A carteira de trabalho é uma certidão de nascimento cívico. A metáfora foi feita por Wanderley Guilherme dos Santos, um dos mais influentes cientistas políticos do país. Subjacente à figura de linguagem está a noção de que a rede de proteção social e trabalhista criou no Brasil, desde a era Vargas, uma “cidadania regulada”: ela está embutida na profissão — de modo que só é cidadão pleno aquele que pertence a uma categoria profissional.
Os defensores do projeto da reforma trabalhista, aprovada há três anos, querendo ou não concordaram com a descrição de Santos, mas foram além: venderam a ideia de que a superação das desigualdades deveria passar, necessariamente, pela flexibilização dessa rede de proteção.
Para Jorge Luiz Souto Maior, desembargador do Tribunal Regional do Trabalho da 15º Região e professor de Direito do Trabalho na Faculdade de Direito da USP, o argumento é falacioso. “A reforma trouxe para a ‘formalidade’ modos informais de exploração do trabalho. O que nós temos então são pessoas incluídas formalmente, mas que do ponto de vista social e econômico se encaixam perfeitamente entre os excluídos”, provoca.
Em entrevista à ConJur, Souto Maior faz um balanço dos três anos de vigência da lei que historicamente mais transformou o Direito do Trabalho brasileiro. Além de apontar o que ele entende como gravíssimos vícios do processo legislativo que resultou no novo diploma, o acadêmico e magistrado mostra que as aparentes contradições da nova legislação foram, na verdade, construídas a partir de um mesmo objetivo: tijolo por tijolo, o edifício é lógico.
ConJur — A reforma trabalhista (Lei 13.467/17) completou três anos em novembro. Que balanço geral poderia ser feito a respeito?
Jorge Luiz Souto Maior — O balanço, do ponto de vista do conjunto da sociedade brasileira e, sobretudo, da classe trabalhadora, é extremamente negativo — aliás, como já era possível prever. Como a gente já denunciava na discussão da reforma, lá em 2017, que todas aquelas iniciativas legislativas baseadas em flexibilização, redução de custos, redução de direitos dos trabalhadores, levariam a uma piora geral da economia, das condições de trabalho e da distribuição e produção da riqueza; uma piora do ponto de vista da renda dos trabalhadores e das trabalhadoras. O efeito que se produziu era um efeito imaginado, um efeito que foi por diversas vezes expresso e denunciado.
Agora, do ponto de vista de um setor da economia, ou para algumas empresas especificamente, sobretudo para grandes empresas, o que se verificou da reforma é um balanço positivo: aumento de lucros, redução da atividade sindical… Ou seja, para quem a reforma foi feita, atingiu o objetivo, mas não para o conjunto da sociedade brasileira.
No entanto, quem defendia a reforma a defendia de um ponto de vista de ampliação de empregos, de retirada das pessoas da informalidade. E, vejam, o que aconteceu não foi nada disso. O desemprego só aumentou, a informalidade só aumentou, tudo que se dizia que se pretendia com a reforma trabalhista não foi atingido, porque também os objetivos, a bem dizer, não eram esses, os objetivos eram aumentar taxas de lucro de grandes empresas e isso se fez, isso se produziu concretamente. Os lucros de grandes empresas e de bancos nesse período são consequência direta da reforma trabalhista, em contrapartida à redução da renda dos trabalhadores, à maior exploração do trabalho, ao óbice ao acesso à Justiça do Trabalho, à fragilização dos sindicatos, ao aumento do desrespeito generalizado à legislação trabalhista.
Enfim, o efeito é esse que nós estamos vendo, que foi ampliado pela pandemia, mas que já estava presente antes. O que resultou da pandemia foi a ampliação e uma forma acelerada de um processo histórico que já vinha de dois anos.
ConJur — A epidemia, então, não é ela própria uma causa, na sua visão.
