“Não há meritocracia sem direitos iguais”

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Matheus ganhou atenção após passar em Medicina tendo estudado por conta própria, em condições adversas - mas não quer que sua história seja 'romantizada' para promover a meritocracia @reprodução bbc
‘Não há meritocracia sem direitos iguais’: o desabafo do jovem que ficou famoso ao passar em Medicina estudando sem luz elétrica
A vida de Matheus de Araújo Moreira Silva, de 26 anos, mudou drasticamente no último mês.

O jovem morador de uma comunidade quilombola de Feira de Santana, na Bahia, realizou seu grande sonho: começou a cursar Medicina na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, depois de quatro anos tentando ser aprovado no curso.

“Estudei. Resisti. Consegui”, escreveu Matheus em seu Instagram para comemorar.

Com isso, Matheus se tornou uma espécie de minicelebridade. Ele tem dado entrevistas praticamente diárias a respeito de como conseguiu tirar a nota quase máxima na redação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e ser aprovado em um curso concorrido de uma universidade federal, mesmo tendo estudado por conta própria, em uma casa sem energia elétrica e sem acesso à internet. Mas a fama tem sido agridoce, diz Matheus.

Ele diz que é bom poder servir de exemplo para outros que estudam em condições adversas e que não se acham capazes de chegar à faculdade.

Mas não quer ver sua história de vida e seu esforço usados para exaltar a meritocracia e por quem critica um suposto “vitimismo negro” — ou seja, a ideia de que negros poderiam competir por oportunidades em condições de igualdade que brancos e aqueles que reclamam das injustiças causadas pelo preconceito estariam se colocando na posição de “vítimas” sem motivos para isso.

“Isso está me incomodando demais. Esse discurso é balela”, diz Matheus à BBC News Brasil.

“Poxa, o que eu sofri eu não desejo para nenhum estudante. Se tivesse tido um bom local para estudar, se não tivesse tido que trabalhar, teria facilitado bastante.”

Uma das manifestações públicas que o incomodaram veio do presidente da Fundação Cultural Palmares, Sergio Camargo. O órgão, ligado ao governo federal, é dedicado à promoção da cultura afro-brasileira.

“Enquanto pretos vitimistas jogam suas vidas fora na militância ressentida, bailes funk, vício da maconha, bandidagem e manifestações de esquerda, esse rapaz dedicou-se ao estudo com muita disciplina e esforço, associado à fé em Deus. Matheus venceu em meio a grandes dificuldades (sem luz nem internet). Ele é a prova de que negros não precisam ser vítimas. Terá um futuro brilhante. Parabéns!”, escreveu Camargo no Twitter.

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“Meritocracia é quando as pessoas têm os mesmos direitos. (…) Para a gente que é de periferia, de interior, de favela, as políticas públicas não chegam. Sempre trabalhei num turno e estudei no outro, o que é bastante complicado, porque nossos pais não têm condição de pagar cursos, materiais. Você chega cansado, e isso atrapalha bastante.”

“Às vezes precisa (escolher entre) trabalhar para ter dinheiro e botar comida em casa, ou estudar. Não acho bonito ter que fazer essa escolha complicada”, prossegue.

Matheus lamenta que muitos estudantes, como ele próprio, não disponham de ambientes adequados para estudar dentro de casa e tenham ficado sem opções durante a pandemia, quando escolas e espaços públicos foram fechados.

“Então, romantizar a pobreza não é algo legal, é triste. Eu ter tido que estudar sem energia elétrica e o pessoal achar ‘que bonito, que belo’ não é nem um pouco legal.”

Trajetória

Matheus começou a prestar o Enem em 2015. Fez as provas todos os anos desde então. Chegou a ser aprovado em Enfermagem e fez curso durante dois anos, mas desistiu para se concentrar no sonho de fazer Medicina.

Neste último ano, sem ter espaço para estudar em casa e com a biblioteca local fechada, Matheus passou a estudar na casa de uma amiga — onde não havia energia elétrica ou internet.

Para contornar os desafios, Matheus contratou um plano de dados no celular e passou a dedicar-se ao estudo com “disciplina de atleta”.

Ele conta que lia constantemente, de livros a gibis e reportagens, para estimular sua capacidade de interpretação de texto e aumentar seu repertório — habilidades úteis nas provas de linguagem e redação.

Também usou materiais gratuitos online e provas antigas para se preparar.

