits —diz Bruno Albuquerque, diretor da B3B.
Crédito: Mariana Barbosa/Correio Braziliense – disponível na internet 27/04/2020
Cinco propostas para retomar economia após coronavírus
Desemprego em nível recorde, diminuição da capacidade produtiva da economia devido ao fechamento de empresas e piora das contas públicas devem compor o quadro da economia brasileira após a crise do coronavírus. A intensidade dessa piora do cenário econômico vai depender da efetividade das medidas emergenciais que têm sido adotadas pelo governo.
Quanto a essas duas afirmações, parece haver consenso entre economistas brasileiros de diferentes vertentes. Mas o que fazer para retomar a atividade econômica passada a fase mais aguda da crise, quando a circulação de pessoas puder ser reestabelecida nas cidades? Aí surgem as divergências.
“Na saída da crise, há quem ache que o governo não vai precisar fazer muito mais coisa, que o mercado vai se recuperar sozinho”, diz Nelson Barbosa, professor da Escola de Economia de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (EESP-FGV). “Isso é um erro, porque teremos famílias e empresas com renda menor, mais dívida e maior incerteza. Então é muito difícil que o setor privado se recupere por conta própria”, afirma Barbosa, que foi Ministro da Fazenda (2016) e do Planejamento (2015) durante o governo Dilma Rousseff (PT).
“Há uma clara necessidade de se gastar de forma temporária em questões de saúde, sociais e em alguns casos empresariais. Mas está claro que não há espaço para outras aventuras, outros gastos, posto que o Brasil ainda não conseguiu recuperar sua saúde fiscal, que se perdeu ali pelos idos de 2014, 2015”, considera por sua vez Arminio Fraga, sócio da Gávea Investimentos e ex-presidente do Banco Central durante o governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB).
A BBC News Brasil ouviu cinco economistas brasileiros, entre homens e mulheres, liberais e heterodoxos, em busca de propostas para recuperar a atividade econômica do país depois da crise do coronavírus. Confira abaixo as sugestões de Solange Srour, Samuel Pessôa, Armínio Fraga, Nelson Barbosa e Laura Carvalho.
Solange Srour, economista-chefe da ARX Investimentos
Voltar à agenda de reformas anterior à crise do coronavírus é a solução para que o país encontre o crescimento sustentável, mesmo em uma situação econômica pior, com desemprego mais elevado, recessão econômica e perda do poder de compra da população, avalia Solange Srour, da ARX Investimentos.
“Esse é o único caminho para voltarmos a crescer: insistir na agenda de consolidação fiscal e de produtividade”, diz Srour, citando como prioritárias medidas como a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) Emergencial — que permite, entre outras ações, congelar salários do funcionalismo público — e as reformas administrativa e tributária. “Não podemos cair no mesmo erro que cometemos no pós-crise de 2008, quando continuamos expandindo o fiscal, desestruturando a economia.”
Segundo a analista, garantir que o aumento de gastos do governo em resposta à crise seja temporário será fundamental para recuperar a confiança dos empresários no momento de retomada da atividade. “Para crescermos de verdade serão necessários investimentos e para isso, precisa de confiança”, diz Srour.
Assim, ela refuta a ideia de que cortar gastos públicos no pós-crise possa aprofundar ainda mais a recessão esperada. “É a falta de confiança que pode impedir a retomada.”
Possível mudança no teto de gastos
Samuel Pessôa, pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (Ibre-FGV)
Samuel Pessôa, do Ibre-FGV, também aposta na retomada da agenda de reformas para o país voltar a crescer, passado o pior momento da emergência de saúde pública do coronavírus. Mas ele acredita que, se o Congresso conseguir aprovar a PEC Emergencial, reduzindo o gasto obrigatório do Estado, é possível pensar em uma mudança na regra do teto de gastos para abrir espaço ao investimento público, dando fôlego adicional à atividade econômica após o isolamento.
“Gasto obrigatório não pode crescer mais do que o PIB, isso é um disparate e uma urgência a ser atacada”, diz Pessôa. “Atacando isso, dá para pensarmos na proposta do Fabio Giambiagi de mexer no teto de gastos para liberar algum recurso para investimentos”, afirma.