Jorge Luiz Souto Maior — É, quando você pega hoje o nível de empregabilidade no Brasil, o nível de condições de trabalho, você não vai conseguir explicar esse rebaixamento econômico e social no Brasil só pela ocorrência da pandemia. É um grande equívoco histórico fazermos isso. Ao fazer isto, se começa a argumentar que, superada a pandemia, o Brasil voltaria ao “normal”, a uma situação de normalidade e de plena efervescência econômica. Só que não é verdade. O que já vivenciávamos era uma situação bastante ruim do ponto de vista econômico e social. Muitas coisas que já estavam aí e que vão continuar no pós-crise sanitária. Porque são estruturas que já estão arraigadas na nossa sociedade. Não basta simplesmente eliminar a crise sanitária para que esses problemas todos sejam resolvidos.
A reconstrução de tudo isso é um passo que terá que ser dado do ponto de vista da manifestação de vontades; ou seja, é preciso um agir ativo, e não simplesmente esperar que as coisas aconteçam naturalmente e que com isso a gente retome um estado de normalidade. Não havia estado de normalidade nenhum e não haverá essa nova situação, uma situação melhor do que tínhamos, se não houver mudanças concretas no rumo que vínhamos tomando até aqui, do ponto de vista das relações de trabalho.
ConJur — E quais mudanças seriam essas?
Jorge Luiz Souto Maior — É preciso fundar um pacto de solidariedade — o Brasil como nação tentou dar este passo na Constituição de 88, mas ele concretamente não foi dado. Então, é preciso estabelecer um regramento de proteção do trabalho, de distribuição da renda produzida a partir do trabalho, em um sistema de seguridade social, baseado em solidariedade e em conferir às pessoas condição digna de sobrevivência, pelo fato de todas estarem integradas em uma mesma sociedade, e não a partir de uma lógica de concorrência, de destruição. Ou seja, é preciso refundar, ou fundar o país numa outra lógica, numa lógica que a Constituição até estabeleceu, até tentou dar o passo nessa direção, mas nós efetivamente não cumprimos este passo. Muito pelo contrário, de 1989 em diante o que fizemos foi um desdizer reiterado da Constituição.
Então, do ponto de vista das relações de trabalho, seria necessário concretamente garantir a proteção da relação de emprego, protegida contra dispensa arbitrária, as possibilidades plenas de sindicalização, do exercício pleno do direito de greve, do amplo acesso à Justiça do Trabalho, da atuação firme e consistente do Estado na fiscalização do cumprimento dos direitos trabalhistas, que são direitos humanos, é importante lembrar disso.
Uma regulação econômica pautada pelo patamar mínimo e de integração da classe trabalhadora, do ponto de vista da cidadania, e com vistas à ampliação e melhoria constante desta integração; ou seja, é um projeto de sociedade integrativo e em evolução na melhoria da condição social, na melhoria da condição humana de todos e todas, superando as desigualdades e as necessidades.
Nós vivemos um anti-pacto social, vivemos uma lógica de autodestruição social, e mudar tudo isto não é uma coisa simples, mas é preciso, pois nós estamos muito próximos do fundo do poço, do caos, da barbárie — a verdade é essa. Nós temos um projeto que foi abandonado, que nunca foi experimentado e que teríamos que necessariamente fazer isso.
Só que o conjunto de ações é muito grande, muito sério, e exige muita vontade política, exige muito compromisso social, exige muita necessidade de integração de todas as instituições neste projeto, não é uma coisa simples. Por isso que acaba sendo mais simples alguém vir com retóricas de soluções mirabolantes que não impactam em nada, que não resolvem nada, que só pioram o problema, mas só para dizer que estão tentando fazer alguma coisa.
E o pior é que o argumento que eles sempre têm é o pior de todos, como anunciou agora recentemente o ministro da Economia, que projeta uma nova reforma trabalhista de flexibilização de direitos, para melhoria das condições dos trabalhadores e trabalhadoras, da miséria… Ou seja, de novo, o mesmo erro, o mesmo problema. Nós não conseguimos aprender nada com todos os erros cometidos durante esses trinta e dois anos.
ConJur — E como rebater esse argumento de que a proteção ao trabalhador acaba gerando uma sociedade à parte, regulada, que funciona, ao mesmo tempo em que um Brasil profundo continuaria adormecido e sem acesso a essa rede de proteção?
