PEC da reforma administrativa abrange funcionários federais, municipais e estaduais. Mas salários e benefícios de servidores é diverso, mostra Ipea
As mudanças efetivas que vão ocorrer na reforma administrativa ainda não estão gravadas em pedra. Após o envio de uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) pelo governo na semana passada, o Congresso vai ainda discutir o texto e incluir suas próprias alterações. Mas, dentre o que já se sabe, especialistas apontam um desafio que vai muito além de angariar votos para passar a PEC: garantir que ela abranja a diversidade dentro do setor público.
Não é uma tarefa fácil. Apesar do otimismo dos mercados com a reforma — o Ibovespa subiu mais de 2% no dia em que o governo anunciou que iria desengavetar o texto — a PEC enviada por ora pode não resolver as distorções mais profundas do funcionalismo. Mais ainda, pode impactar quem ganha menos, aumentar os privilégios para carreiras já privilegiadas e piorar a qualidade do serviço, segundo dados oficiais e especialistas ouvidos pela EXAME.
É no Executivo, alvo da PEC por enquanto, que está a maior parte dos servidores brasileiros, segundo informações do Atlas do Estado Brasileiro, organizado pelo Ipea. O Executivo concentra mais de 90% dos servidores públicos no Brasil, segundo os dados mais recentes do Atlas, enquanto o Judicário tem 3% dos servidores.
A remuneração é maior no Judiciário, que está de fora das mudanças por ora. A mediana de salário do Executivo é de 2,6 mil reais, ante 3,4 mil reais do Legislativo e 10,5 mil reais do Judiciário. (Ao contrário da média, a mediana é menos impactada por poucos itens fora da curva na contagem, isto é, poucos salários muito altos, dando uma ideia melhor do conjunto segundo estatísticos.)
Há ainda uma diferença de salário entre os níveis federativos. Enquanto a mediana de remuneração de um servidor federal é de 7,2 mil reais, a de um municipal é de 2 mil reais, segundo o Ipea — uma vez que, no geral, os concursos federais exigem maior qualificação logo na entrada. A disparidade piora ainda na comparação entre municípios ricos e pobres.
Embora tenham salários menores, servidores estaduais e municipais são os principais responsáveis por atender ao cidadão na ponta e representam cerca de 90% do total de funcionários públicos. Muitos têm funções tidas como essenciais na esfera pública, como professores e profissionais da saúde e da segurança.
Para a professora de administração pública Gabriela Lotta, da Fundação Getúlio Vargas, a reforma discutida até agora deixa de lado pontos que seriam mais prioritários, como o aperfeiçoamento da carreira dos servidores e redução das disparidades dentro do Estado. “Frequentemente dizemos que o objetivo da reforma administrativa é melhorar a saúde e a educação. Mas essas são as esferas que estão sendo mais impactadas negativamente segundo o que vem sendo discutido até agora”, diz.
É também nessas funções na ponta do serviço público, como professoras, enfermeiras e assistentes sociais, que costumam atuar minorias sociais, como servidores negros e mulheres, diz Lotta.
O Brasil tem, por exemplo, mais de 2,2 milhões de professores na educação básica, quase 80% mulheres. A maioria atua na rede pública e é servidor estadual ou municipal — já que, pela Constituição, não cabe ao governo federal gerir escolas de ensino básico. O piso salarial da categoria é de 2.886,24 reais para 2020, e muitos estados e municípios são constantemente processados por não cumprir esse valor.
“A reforma peca no sentido de não olhar com mais cuidado para carreiras mais privilegiadas do setor público, até do ponto de vista orçamentário. A dificuldade do governo em tratar de forma mais diferenciada os diversos setores do funcionalismo vai gerar uma dificuldade inclusive no momento de sua aprovação”, diz Rafael Cortez, da consultoria política Tendências.
Por fim, a reforma também terá de olhar para a desigualdade interna nas organizações. Para Lotta, que pesquisa há mais de uma década o serviço público brasileiro, é essa a mais invisível e mais problemática disparidade — e que a reforma ainda não deixou claro como pretende atacar. Possibilidades já previstas hoje na lei, como ajuste salarial por Medida Provisória, também podem favorecer categorias específicas e não são alterados na reforma por enquanto.
“Tem carreiras em que quem ganha 20.000 reais trabalha ao lado de quem ganha muito menos que isso, e fazendo coisas parecidas. E gera um ciclo vicioso, porque a burocracia que mais ganha é também a mais poderosa, que vai ter mais influência para brigar e conseguir direitos”, diz Lotta.
Para a pesquisadora, eventuais cortes de salários também precisariam ser feitos levando em conta essas disparidades. “Se a carreira não for atrativa — e muitas já não são nos municípios –, vamos ter uma burocracia que não é bem qualificada, porque topou ficar ali mesmo em condições adversas. E vai comprar produto ruim porque não fez boa licitação… A coisa vira sistêmica”, diz.
A PEC do governo não impacta os atuais servidores. Em alguns anos, haverá, portanto, dois tipos de funcionários públicos, com e sem as novas regras. A PEC também só mira, a princípio, nos servidores do Executivo.
A Câmara já se movimenta para fazer também uma reforma no Legislativo. O Judiciário deve ser pressionado a apresentar sua própria reforma. Também ficaram de fora da reforma magistrados e militares, com a justificativa de que são membros dos poderes, e não seus servidores.