Adaptou-se ao chamado “método pomodoro” de estudos, que preconiza que o estudante dedique-se a uma tarefa por 25 minutos e em seguida faça uma pausa de 5 minutos, e depois repita o mesmo procedimento com a segunda tarefa, e assim por diante.

Esse tipo de método, segundo neurocientistas, ajuda a descansar o cérebro e a tirar o máximo proveito da capacidade de atenção.

Para simular as condições exatas que enfrentaria no dia do Enem, Matheus passou a estudar à tarde e usando máscara, com o objetivo de “acostumar minha respiração”.

“Estudar não é só sentar na cadeira e riscar papel. Tem que ter método, estratégia”, argumenta.

“Fiquei tantos anos fazendo tanta prova que pensei, ‘puxa, o que posso fazer para facilitar meu processo de aprendizado?’ (Decidi que) ia me preparar como atleta; ter disciplina, foco”.

E essa rotina de estudos tinha de ser conciliada com o trabalho. Matheus já trabalhou como carregador, vendedor de frutas e entregador de pizza, até começar a dar aulas de reforço.

A dedicação, porém, foi recompensada. Na redação do Enem mais recente, Matheus obteve 980 pontos, perto da nota máxima de mil, e foi aprovado na UFRB.

Agora, ele está cursando Medicina à distância (temporariamente, por conta da pandemia), até chegar a hora de mudar-se para a universidade, na cidade de Santo Antônio de Jesus, em novembro. Seu objetivo, por enquanto, é especializar-se em Medicina da Família ou Neurologia.

O jovem fez uma vaquinha para conseguir dinheiro para comprar um computador e para custear suas despesas universitárias e obteve ajuda de famosos, como a ex-BBB Camilla de Lucas.

“Mas a maioria das pessoas que me ajudaram são pessoas como eu, simples — donas de casa, pedreiros, que sentiram uma certa identificação. Alguns mandaram mensagens dizendo ‘não desista, você representa muito para mim’, e ajudaram com R$ 1 ou R$ 5. Agora não sou mais eu — sou eu e mais um monte de gente”, comemora.

“Eu não tive cursinho, não tive dinheiro pra isso. Não consegui bolsa. então fui estudar por conta própria, o que foi bastante complicado. Aí tem os amigos (que perguntam) ‘Matheus, como conseguiu fazer isso, velho, num período de pandemia, sem energia, sem cursinho, sem recursos? Tu conseguiu algo bem grande’. É, mas tudo o que eu criei foi um molde, uma estratégia, para poder facilitar na hora da prova.”

‘Redação com Matheus’

Fotomontagem de Matheus estudando e comemorando a aprovação
Matheus agora dá dicas de preparação para vestibulares e Enem para jovens que, como ele, têm poucas condições de estudar @reprodução

Seu perfil no Instagram, Redação com Matheus, hoje tem 18,4 mil seguidores. Matheus compartilha seu método de estudos e dá dicas — sobretudo para a temida prova de redação — para outros estudantes “sonhadores” como ele.

“Agora, eu tenho uma certa representatividade, e acho bom que (os jovens) tenham alguém em quem se espelhar. Hoje em dia, tudo é instantâneo, então, você olhar para alguém e sentir identificação é legal”, afirma.

“Todos os dias chegam centenas de mensagens de jovens como eu, do interior, de zonas periféricas, dizendo ‘você me inspirou, vou estudar também, sei que vai ser complicado'”, conta ele.

“Os meninos aqui no bairro quando eu passo dizem ‘olha ali o menino que passou em Medicina’. Tem os que chegam em mim e falam ‘o tio, vou estudar para ser igual ao senhor, para ser grande’. Vejo que poxa, tem um certo impacto. Quando você vê alguém igual você vencendo, isso te motiva – ‘pronto, dá para mim também’. É algo bastante interessante e gratificante.”

Mas defende que jovens como ele precisam de políticas específicas, além de fontes de inspiração. “Não era para ter sido tão difícil assim para mim”, diz.

“Eu conseguir pular o sistema (e ser aprovado no vestibular) virou uma notícia tão grande porque não é comum, não é padrão, mas era para ser padrão”, afirma.

“Falta explicar os caminhos possíveis para quem concluir o ensino médio, mostrar os cursos técnicos para quem não quiser fazer faculdade, dizer ‘se capacite, não fique só com o ensino médio’. Tem que dar caminhos para abrir os horizontes (dos jovens).”

Crédito: Paula Adamo Idoeta/ BBC News Brasil – @internet 29/07/2021

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