Jorge Luiz Souto Maior — Por isso que eu disse que o projeto de estado social é integrativo e evolutivo, ele não se contenta na perspectiva de inclusão de alguns poucos, ele é dinâmico na melhoria constante da vida social como um todo. Essas melhorias que provêm da maior distribuição da riqueza produzida por meio dessa rede de proteção social é algo que nunca experimentamos.
Então, dizer que isto não funciona é uma grande falácia. Porque, sem experimentar o funcionamento, não se pode dizer que não funciona. E acusar a rede de proteção jurídica que atinge a alguns como um elemento de, digamos assim, culpa, um elemento de causa da exclusão, é um despropósito do ponto de vista racional. Porque não é o fato de algumas pessoas estarem integradas formalmente, do ponto de vista da rede de proteção social, que significa que estas pessoas são culpadas pelas outras estarem excluídas, até porque a solução que se preconiza, deste ponto de vista, retirando a rede de proteção social das que estão incluídas, só aumenta o número de excluídos, porque você não consegue aumentar o número de incluídos.
Foi, inclusive, o que se disse sobre a questão da reforma trabalhista: “Vamos retirar direitos dos trabalhadores para ter mais pessoas no mercado de trabalho, porque essa quantidade de direitos impede a contratação” — era o que se dizia. O que se mostrou uma falácia, porque, se você retira direitos, e você aumenta as pessoas excluídas, e nós estamos neste momento histórico diante da reforma trabalhista que trouxe terceirização, trabalho intermitente, que trouxe para a “formalidade” modos informais de exploração do trabalho, o que nós temos são pessoas que estão incluídas formalmente, mas que do ponto de vista social e econômico se encaixam perfeitamente entre os excluídos.
Então, nós temos um processo de exclusão dentro da inclusão; nós só aumentamos a miséria e o número de excluídos e favorecemos um processo de produção de riqueza que é acumulativo, no sentido de que nas mãos de alguns poucos nós temos uma acumulação da riqueza produzida. É isso que a retirada da proteção social gera. Não gera justiça social, gera maior acumulação da riqueza.
Então, são argumentos falaciosos, e é por isso que é preciso enfrentar de forma mais ampla o problema da inclusão. Não basta emprego, é preciso seguridade social, é preciso formas de participação, de integração nas forças produtivas, na democratização das forças produtivas. E é curioso pelo seguinte: o argumento é tirar de quem tem, mas só que o “quem tem” aí é o trabalhador miserável terceirizado, em comparação com o que não tem, que é o desempregado. Então, isto não é um parâmetro da distribuição da riqueza, na verdade. É um parâmetro de distribuição da miséria: vamos pegar quem já está em um nível próximo da miséria e tentar distribuir entre eles a miséria.
Isso não é fator de justiça social. Fator de justiça social é distribuição da riqueza a partir do capital para o trabalho. Então, são formas jurídicas de fazer com que o capital integralmente produzido fique enquanto maior parte para uso do conjunto da sociedade, e não nas mãos de alguns poucos, que detêm esse poder histórico, digamos assim, da propriedade e dos meios de produção. Por isso, na Constituição Federal, no pacto de solidariedade, o Estado Social é baseado na ideia da propriedade cumprir função social, da Economia se reger pelos ditames da justiça social. Então, essas fórmulas distributivas, que o Brasil jamais experimentou, são muito mais eficazes do que essas que são falaciosamente apresentadas.
ConJur — Há três anos, o senhor perguntou, em entrevista com Rogério Marinho, relator da reforma trabalhista, o que seria feito dali a alguns anos, caso a reforma não atingisse seu principal objetivo (geração de empregos). O que acha que será feito agora?
Jorge Luiz Souto Maior — Curiosamente, nós estamos três anos depois com essa pergunta e com a resposta dada também. Primeiro: não resolveu o problema, e o que eles estão querendo fazer? Retirar mais direitos. E são os mesmos, porque o Rogério Marinho está lá, junto com o Guedes. Agora, qual é o fim disso? Retomada da escravidão? Nós já estamos com trabalhadores de trabalho intermitente, terceirizados, que têm baixíssimos salários, que não têm vinculação sindical, que trabalham doze, catorze horas por dia, sem intervalo para refeição e descanso, sem efetividade mínima de direitos do ponto de vista das condições de trabalho, de salubridade, periculosidade. Porque não há fiscalização. Trabalhadores que depois não conseguem ingressar na Justiça do Trabalho por conta dos obstáculos criados pela reforma, uma Justiça do Trabalho que, como efeito da reforma, também se tornou um tanto quanto conservadora, no sentido de perder muito da sua visão social.