Ao fim de 2019, Fabio Giambiagi e Guilherme Tinoco, economistas do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), apresentaram uma proposta de flexibilização do atual teto, incluindo um tratamento diferenciado para os gastos de investimento. O investimento público — somando as três esferas de governo e as empresas estatais — chegou a 2,26% do PIB em 2019, quase a metade dos 4,06% de 2013, último ano antes da crise anterior, segundo levantamento do economista Manoel Pires, do Observatório de Política Fiscal da FGV.
Intervenções pontuais em setores estratégicos
Arminio Fraga, sócio da Gávea Investimentos e ex-presidente do Banco Central
Um dos expoentes do pensamento liberal brasileiro, Arminio Fraga avalia que, na saída da crise do coronavírus, podem ser necessárias intervenções estratégicas do governo em alguns setores mais atingidos pela paralisação da atividade. Fraga, que vinha, mais recentemente, se dedicando ao debate sobre o combate à desigualdade, também avalia que um modelo mais abrangente de proteção social, que inclua os trabalhadores informais, deve entrar na ordem do dia.
“Alguns setores já são muito claros: restaurantes, serviços pessoais, hotéis, companhias aéreas e outros”, enumera Arminio. “Isso é bem diferente da política de ‘campeões nacionais'”, ressalva, fazendo referência à política conduzida pelo BNDES durante os governos petistas de empréstimos subsidiados e compra de participações acionárias de grandes empresas brasileiras. “A sociedade tem que se perguntar se alguns setores, que foram destroçados pelo vírus, merecem algum apoio, se isso faz sentido do ponto de vista social e econômico.”
Com a aprovação do auxílio emergencial de R$ 600 para trabalhadores informais que perderem renda devido às medidas de isolamento social, alguns economistas têm defendido que a política de renda básica se torne permanente. Arminio diz ter dúvidas quanto a um benefício universal, devido ao custo elevado, mas vê com bons olhos a discussão de ampliação do sistema público de proteção social.
“É um tema importantíssimo, é fundamental que se chegue aos informais. As regras — como fazer, o que cada um tem direito, quem contribui ou não — têm que ser avaliadas. Mas tenho certeza que esse é um tema que vai entrar em pauta. Se é que já não está”, afirma.
Frentes de trabalho e retomada do investimento público
Nelson Barbosa, professor da Fundação Getulio Vargas (FGV) e ex-ministro da Fazenda e do Planejamento
Uma frente de trabalho de saúde pública e a retomada de obras paradas estão entre as propostas do economista Nelson Barbosa para recuperação da atividade após o fim do isolamento social imposto pela nova doença. Para Barbosa, um programa de “seguro-renda” — como o seguro-desemprego atual, mas voltado a todos os trabalhadores, incluindo informais — é uma opção para a ampliação da proteção social na nova conjuntura.
“É preciso que o governo adote um plano de reconstrução. Medidas temporárias, sim, mas que provavelmente vão durar mais de um ano”, afirma. “Por exemplo, diversos países estão pensando em adotar uma força de trabalho emergencial para monitoramento e combate à covid-19 depois da pior fase”, diz.
Barbosa acredita que é possível criar espaço nas contas públicas para a retomada do investimento em obras paradas. “Essa crise mostrou que, quando há um risco, o espaço fiscal é gerado”, afirma. “O governo vai emitir dívida e, quando chegar a hora de pagar, espera-se que a economia já tenha se recuperado, com um PIB e uma arrecadação maior, com a qual vai se pagar parte dessa obrigação”, diz, citando ainda a expectativa de continuidade da queda dos juros, que deve reduzir o custo do endividamento.
Medidas redistributivas e renda básica permanente
Laura Carvalho, professora da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo (FEA-USP)
Para Laura Carvalho, a recuperação da economia após o fim do isolamento deve exigir um “novo Plano Marshall” — referência ao plano de recuperação dos países europeus após a Segunda Guerra Mundial. A economista, que ajudou a formular o programa econômico da campanha de Guilherme Boulos (PSOL) à presidência em 2018, avalia que o investimento público deve ser usado neste segundo momento de combate à crise como forma de suprir carências históricas, como na saúde e no saneamento básico.
“Isso exigiria a revisão do teto de gastos e uma mudança na orientação da política econômica, que até aqui tem sido voltada para o Estado mínimo”, diz Laura. Segundo ela, a aposta de alguns economistas na retomada da agenda anterior de corte gastos pode piorar a recuperação, levando a uma retomada em “L”, quando o nível do produto não volta ao patamar anterior à crise.