“Não é uma proposta tímida”, disse o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, sobre a PEC do governo em entrevista à Globo News no dia da entrega do projeto. Na proposta da Câmara, o objetivo é reduzir em 40% o salário de novos servidores. “A economia mais importante é conseguir prestar serviço de melhor qualidade”, disse. O presidente acredita que será possível “atender mais gente” com os mesmos recursos e que haverá “um modelo competindo com o outro”, possibilitando avaliar qual é o melhor formato.
Reforma enxuta?
Um dos principais objetivos da reforma, ao mudar as regras para os servidores, é cortar gastos do governo. O Brasil gasta mais do arrecada há sete anos e os gastos com servidores públicos avançaram 145% em 12 anos, uma vez que os salários continuam sendo pagos. Ter mais espaço no Orçamento ampliaria a capacidade de investimento do governo, prejudicada sobretudo em meio à crise.
Mas o ajuste fiscal nessa vertente também não está sendo feito de forma profunda: ao não incluir os atuais servidores e não deixar claro como pretende mexer nas distorções salariais dentro dos poderes, o ganho no curto prazo pode ser pouco significativo.
Na coletiva em que detalhou a reforma na quinta-feira, 3, o Ministério da Economia usou a questão fiscal como justificativa para a reforma em boa parte de sua apresentação, mas afirmou que não consegue ainda calcular seu impacto fiscal porque depende das discussões no Congresso.
“Essa timidez na PEC me parece ser decorrente de uma falta de convicção do Executivo, em particular do presidente Jair Bolsonaro, em relação ao conteúdo da reforma. Repete o formato da questão tributária, a opção por uma reforma fatiada”, diz Cortez, da Tendências. “Em termos de impacto fiscal, a reforma administrativa precisaria ser pensada junto com outros itens da pauta.”
A reforma tributária, que era uma das prioridades para o ano, teve a urgência retirada pelo governo.
A PEC do governo traz alguns pontos bem-vindos e que podem ser aprimorados no Congresso. Entre eles está a ampliação do estágio probatório — o servidor, antes de chegar à estabilidade, fica trabalhando por algum tempo para mostrar suas habilidades –, a redução do número de carreiras, padronização da remuneração entre elas para evitar distorções e a possibilidade de mudança de área entre diferentes setores.
Dentre as principais (e mais polêmicas) mudanças apontadas na PEC da reforma administrativa está o fim da estabilidade de servidores em algumas funções com o fim do chamado regime jurídico único. Algumas carreiras terão contratações simplificadas, sem concurso público e com prazo definido para saída no contrato.
Quais serão os chamados cargos de Estado, que continuarão com estabilidade, ainda não foram definidos. É relativo consenso entre especialistas que muitas carreiras não precisam de estabilidade — e muitas já a perderam, como vários cargos estaduais e municipais.
Uma preocupação é garantir que carreiras importantes não percam a estabilidade para evitar pressões políticas. O consultor legislativo no Senado, Vinícius Amaral, escreveu no Twitter que a criação de carreiras que chamou de “vulneráveis” é “o sonho dourado de políticos perversos e corruptos. “Esses servidores serão presa fácil de infinitos pedidos dos superiores por ‘notas técnicas, ‘pareceres’, ‘reconsiderações’ e ‘atestos’ que lhes sejam convenientes.”
Outro dos pontos criticados por pesquisadores após a divulgação dos detalhes foi o aumento dos poderes do Presidente da República com relação à burocracia. O presidente ganhou o direito de fazer mudanças organizacionais como extinção de cargos, funções e gratificações. Pode ainda extinguir órgãos ou reorganizá-los.
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Embora um dos objetivos do governo, segundo o ministro da Economia, Paulo Guedes, seja aumentar a meritocracia no Estado, a progressão de carreira também precisará ser detalhada no Congresso.
Uma reforma ideal, na visão de Lotta, precisaria proporcionar que servidores com bom desempenho e que se qualifiquem, consigam evoluir na carreira estatal para incentivar a meritocracia. “Do contrário, um servidor que ganha 2.000 reais, se fizer doutorado e for se qualificando, vai prestar concurso para sair da sua área e ir para outro lugar, porque é o único jeito de ganhar mais. E gera um problema de alta rotatividade no Estado que é ruim para a prestação de serviços públicos”, diz.
A reforma administrativa virou o tema da semana de uma hora para outra. A previsão era de que a reforma, uma das principais promessas do governo, ficaria na geladeira até o ano que vem. O anúncio de que o tema havia voltado à mesa foi feito logo depois de Bolsonaro anunciar a prorrogação do auxílio emergencial até dezembro — agora, no valor de 300 reais.
Há ajustes desejados pelas várias alas do espectro político, mas o começo da discussão traz oportunidade para que o debate seja aprimorado ao longo dos próximos meses. “O primeiro ponto é que, sempre que o governo envia um projeto de lei, independentemente de seu conteúdo inicial, se abre oportunidade para que o tema seja discutido com maior materialidade. Nesse sentido, a despeito da timidez do texto inicial, é uma janela de oportunidade para que o debate ganhe maior concritude”, diz Cortez.
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