O que nós estamos vendo é que os trabalhadores atuam na realidade brasileira sem uma rede de proteção social. E é muito curioso que as pessoas não perceberam ainda, e quando nós estamos falando dessa formalidade de trabalhadores, nós estamos falando hoje da realidade atual de setembro — nós estamos em dezembro, mas o IBGE ainda não fechou. Pensando com setembro, nós estamos falando da realidade de 29 milhões de pessoas com carteira assinada. Em um país que tem 210 milhões de pessoas. E carteira assinada não significa uma rede de proteção social de verdade: é uma rede de proteção já fragilizada pela reforma. Tem uma gama de trabalhadores que têm carteira assinada que sequer receberam salários neste ano. Tem muita gente nessa situação. Portanto, hoje em dia, existem no máximo dez milhões de pessoas que têm carteira de trabalho assinada e cujos direitos são respeitados.
Então, qual o impacto econômico se gera com a redução de salário e de direitos desses dez milhões? Nenhum. Você só vai aumentar sofrimento de quem não precisaria. O que deveríamos visualizar? Como solucionar o problema de quem está sofrendo, e não aumentar o sofrimento. Porque o problema econômico não será solucionado, me perdoe, se você reduzir o custo em 20%, por exemplo, de dez milhões de pessoas que estão com carteira de trabalho na realidade brasileira. Isso é um despropósito do ponto de vista econômico. É inacreditável como a gente possa estar sendo gerido do ponto de vista econômico por uma pessoa que pensa com essa miudeza.
ConJur — E a reforma trouxe a propalada segurança jurídica?
Jorge Luiz Souto Maior — Essa expressão “segurança jurídica” é uma coisa retórica. A gente tem que saber o que a pessoa está pensando e o que ela está visualizando quando utiliza essa expressão. Ampliar a segurança jurídica de quem? De quem desrespeita a lei? Porque, no concreto do que foi o debate da reforma trabalhista, a expressão “vamos garantir segurança jurídica” trazia em seu substrato uma intenção de garantir segurança jurídica para quem desrespeita a lei.
Ou seja, “não queremos ser condenados pela Justiça do Trabalho”. Aí nós fazemos lá um contrato que reduz direitos, fazemos um contrato que está em desconformidade com os princípios jurídicos trabalhistas e com Constituição, aí vem a Justiça do Trabalho e nos condena: “isto não gera segurança para os negócios”. Não gera seguranças para os negócios porque o que se pretendia fazer são negócios jurídicos incompatíveis com a ordem jurídica. E o que eles fizeram? “Vamos mudar a ordem jurídica para que os nossos negócios possam então prevalecer”. Só que fizeram de uma forma como se a Constituição, o Direito do Trabalho e os princípios jurídicos trabalhistas não existissem. “O que vale então agora é a lei que nós criamos, para nós, para que as nossas vontades sejam juridicamente válidas”, foi isso que se fez.
Só que essas vontades que agora têm um respaldo na Lei 13.467 são vontades que, em relação à Constituição, não resistem a dois minutos de conversa — e ao mesmo tempo ferem vários preceitos internacionais trabalhistas das convenções da OIT. Porque o Direito do Trabalho é só isso: limitação do interesse econômico baseado na ideia de conferir à classe trabalhadora um patamar de integração social e econômica, numa perspectiva, como eu disse, de melhoria da condição social, política e democrática; ou seja, o Direito do Trabalho é um limitador do interesse econômico e historicamente foi assim. E serve inclusive à regulação do próprio modelo, porque um modelo desregulado do ponto de vista da concorrência é autodestrutivo.