Conforme a economista, esses investimentos deveriam ser financiados através de um aumento da arrecadação. “Defendo alíquotas superiores de tributação para os mais ricos, que vão sofrer muito menos o impacto dessa crise, com o fim da desoneração de dividendos e de desonerações para setores pouco afetados”, exemplifica, citando ainda a tributação de grandes fortunas e aumento do imposto de renda para os mais endinheirados.
Carvalho defende também que a renda básica emergencial se torne permanente. “Temos no Brasil uma informalidade recorde e essa crise tende a agravar isso. Então temos que pensar na possibilidade de uma rede de proteção social maior, universal e que seja permanente.”
Yuval Noah Harari: “Maior perigo não é o vírus, mas ódio, ganância e ignorância”
Em entrevista à DW, historiador israelense Yuval Noah Harari afirma que resposta à crise do coronavírus deve ser mais solidariedade. E o mundo aprendeu a confiar mais na ciência.
Num século que prima pela quase ausência de pensadores como figuras públicas, há alguns anos um historiador israelense se destaca tanto nos círculos intelectuais como nas listas mundiais de best-sellers: Yuval Noah Harari, de 44 anos, é o autor aclamado de Sapiens: Uma breve história da humanidade, Homo Deus: Uma breve história do amanhã e 21 lições para o século 21, lançados a partir de 2014.
Um de seus interesses centrais é como o homo sapiens, tão distinto das demais espécies animais, alcançou sua condição atual, e qual seu futuro. A história tem uma direção? Há justiça nela? Qual sua relação com a biologia? Os seres humanos se tornaram mais felizes com o desenrolar da história? Essas são algumas das questões macro-históricas de que se ocupa Harari em sua obra.
Celebridade global também graças a suas palestras online, Harari mora com o cônjuge e agente Itzik Yahav em Jerusalém, e tem também se destacado por adotar posições políticas na contramão do status quo. Sua companhia de impacto social Sapienship doou 1 milhão de dólares à Organização Mundial da Saúde (OMS) em seguida à decisão do presidente Donald Trump de retirar o financiamento dos EUA.
A DW o entrevistou sobre a situação da humanidade em meio às mudanças sociais e políticas em andamento, na esteira da pandemia de covid-19. O historiador acredita que seus futuros colegas verão no atual momento um ponto de mutação na história do século 21, embora “a forma que dermos a ele dependerá de nossas decisões, não é inevitável”.
“Mas para tal, temos que tomar consciência do perigo e tomar cuidado com o que permitimos nesta emergência.”
DW: Estamos em plena pandemia global. O que o preocupa mais, na forma como o mundo está mudando?
Yuval Noah Harari: Acho que o maior perigo não é o vírus em si. A humanidade tem todo o conhecimento e as ferramentas tecnológicas para vencê-lo. O problema realmente grande são nossos demônios interiores, nosso próprio ódio, ganância e ignorância. Temo que não se esteja reagindo a esta crise com solidariedade global, mas com ódio, colocando a culpa em outros países, em minorias étnicas e religiosas.
Mas espero que consigamos desenvolver nossa compaixão, e não nosso ódio, e reagir com solidariedade global, desenvolvendo nossa generosidade de ajudar os necessitados. E que desenvolvamos nossa capacidade de discernir a verdade, em vez de acreditar em todas essas teorias da conspiração. Se fizermos isso, não tenho dúvida que conseguiremos superar facilmente a crise.
Estamos encarando, como o senhor já disse, a opção entre a vigilância totalitária e a potencialização da cidadania. Se não tomarmos cuidado, a pandemia pode ser um marco na história da vigilância pública. Mas como ser cuidadoso com algo que está fora do nosso controle?
Não está completamente fora de seu controle, pelo menos numa democracia. Você vota em determinados políticos e partidos, que determinam as políticas, portanto tem algum controle sobre o sistema político. Mesmo que não haja eleições agora, os políticos ainda reagem à pressão pública.
Se o público está aterrorizado e quer que um líder forte assuma, isso torna muito mais fácil um ditador fazer exatamente isso: assumir o poder. Se, ao contrário, houver reação do público quando um político for longe demais, podemos evitar que os desdobramentos mais perigosos aconteçam.
Como saber em quem confiar, ou em quê?
