Empresas privadas e públicas temem o fim da garantia mínima de dez anos, através da maior ação judicial do gênero no mundo
Imagine que você teve uma ideia inovadora, na qual investiu tempo, dinheiro e toda a sua capacidade profissional. Você procura o Instituto Nacional da Propriedade Industrial (Inpi) para obter uma patente para sua invenção, contando que ela lhe dará o direito de exclusividade ao longo dos 20 anos seguintes à data em que o pedido foi protocolado.
Mas, e quando o processo no Inpi se arrasta por muito tempo? Esse é um problema real, já que, na última década, o tempo médio para a conclusão da análise de pedidos de patente foi de 12 anos e 8 meses para telecomunicações e medicamentos – ou seja, o inventor teve de fato menos da metade dos 20 anos previstos para desfrutar da exclusividade sobre sua invenção.
A Lei de Propriedade Industrial (LPI) em vigor desde 1997 trouxe um dispositivo que busca amenizar esse prejuízo causado pela morosidade do Inpi: o parágrafo único de seu artigo 40. Ele determina que as patentes de invenção terão um mínimo de dez anos de vigência contados a partir da data de sua concessão. Com isso, caso o Inpi leve mais de dez anos para concluir o exame de um pedido – situação que acontece com muita frequência –, o titular da patente fica resguardado pelo prazo mínimo.
Consequências amplas
Essa garantia fundamental está sob ameaça, no entanto. Uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI), encaminhada em 2016 pela Procuradoria-Geral da República e pelas empresas que controlam as vendas de medicamentos para o governo, será julgada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no próximo dia 7.
A ADI 5529 contesta justamente o dispositivo da Lei de Patentes que assegura o tempo mínimo, buscando a nulidade de todas as patentes concedidas com prazo de vigência de dez anos da concessão. “Há um interesse claro por trás desse pedido, notadamente a venda de medicamentos para o governo sem licitação, que conseguiu emplacar a maior ação de nulidade de patente que o mundo já viu, disfarçada de pleito constitucional”, diz o advogado Otto Licks, do escritório Licks Attorneys, um dos maiores especialistas do País no regime jurídico das patentes.
“Só que as consequências serão muito mais amplas e catastróficas para a indústria, a economia e a ciência do Brasil”, ele alerta. O mercado de telecomunicações exemplifica bem o enorme golpe que a eventual nulidade causaria: 89,8% das patentes relacionadas ao setor seriam anuladas.
O Licks Attorneys organizou em parceria com o Media Lab Estadão um webinar para discutir a questão, durante o qual foram apresentados números impressionantes. Caso a tese da ADI seja acolhida, cerca de 31 mil patentes seriam imediatamente atingidas no Brasil. Isso corresponde a 46,6% das patentes vigentes no País – sendo que, destas, apenas 1.074 são de fármacos e 878, de biofármacos. Outros 12 mil pedidos de patentes de todos os setores perderiam a proteção com a qual seus inventores contavam ao iniciar o processo.
Crise de confiança
“O caminho da inovação é longo e exige muitos investimentos”, afirmou o economista Samy Dana, participante do debate. Ele lembrou que, na indústria farmacêutica, apenas uma em cada 250 pesquisas de segurança e eficácia de novos compostos químicos iniciadas se transforma efetivamente em um novo medicamento nas prateleiras – as outras ficam em algum ponto do caminho, pelas mais diversas razões. “Quando você permite que só o caso positivo seja copiado, o resultado é óbvio: você desincentiva a inovação, e a longo prazo isso será uma tragédia para o País”, projeta Dana.
E não se trata de defender apenas os interesses da iniciativa privada. Ao contrário: entre os maiores detentores de patentes no Brasil – principal usuário do sistema de patentes do País – estão instituições públicas de pesquisa ou ensino. A Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), as Universidades de São Paulo (USP) e de Campinas (Unicamp) e as Federais do Rio de Janeiro (UFRJ), de Minas Gerais (UFMG), do Rio Grande do Sul (UFRGS) e do Paraná (UFPR) somam 1.355 patentes de invenção vigentes, das quais 703 (ou 51,9%) perderão validade caso o STF acolha a tese da ADI.
Outro aspecto que seria fortemente abalado é a confiança dos investidores internacionais no País nos mais diferentes segmentos da economia. Como demonstra o infográfico que ilustra esta página, boa parte das patentes de empresas estrangeiras também seria atingida pela mudança na lei. Os Estados Unidos, segundo maior usuário do sistema de patentes do País, atrás apenas do Brasil, perderão quase metade de suas patentes. “Se o STF anular quase metade das patentes existentes no Brasil, vamos ter um número muito menor de investimentos estrangeiros produtivos, como novas fábricas e produtos inovadores”, assegura Otto Licks.
“Mudanças radicais no sistema de administração de patentes do Brasil apresentarão inúmeras e imediatas questões para inovadores tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos”, afirmou Robert Grant, diretor sênior de Relações Internacionais da Câmara de Comércio dos EUA e participante do webinar.
Uma alternativa que os especialistas consideram adequada neste momento é que o STF retire o tema da pauta e deixe os ajustes na LPI por conta do Congresso Nacional, já que há um anteprojeto de lei assinado pelo ministro da Economia nesse sentido. “Trata-se de uma questão legislativa, e como tal deve ser tratada”, observou Licks.
Petrobras teme perdas em diversas frentes
“Estamos acompanhando essa questão das patentes com muita preocupação”, afirmou, durante o webinar, o gerente sênior de Gestão da Inovação da Petrobras, Luciano Felipe Rodrigues. “A empresa é um dos símbolos da inovação no País e tem ajudado a mostrar ao mundo do que o Brasil é capaz, mas uma decisão como essa representa um descolamento em relação às boas práticas globais.”