Então, o que a Lei 13.467 menos fez foi garantir segurança jurídica para as empresas. Porque elas podem até alegar que agora há um dispositivo que permite reduzir tais direitos por negociação coletiva ou fazer isto ou aquilo. Só que, na verificação jurídica desta situação perante o Judiciário, quando o Judiciário aplica a Constituição, aplica os princípios jurídicos trabalhistas, aplica outras normas trabalhistas — porque os dispositivos da Lei 13.467 foram inseridos na CLT sem alterar completamente a CLT —, surgem conflitos de normas. Então, você tem ainda uma enorme gama de inseguranças jurídicas nessa perspectiva.
Mas segurança jurídica mesmo que nós deveríamos pensar não é a de uma empresa que pretende melhorar os seus negócios por meio do aumento da exploração do trabalho. A segurança jurídica que deveria se pretender é a segurança jurídica daquele que vende a sua força de trabalho para o implemento do capital. A segurança jurídica de alguém que vai lá e trabalha oito horas por dia todos os dias. A segurança jurídica é que ele consiga receber de fato o seu salário, que ele não trabalhe horas extras sem receber, que ele não bata cartão de ponto e volte a trabalhar sem receber essas horas, que ele não receba salário por fora.
É extremamente perversa essa inversão de valores, de buscar um argumento do ponto de vista da segurança jurídica para quem quer essa segurança para explorar ainda mais a força de trabalho. A segurança jurídica será dada para uma empresa na medida em que ela respeitar os direitos dos trabalhadores, previstos na Constituição. Simples assim.
E mais: a Lei 13.467 é muito mal feita, é muito mal elaborada do ponto de vista técnico, do ponto de vista linguístico; não há possibilidade alguma de você ter uma interpretação desse dispositivo que seja minimamente uníssona, que possa ser eliminadora de qualquer tipo de conflito. É uma lei terrivelmente mal feita do ponto de vista técnico-jurídico, do ponto de vista gramatical.
ConJur — Sobre o processo legislativo da reforma: o que dizer da MP 808?
Jorge Luiz Souto Maior — A MP 808 é um capítulo em si dessa história toda. Primeiro, porque a existência dela denuncia toda ilegitimidade do processo legislativo da Lei 13.467. Porque a MP 808 foi explicitamente o efeito de uma promessa feita pelo então presidente Temer a senadores: eles poderiam aprovar o projeto da reforma trabalhista, mesmo reconhecendo algumas das suas inconstitucionalidades, porque depois o presidente, por medida provisória, faria a devida correção. Veja, isso está nos registros históricos da aprovação da MP e da reforma trabalhista, sendo que isso foi dito inclusive na própria seção de votação da Lei 13.467.
É muito doido que isso tenha passado; mais doido ainda, que ninguém fale sobre isso, e que todo mundo encare a Lei 13.467 como uma lei regularmente aprovada no processo legislativo constitucional brasileiro. Não existe essa possibilidade na Constituição de o Senado reconhecer a inconstitucionalidade de uma lei ou de alguns dispositivos da lei, e ainda sim aprová-la, com a promessa de que o Poder Executivo depois vai corrigir essa inconstitucionalidade. Isso não está previsto no processo legislativo constitucional. Tampouco entre as funções da medida provisória.
Então, há um problema seríssimo, porque, ao reconhecer a inconstitucionalidade, o Senado deveria rejeitar a aprovação, o que obrigaria o projeto a retornar à Câmara; ou seja, o processo legislativo seria muito mais longo, não seria esse atropelo que foi, e o resultado poderia ser outro. Mas a Constituição não foi respeitada, a lei foi aprovada assim, e depois veio a tal MP 808, já nos últimos momentos das suas possibilidades.
E é uma medida provisória que é quase uma outra reforma, tentando corrigir os problemas da Lei 13.467. Ela é quase uma outra reforma, do ponto de vista do conteúdo, do ponto de vista da quantidade de dispositivos, e trazendo outros complicadores. É uma coisa enorme; quer dizer, é uma explicitação de todos os defeitos que a Lei 13.467 apresentava do ponto de vista jurídico. E não foi só isso, à MP 808 ainda foram acopladas 85 emendas. Ali se enunciava então o que seria de fato uma projeção de uma correção de todos os problemas da Lei 13.467 e tudo foi explicitado. Mas aí, para que isso não fosse completamente explicitado, deixaram a MP caducar, e nós ficamos com a 13.467 e todos os seus problemas. É incrível, isso. Como alguém agora se esquece de que nós temos uma lei inconstitucional, ilegítima, que fere os preceitos trabalhistas, que fere os preceitos do projeto da Constituição brasileira. É um despropósito jurídico total, vou usar essa expressão para não agredir ninguém.