Primeiro, há a experiência. Se há políticos que têm mentido para você nos últimos anos, há menos razões para confiar neles nesta emergência. Em segundo lugar, você pode fazer perguntas sobre as teorias que estão lhe contando: se alguém vem com uma teoria da conspiração sobre a origem e o alastramento do coronavírus, peça-lhe para explicar o que é um vírus e como causa doenças.
Se a pessoa não tem a menor ideia, quer dizer que não dispõe de conhecimento científico básico, portanto não acredite em mais nada do que ela está lhe contando sobre a pandemia. Não se precisa de um PhD em biologia, mas se precisa de alguma compreensão científica básica de todas essas coisas.
Nos últimos anos, temos visto diversos políticos populistas atacarem a ciência, dizerem que os cientistas são uma elite remota, desconectada do povo; que coisas como a mudança climática não passam de uma farsa, que não se deve acreditar nelas. Mas neste momento de crise por todo o mundo, vemos que as pessoas confiam mais na ciência do que em qualquer outra coisa.
Espero que lembremos disso, não só durante esta crise, mas também quando ela tiver passado; que cuidemos para dar uma boa educação científica nas escolas sobre o que são os vírus e a teoria da evolução. E também que, quando cientistas nos alertam sobre outras coisas, além de epidemias – como mudança climática e colapso ambiental – ouçamos as advertências deles com a mesma seriedade que temos agora com o que dizem sobre a pandemia do coronavírus.
Muitos países estão implementando mecanismos de vigilância digital para evitar o alastramento do vírus. Como se pode controlar esses mecanismos?
Sempre que se intensifica a vigilância dos cidadãos, isso deve vir de mãos dadas com uma maior vigilância do governo. Nesta crise, os governos estão gastando dinheiro como água: nos Estados Unidos, 2 trilhões de dólares, na Alemanha, centenas de bilhões de euros, e assim por diante. Como cidadão, quero saber quem está tomando as decisões e para onde o dinheiro vai. Ele está sendo usado para resgatar grandes corporações que já estavam em apuros antes mesmo da pandemia, por causa das más decisões de sua chefia? Ou ele está sendo usado para ajudar pequenas empresas, restaurantes, lojas e similares?
Se um governo está tão ávido de ter mais vigilância, esta deve ir nas duas direções. E se ele diz “hei, isso é complicado demais, não podemos simplesmente abrir todas as transações financeiras”, você diz: “Não é, não. Do mesmo modo que você pode criar um gigantesco sistema de vigilância para ver aonde eu vou a cada dia, deveria ser fácil criar um sistema que mostre o que você está fazendo com o dinheiro dos impostos.”
Isso funciona distribuindo o poder, e não deixando que ele se concentre em uma pessoa ou autoridade?
Exatamente. Uma ideia com que se está experimentando é alertar quem esteve perto de um paciente do coronavírus. Há duas maneiras de fazer isso: um é ter uma autoridade central que coleta informações sobre todo mundo e aí descobre que você esteve perto de alguém com covid-19 e alerta você.
Outro método é os celulares se comunicarem diretamente entre si, sem nenhuma autoridade central que recolha toda a informação. Se passo por alguém que tem covid-19, os dois telefones, o meu e o dele ou dela, simplesmente falam um com o outro, e eu recebo o alerta. Mas nenhuma autoridade central está coletando toda essa informação e seguindo todo mundo.
Possíveis sistemas de vigilância para a crise atual vão um passo mais adiante, no que se chamaria de “vigilância subcutânea”. Portanto a pele, como superfície intocável dos nossos corpos, está se rachando. Como controlar isso?
Devemos ser muito, muito cuidadosos a esse respeito. Vigilância sobre a pele é monitorar o que se faz no mundo exterior: aonde você vai, quem encontra, ao que assiste na TV, que sites visita online. Ela não entra no seu corpo. Vigilância subcutânea é monitorar o que está acontecendo dentro do seu corpo. Começa com coisas como a temperatura, mas aí pode partir para a pressão sanguínea, frequência cardíaca, atividade cerebral. E uma vez que se faça isso, é possível saber muito mais sobre cada indivíduo do que em qualquer outra época: você pode criar um regime totalitário como nunca se viu antes.
Se você sabe o que estou lendo ou ao que assisto na televisão, isso lhe dá alguma ideia sobre meus gostos artísticos, meus pontos de vista politicos, minha personalidade, mas ainda é limitado. Agora, pense se você puder realmente monitorar minha temperatura corporal, minha pressão e frequência cardíaca enquanto leio o artigo ou assisto ao programa online ou na televisão: aí você pode saber o que estou sentindo a cada momento! Isso poderia facilmente resultar na criação de regimes totalitários distópicos.
