Brasil consegue vacinar 60 milhões por mês contra covid-19; só falta a vacina, diz fundador da Anvisa
Pouco depois de iniciar o seu programa de vacinação contra a covid-19, o Brasil já figurava entre os 10 países com maior número absoluto de imunizados, embora tenha largado atrás de nações europeias e de países sul-americanos, como Argentina e Chile. Mas a rapidez garantida pela experiência do Sistema Único de Saúde (SUS) com vacinações esbarra na falta de vacinas e planejamento.
Segundo o médico sanitarista Gonzalo Vecina Neto, professor da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP), se o Brasil tivesse negociado e comprado mais doses antecipadamente, teria estrutura para concluir a vacinação de toda a população brasileira com mais de 18 anos até o meio do ano.
Fundador e primeiro presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), criada em 1999, Vecina Neto calcula que o SUS tem condições de administrar 3,04 milhões de vacinas contra a covid-19 por dia, o que daria cerca de 60 milhões de vacinados por mês, considerando 20 dias úteis.
Como existem 159,1 milhões de brasileiros com mais de 18 anos, segundo a Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) 2019, seria possível concluir as duas doses, diz Vecina Neto, em meados de julho. Por enquanto, as vacinas contra covid-19 não são administradas em crianças e adolescentes, por isso o cálculo só considera adultos.
“Temos hoje 38 mil unidades básicas de saúde com pelo menos uma sala de vacinação com geladeira especializada em módulos, que conserva a temperaturas de 2 a 8 graus. Na pior das hipóteses, se consegue vacinar 10 pessoas por hora”, explica Vecina Neto, que já foi secretário municipal de Saúde de SP, entre 2003 e 2004, e secretário Nacional de Vigilânca Sanitária, no Ministério da Saúde.
“Se vacinarmos 10 pessoas por hora, num dia de trabalho de 8 horas, dá 80 vacinas. Então, eu tenho condição teórica de vacinar 3 milhões de pessoas por dia útil. Isso para 20 dias úteis, tenho condições de vacinar, em um mês, sem fazer muito esforço, 60 milhões de pessoas”, calcula.
Apagão de vacinas?
Do início da vacinação, em 17 de janeiro, até agora, 5,5 milhões de pessoas receberam a primeira dose. O Brasil é o oitavo país em número absoluto de vacinados.
Mas só foram distribuídas pelo país 12 milhões de doses dos imunizantes CoronaVac e Oxford-AstraZeneca, quantia suficiente para vacinar apenas 6 milhões de pessoas- menos que 3% da população.
Municípios já começaram a alertar para a necessidade de suspender as vacinações, porque as primeiras doses acabaram antes da segunda remessa chegar.
É o caso da cidade do Rio de Janeiro, que paralisou a vacinação na quarta-feira (17) para quem ainda não recebeu a primeira dose. A expectativa é retomar uma semana depois (23), quando está prevista a chegada de uma nova remessa de doses. Também suspenderam a vacinação Porto Alegre, Salvador e Cuiabá.
“A nossa experiência com a vacina da gripe mostra que temos capacidade de imunizar rapidamente. No ano passado, em 2020, vacinamos 80 milhões em três meses. Temos condições de fazer. O que falta? Faltam vacinas”, lamenta Gonzalo Vecina Neto.
O Ministério da Saúde diz que reservou mais 364,9 milhões de doses de vacinas com o Butatan, a Fiocruz e o consórcio internacional Covax Facility, ligado à Organização Mundial da Saúde. Mas a distribuição desses lotes vai ocorrer ao longo do ano.
Negociação tardia
Segundo Vecina Neto, o grande erro do governo federal foi não ter negociado e reservado lotes no ano passado, quando as fabricantes ainda estavam produzindo os imunizantes e testando a eficácia. É o que fizeram Chile, Reino Unido, Estados Unidos, Alemanha e dezenas de outros países.
“O Chile hoje tem 3 doses de vacina por habitante, só que ele começou a comprar vacina em setembro. Nós não fizemos isso. Não fosse a Fiocruz e o Butantan, não teríamos vacina.”
Agora, diz o sanitarista, os principais fabricantes, como Pfizer e Moderna, já negociaram grande parte de sua produção e não teriam volume disponível para suprir a população brasileira.
E a capacidade de produção do Butatan e da Fiocruz, para produção das vacinas CoronaVac e Oxford-AstraZeneca, esbarra no ritmo de importação de insumos da China.