ConJur — E quanto às ações que ainda vão ser julgadas pelo STF? Qual deve ser a tendência?
Jorge Luiz Souto Maior — Do ponto de vista das inconstitucionalidades, como eu disse, a primeira e fundamental é a inconstitucionalidade formal, que diz respeito à forma de aprovação que levaria a essa lei, caso a Constituição fosse de fato respeitada, a ser declarada toda ela inconstitucional, retirada do ordenamento jurídico, por conta de não ter respeitado o processo legislativo constitucionalmente estabelecido.
Mas, em relação a seu conteúdo de objetivos, ela por si também não passa no crivo da constitucionalidade, porque a Constituição projeta o princípio da melhoria da condição social dos trabalhadores, no caput do artigo 7º. E esta é uma lei que projeta a redução da condição social e econômica da classe trabalhadora. Claro, com a retórica de que estaria tirando de alguns para dar para outros, mas que de fato não faz; para outros, está tirando de alguns trabalhadores para dar para outros trabalhadores. Mas o que ela faz de fato é tirar dos trabalhadores e dar remédio para o capital. Então, centralmente ela também não passa pelo crivo da Constituição.
Por exemplo, está dito que o trabalhador pode trabalhar doze horas por dia, sendo que essas doze horas podem ser ampliadas por mais duas horas, e sem intervalo para refeição e descanso. Então nós temos uma lei segundo a qual é legal alguém trabalhar catorze horas por dia sem descanso. Isso não pode ser visto do ponto de vista da regularidade constitucional em uma Constituição que diz explicitamente: “a duração normal do trabalho é de oito horas em um dia e quarenta e quatro na semana”. Uma Constituição que só garante a possibilidade de alteração dos horários de trabalho e não alteração da quantidade das horas trabalhadas por dia, que é a jornada de trabalho; uma Constituição que, tratando de serviço além dessa jornada normal, trata como serviço extraordinário com uma remuneração específica e, portanto, não garante e não possibilita a existência de horas extras ordinárias, porque isso é um desdizer da limitação da jornada de trabalho como direito fundamental.
Então, são inúmeros os dispositivos da Constituição que foram arranhados pela reforma; por exemplo, o que não garante salário mínimo ao trabalho intermitente, ou os que tentam estabelecer uma quantificação para indenização por dano moral. Inclusive, quantificando a indenização por morte. Ou seja, nós teríamos aqui assunto para meses, de tão complexos que são esses dispositivos do ponto de vista da inconstitucionalidade, do ponto de vista das impropriedades técnicas.
No entanto, muitas das questões foram para o Supremo, e o Supremo se posicionou em duas delas. Em uma, declarando a inconstitucionalidade do trabalho da gestante em atividade insalubre, e em outra declarando a constitucionalidade do ponto de vista da contribuição sindical, da redução da contribuição sindical.
No entanto, sobre todas as demais questões, ainda não se pronunciou e eu não vejo nenhum efeito positivo do que possa vir. Porque declarar constitucional ou mesmo declarar inconstitucional um ou outro dispositivo vai nos continuar deixando sob a égide de uma lei que não serve ao modelo de estado social e de regulação do trabalho no Brasil. Mesmo aparando algumas arestas, mesmo declarando algumas inconstitucionalidades, isto não vai servir para melhorar a Lei 13.467 e não vai servir para melhorar as relações de trabalho no Brasil. E o pior ainda é se forem declarados constitucionais alguns dispositivos claramente inconstitucionais. Por exemplo, a condenação em honorários advocatícios da pessoa que tem justiça gratuita, o que é uma desconsideração plena do princípio constitucional de acesso pleno à Justiça.