Isso não é inevitável. Podemos impedir que aconteça. Mas para tal, temos que primeiro tomar consciência do perigo, e em segundo lugar tomar cuidado com o que permitimos acontecer nesta emergência.
Esta crise força o senhor reajustar sua imagem do homo sapiens no século 21?
Não sabemos, porque depende das decisões que tomarmos agora. O perigo de uma classe inútil está, na verdade, crescendo dramaticamente, por causa da atual crise econômica. Vemos agora um aumento da automatização, robôs e computadores substituindo seres humanos em cada vez mais empregos nesta crise. Porque as pessoas estão confinadas em suas casas, e elas podem se contaminar. Mas robôs, não.
Talvez vejamos os países decidirem trazer certas indústrias de volta para casa, em vez de dependerem de fábricas em outras locações. Então pode ser que, tanto devido à automatização quanto à desglobalização, especialmente os países em desenvolvimento, que dependem de trabalho manual barato, tenham de repente uma enorme classe inútil de cidadãos que perderam seus empregos, porque estes foram automatizados ou transferidos para outro lugar.
E isso também pode acontecer nos países ricos. Esta crise está causando mudanças tremendas no mercado de trabalho; as pessoas trabalham de casa, trabalham online. Se não tomarmos cuidado, pode resultar no colapso do trabalho organizado, pelo menos em alguns setores industriais.
Mas isso não é inevitável: é uma decisão política. Podemos tomar a decisão de proteger os direitos trabalhistas em nosso país, ou em todo o mundo, nesta situação. Os governos estão resgatando financeiramente indústrias e corporações, eles podem condicionar a ajuda à proteção dos direitos dos empregados. Então tudo depende das decisões que tomemos.
O que o futuro historiador dirá deste momento?
Acho que historiadores futuros verão este como um ponto de mutação na história do século 21. Mas a forma que dermos a ele dependerá de nossas decisões. Não é inevitável.
Crédito: Deutsche Welle Brasil – disponível na internet 27/04/2020
Pandemia e alta do dólar desafiam indústria a nacionalizar fabricação de insumos
O setor químico é um dos mais dependentes de insumos de fora. A indústria farmacêutica brasileira sofreu quando a Índia, a maior exportadora de genéricos do mundo, impôs corte nas vendas externas de remédios.
— Não é uma discussão só no Brasil, é mundial, devido às dificuldades de importação e à volatilidade cambial. A curto prazo temos estoques, mas, para médio e longo prazos, há uma discussão que é inevitável em relação ao complexo industrial — afirma Solange Dallana, diretora de Assuntos Regulatórios e Acesso ao Mercado da EMS, líder no setor farmacêutico brasileiro, faturando cerca de R$ 4 bilhões.
Ela afirma que sua empresa, juntamente com as demais do setor, estão debatendo que produtos são essenciais para o país, para os quais faz sentido criar uma política de nacionalização e quais poderiam ser exportados.
O debate já chega às empresas estatais. Jorge Mendonça, diretor do Farmanguinhos — laboratório vinculado ao Ministério da Saúde que produz os remédios à base de cloroquina pesquisados para combater a Covid-19 —, afirma que tem capacidade de suprir o mercado brasileiro, caso as pesquisas apontem essa necessidade:
– Essa crise pode nos levar a repensar o modelo e a valorizar a importância da pesquisa e da produção farmacêutica no país. Sabemos que vivemos em um mundo globalizado, e isso traz vantagens, mas queremos ter uma dependência externa tão grande?
‘Sem protecionismo’
Segundo Ciro Marino, presidente da Associação Brasileira da Indústria Química, na cadeia farmoquímica, o Brasil “não produz quase nada”. Voltar a produzir no Brasil já é debatido nos gabinetes em Brasília, diz ele. A discussão acontece nos ministérios da Defesa, Economia e Cidadania.
– Nesse setor, 95% dos insumos são importados. E há os fertilizantes. São agroquímicos, estamos falando de biossegurança. Temos debatido nos ministérios da Defesa, da Economia e da Cidadania, mas a Defesa pegou para si a questão. Algumas cadeias que foram interrompidas podem voltar. O mundo está vendo que precisa se reindustrializar e desconcentrar produção — comenta Marino.