A Petrobras é a maior detentora nacional de patentes. Das 588 patentes vigentes da empresa, 48,9% estão sob ameaça de extinção por conta do julgamento do STF. “Nosso centro de pesquisas conta com 1.300 pesquisadores, dos quais mais de 250 têm doutorado”, descreveu Rodrigues.
Os pedidos de patente servem como uma proteção a todos esses investimentos – apenas no ano passado, a empresa encaminhou 82 pedidos. Rodrigues lembrou que a Petrobras tem muitas parcerias com empresas e instituições de pesquisa, do Brasil e do exterior, e ressaltou que uma decisão que reduz a segurança dos investidores tende a afastá-los do País. “Eles irão procurar países com um cenário mais favorável.”
Consumidor perde
A discussão diz respeito a cada um dos brasileiros, pois pode influenciar diretamente a qualidade e o preço dos produtos nos mais diversos setores. “Os direitos do consumidor não se resumem ao Código de Defesa do Consumidor. Antes disso, é preciso que haja mercado”, lembrou durante o debate o advogado Luciano Timm, ex-secretário Nacional do Consumidor e sócio no Carvalho, Machado e Timm Advogados.
“Imaginar que a solução é reduzir as garantias das patentes é dar o remédio errado para a doença da qual estamos falando, que é a ineficiência da administração pública brasileira. Se o Inpi melhorar o seu desempenho, tudo se resolve”, observou Timm.
Crédito: Conteúdo de responsabilidade de Licks Attorneys, Media Lab Estadão publicado no O Estado de São Paulo – @internet 07/04/2021
Antes de mais nada, me parece que faltou explicar o que está sendo discutido neste momento pelo STF, que é o parágrafo único do Artigo 40 da Lei de Propriedade Intelectual brasileira (Lei 9279/96) e não todo sistema legal de Propriedade Industrial, como insinua tendenciosamente a reportagem.
Para que fique claro, segundo o dispositivo legal em questão, “o prazo de vigência não será inferior a 10 (dez) anos para a patente de invenção e a 7 (sete) anos para a patente de modelo de utilidade, a contar da data de concessão, ressalvada a hipótese de o INPI estar impedido de proceder ao exame de mérito do pedido, por pendência judicial comprovada ou por motivo de força maior.” Isso na prática significa que se a concessão ocorrer após 10 anos da data do pedido, cada dia/mês/ano extrapolado será somado aos 20 anos previstos no sistema de Propriedade Intelectual, no caso dos pedidos de patentes de Invenção.
A abordagem na reportagem não leva em conta que a exploração comercial do pedido de patente não se inicia na concessão e sim no depósito do pedido. Sendo assim, 20 anos seria tempo suficiente para que a empresa investidora em P&D recuperasse o valor investido. Não há prejuízos já que exclusão da possibilidade de terceiros usufruírem do invento se inicia no ato do depósito e não na concessão da patente.
É importante salientar que na maior parte do mundo, não existe mecanismo semelhante de extensão. Ela é concedida em situações muito específicas e plenamente justificáveis e devem estar alinhadas aos propósitos do TRIPS, que é o acordo internacional gerido pela OMC, do qual o Brasil é signatário.
Ainda há outro problema oculto a ser levado em conta, que quem trabalha com patentes conhece bem. As empresas, por meio de seus representantes, escritórios de advocacia em PI, usam de artifícios, como alterações nos pedidos, procrastinações ao responder exigências do INPI, entre outros procedimentos, o que propositalmente são realizados pra aumentar o prazo de processamento dos pedidos e por tabela de vigência das patentes. Na área de biotecnologia, sobretudo na farmacêutica, isso é usado habitualmente como forma de se beneficiar do parágrafo único do Art. 40. Há histórico de pedido de fármaco se valendo de extensão de 10 anos, com total de 30 anos de vigência. Nesse prazo, não há genérico, não há similar, o titular tem o total poder de barganha, o que sempre majora o valor de venda, tornando o medicamento inacessível a uma boa parte da população.
O SUS gasta bilhões anualmente em medicamentos de alto custo cujas patentes estão fora do período dos 20 anos, mas com extensões concedidas com base no parágrafo único do Artigo 40 da LPI. Quem tiver curiosidade, recomendo ler as análises da Dra. Julia Paranhos, da UFRJ, que há anos tem feito estudos na área e cujas publicações estão entre as que estão sendo usadas para fundamentar a discussão no STF. Ele pode ser encontrado no livro disponibilizado pela Abifina em https://linktr.ee/abifina
Por meses escutei discussões semanais do meio acadêmico, do meio jurídico nos mais diferentes níveis, escritórios de PI e também do próprio INPI. Ao final de toda discussão de prós e contras, sou totalmente a favor da eliminação desse mecanismo de extensão, ainda que hajam alguns danos para alguns (no caso os mais ricos).
Na discussão como a colocada na reportagem, o que me parece é que escritórios de PI, na sua maioria, estão preocupados com os seus próprios interesses e de seus clientes trilhonários, especialmente das indústrias de alta tecnologia. No fim, a conta social desse dispositivo legal, é de todos cidadãos, sendo ainda mais prejudicial aos mais pobres, que acabam sendo muitas vezes excluídos do acesso a medicamentos e tecnologias essenciais para melhoria da qualidade de vida.
Ana Paula G. B. Azevedo, Gestora de Propriedade Intelectual, Divisão de Inovação Tecnológica do Inmetro e docente da disciplina de Propriedade Intelectual dos cursos de pós-graduação do Inmetro.