E a situação é ruim mesmo quando o Supremo não se manifesta a respeito, nem pela constitucionalidade, e nem pela inconstitucionalidade; então, neste caso [sucumbência quando há gratuidade de justiça], o silêncio do Supremo faz com que uma quantidade enorme de trabalhadores e trabalhadoras esteja sendo submetida a situação concreta de condenações de honorários, às vezes elevadíssimos, que inviabilizam seu acesso à Justiça, que inviabilizam, anulam o efeito de terem buscado a Justiça para garantir os seus direitos.
Em suma, acho que o problema da Lei 13.467 é tão amplo que a solução não passa sequer por uma visualização do que venha a ser a posição assumida pelo STF, acho que nós precisamos dar passos muito mais contundentes do ponto de vista de reformulação do nosso pacto social.
ConJur — A reforma, por um lado, prevê a prevalência do negociado sobre o legislado. Por outro, acaba com a contribuição sindical obrigatória. Além disso, o artigo 477-A prevê que as dispensas coletivas podem prescindir de autorização dos sindicatos. A lei é contraditória, nesses pontos?
Jorge Luiz Souto Maior — Não há contradição. A gente olha para as normas e elas aparentemente se contradizem, mas não há contradição. Qual é a coerência? Aumentar o poder do capital, aumentar as possibilidades de extração de valor do trabalho. Eu posso permitir que o sindicato reduza os direitos dos trabalhadores porque, no ambiente de desemprego estrutural, os sindicatos não terão força para pedir melhores condições de trabalho; eu ameaço a dispensa coletiva com o 477; ameaçando com a dispensa coletiva, o sindicato é obrigado a aceitar a redução de direitos, e a redução de direitos não é, digamos, culpa minha (empregador), não é culpa do sistema, pois foram os próprios trabalhadores que aceitaram.
Então, no ambiente de desemprego estrutural, eu amplio as possibilidades de negociação do trabalhador para a redução de direitos, falo em liberdade negocial e igualdade negocial, mas eu preciso de algo que me traga esse “poder de convencimento” da classe trabalhadora de aceitar aquelas condições de trabalho, aumentar o meu poder, o meu poder de dispensar os trabalhadores coletivamente. Então, eu os coloco no dilema do “mal menor”: “Ou é reduzir, ou é o desemprego, vocês escolhem, eu não tenho nada com isso porque eu estou na concorrência econômica, a culpa não é minha, é o sistema, é a globalização”.
Então, não há incoerência, e ao mesmo tempo eu preciso que esses sindicatos sejam fragilizados, que eles percam a sua força, do ponto de vista de assistência jurídica e das suas relações com a base; então, tirar o orçamento do sindicatos faz parte deste mesmo objetivo. Eu não preciso ter coerência entre as normas, que podem ser completamente contraditórias, do ponto de vista “aqui a negociação coletiva foi privilegiada, aqui não foi”, porque o que interessa é a coerência do objetivo final.
Essas contradições são reveladoras, inclusive dos propósitos da Lei 13.467, que são os mesmos propósitos que foram apresentados na MP 927 na MP 936 nas quais, já durante a pandemia, para atender ao mesmo propósito (de aumentar a extração do valor do trabalho), a negociação coletiva que antes se permitiu ao sindicato deu lugar à negociação individual. Então, no momento da reforma trabalhista, há três anos, ou mesmo antes, nos debates, se dizia: “Vamos ampliar o poder de negociação dos sindicatos, porque os sindicatos no Brasil já estão muito aprimorados e conscientes, se eles quiserem, eles conseguirão negociar em pé de igualdade com os trabalhadores”.
Agora, no meio da pandemia, quando os sindicatos disseram: “Não, não vamos reduzir direitos dos trabalhadores no meio da pandemia”, qual foi a solução? Vamos para a via da negociação individual, sob o argumento de que os sindicatos no Brasil não querem negociar, não têm representatividade. Aí atacaram a negociação coletiva para privilegiar uma redução de salários pela negociação individual. Passaram por cima da negociação coletiva. Então, se você pegar do ponto de vista da linha das normas, olhar só para os dispositivos legais, você vai destacar inúmeras contradições. Mas se você olhar essas contradições do ponto de vista de entender ao que tudo isso se destina, você vê que é completamente coerente e revelador do que se pretendeu e do que ainda se pretende.
Crédito: Revista CONJUR – @internet 30/12/2020