A gigante nacional Braskem vê oportunidades. A maior petroquímica das Américas e líder mundial na produção de biopolímeros também vê a possibilidade de avanços na nacionalização. “É possível que um maior nível de regionalização possa ocorrer, após a pandemia da Covid-19, com a normalização dos setores, trazendo um maior fortalecimento e integração da cadeia química nacional, resultando no desenvolvimento da indústria química nacional”, afirmou a empresa, em nota.
No setor têxtil, a dependência está nos pigmentos para dar cor aos tecidos. Flávio Rocha, dono do Grupo Guararapes (Riachuelo), produz no Brasil 70% dos insumos – contra média do setor de 50% —mas diz que, passada a pandemia, pode superar os 90%:
– As cadeias produtivas vão ser repensadas, depois de se mostrarem vulneráveis a um episódio como o de agora. Vai ganhar uma nova importância ter uma cadeia maior aqui. Temos essa nova realidade cambial e social, precisamos gerar mais empregos aqui.
Rocha afirma que pretende ampliar o investimento no Nordeste, em seu programa denominado “pró-Sertão”, para produzir na região insumos que hoje vêm da Ásia.
Para o empresário, a indústria precisa ser competitiva, “sem nacionalismo ou protecionismo obsoleto”.
O diretor do Centro de Economia Mundial da Fundação Getulio Vargas (FGV), Carlos Langoni, diz que o Estado precisará ter atuação mais focada e seletiva. Segundo ele, o país não pode repetir os modelos do passado:
– Haverá uma redefinição do papel do Estado, será um agente de equilíbrio social. Se ele voltar a liderar o processo de desenvolvimento, vai inviabilizar o reencontro do crescimento sustentável pós-pandemia. No caso brasileiro, ainda temos a fragilidade financeira.
José Velloso, presidente da Associação Brasileira da Indústria de Máquinas e Equipamentos (Abimaq), afirma que o discurso mudou completamente em um mês:
– Antes da crise, até fevereiro, a nota de toque era pela abertura comercial. Na Casa Civil e no Ministério da Defesa já veem a necessidade de diminuir a dependência de bens industrializados do exterior, uma mudança muita rápida. A conversa agora é sobre substituir importações por bens nacionais, escolhendo setores estratégicos.
Álcool em gel nacional
O setor automotivo também está preocupado com a rede de fornecedores. O presidente da Volkswagen América Latina, Pablo Di Si, disse na semana passada, em um debate do site Automotive Business, que a empresa pretende comprar parte dos insumos no Brasil:
– Há muitas oportunidades para aumentar a nacionalização de componentes tecnológicos, de infoentretenimento, airbags, entre muitos outros. O fornecedor que tiver um bom projeto, com escala elevada, pode vir falar conosco.
Algumas cadeias foram montadas em tempo recorde. A explosão de demanda pelo álcool em gel fez renascer a indústria de espessante no país, de acordo com João Carlos Basílio, da Associação Brasileira da Indústria de Higiene Pessoal, Perfumaria e Cosméticos:
— No Brasil, era fabricado por pequenas e médias empresas, o restante era importado. Com esse boom no consumo, ficamos sem matéria-prima. Conseguimos produzir o insumo no Brasil, e o fornecimento está sendo normalizado. O preço vem caindo para o consumidor. Aconteceu numa escala muito rápida.
Basílio afirma que o governo facilitou trâmites e ajudou nas questões burocráticas:
– Teremos condições de produzir 31 bilhões de frascos por ano. Poderemos exportar. Houve uma reversão completa no fornecimento.
Em eletroeletrônicos, a situação é ainda mais delicada. Boa parte das peças não é produzida no Brasil, e o elo da cadeia precisa ser criado. A produção de celulares, aparelhos de áudio, vídeo, fotográficos e afins usa 75% de componentes importados, de acordo com levantamento do Instituto de Estudos de Desenvolvimento Industrial (Iedi).
Há peças que sequer são fabricadas aqui, afirma Humberto Barbato, presidente da Associação Brasileira da Indústria Elétrica e Eletrônica (Abinee):
– Não produzimos display de telefone, computador e televisão. Espero que a vulnerabilidade da indústria tenha ficado escancarada, para que se reindustrialize o Brasil.
Crédito: Cássia Almeida e Henrique Gomes Batista/ O Globo – disponível na internet 27/04/2020