“O Ministério da Saúde foi de uma miopia muito grande em não fazer aposta, em não investir na produção de vacinas antes do registro. Quem fez aposta e correu o risco foram Butatan e Fiocruz, a primeira apostando na CoronaVac e a segunda na Oxford-AstraZeneca”, critica Vecina Neto.
“A questão agora nem é preço. É ter o produto. É de acesso mesmo.”
Restou apostar na Sputnik V e na indiana Covaxin
Como boa parte dos lotes das vacinas com eficácia comprovada já foram negociadas, no curto prazo, o Brasil pode comprar o excedente ou apostar em vacinas que ainda despertam desconfiança ou que não concluíram a fase 3 de testes.
Vecina Neto cita como exemplos a russa Sputnik V e a indiana Covaxin. O Ministério da Saúde informa, em seu site, que negocia a compra de 10 milhões de doses da Sputnik V, entre março e maio, e outras 20 milhões de doses da Covaxin, para o mesmo período.
As duas vacinas ainda não apresentaram detalhes de testes clínicos para que a Anvisa possa liberar o uso emergencial.
A Sputnik V, especificamente, já foi alvo de críticas internacionais pela falta de transparência no processo de fabricação do imunizante. Mesmo na Rússia o ritmo de vacinação começou lento, porque a população questionava a eficácia da vacina.
Em 2/2, o Instituto Gamaleya de Pesquisa da Rússia, responsável pela vacina Sputnik V, divulgou os resultados preliminares da vacina Sputnik V no renomado periódico científico The Lancet. Os dados revelaram uma taxa de eficácia de 91,6%.
O estudo de fase 3 que avalia a eficácia e a segurança deste imunizante envolve 20 mil voluntários e continua em andamento para avaliar a proteção ou possíveis efeitos colaterais em longo prazo. Outra importante observação do artigo publicado no The Lancet foi o fato de a Sputnik V ter funcionado bem em indivíduos acima dos 60 anos. Na análise de um subgrupo de 2 mil idosos, a eficácia também ficou na casa dos 91%.
A vacina, aplicada em duas doses com um intervalo de 21 dias entre elas, está aprovada em mais de 15 países, incluindo Rússia, Argentina, Paraguai e Venezuela.
No Brasil, a Anvisa está avaliando um pedido feito pela farmacêutica União Química, que tem um acordo com o Instituto Gamaleya para transferência de tecnologia. A empresa brasileira calcula que tem capacidade de fabricar e distribuir 150 milhões de doses do imunizante até dezembro de 2021.
Mas tudo depende de autorização da Anvisa.
No caso da vacina indiana Covaxin, especialistas em doenças infecciosas da Índia criticaram a aprovação emergencial no país dessa vacina antes da conclusão dos testes de eficácia e segurança.
O controlador-geral de medicamentos da Índia, V. G. Somani, afirmou que a Covaxin é “segura e fornece uma resposta imunológica robusta”.
Mas a entidade independente de vigilância de saúde All India Drug Action Network disse haver “preocupações significativas decorrentes da ausência de dados de eficácia”, bem como uma falta de transparência.
“Eu não vejo problema nessas vacinas desde que tenham a fase 3 prontas. A Sputnik V não terminou de fazer estudo de fase 3. A Índia não terminou a fase 3 para a Covaxin. Tem que terminar e apresentar o resultado, é o padrão internacional. Tem que ter estudo com tamanho razoável, de entre 30 mil a 40 mil pacientes”, opina o professor da USP.
Ritmo de vacinação pode acelerar a partir de março
Vecina Neto diz, porém, que o ritmo de vacinação deve acelerar a partir de março, quando está prevista a entrega de mais de 38 milhões de doses de CoronaVac e Oxford-AstraZeneca.
“A partir do final de março vamos passar a ter cerca de 30 milhões de doses por mês para vacinar. O ritmo de vacinação deve melhorar”, afirma.
Mas, segundo o professor da USP, além de correr atrás do prejuízo nas negociações por vacinas, o governo federal precisa organizar uma campanha nacional de vacinação, com propaganda e divulgação em massa de informação.
“As pessoas vão vacinar porque são convocadas. Não tinha tido até hoje vacina, no âmbito do Programa Nacional de Imunizações, que não tivesse campanha. Não houve campanha de vacinação para covid-19”, diz.
“Falta divulgação, falta marketing, falta Zé Gotinha.”
Crédito: Nathalia Passarinho/ BBC News Brasil em Londres – @internet 18/02/2021