A visita do presidente brasileiro Jair Bolsonaro a Moscou nesta quarta-feira (16/02) – em meio à maior mobilização militar na Europa desde a Guerra Fria e ao receio de uma possível invasão da Ucrânia pelas tropas russas – deixou ressabiadas as potências ocidentais.
No início de fevereiro, o presidente argentino, Alberto Fernández, já havia manifestado, de forma enfática, o desejo de que a Rússia tivesse um papel mais forte na região: “Queremos ver como a Argentina poderia se tornar uma porta de entrada para a América Latina, de modo que a Rússia possa ganhar uma posição mais importante na América Latina”, disse o argentino durante uma reunião com Putin em Moscou.
Pouco antes, a Rússia parecia estar disposta a corresponder esse desejo, em termos militares. Em resposta ao que Moscou vê como um desrespeito aos interesses de segurança russos na Europa, a Rússia estaria cogitando aumentar sua presença militar em Cuba e na Venezuela. “Não quero confirmar nem descartar nada”, disse em meados de janeiro o vice-ministro russo do Exterior, Sergei Ryabkov.
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Foto: Oficial Kremlin/PR
Ameaça de nova crise dos mísseis?
No Ocidente, tais palavras evocam a memória da crise dos mísseis em Cuba, em 1962. Na época, a instalação de mísseis russos em Cuba levou o mundo à beira da guerra nuclear. Ao final, chegou-se a um acordo. Os navios russos com mísseis a bordo deram meia-volta, e os Estados Unidos retiraram da Turquia os mísseis de médio alcance que poderiam alcançar Moscou. A Rússia busca um acordo semelhante na crise da Ucrânia?
Günther Maihold, especialista em América Latina da Instituto Alemão de Assuntos Internacionais e de Segurança (SWP), em Berlim, é bastante cético em entrevista à DW: “Criar uma nova crise dos mísseis cubana tem pouco potencial de inovação. Seria apenas uma cópia ruim.” Ele avalia que segue baixa a chance de a Rússia realmente aumentar sua presença militar na América Latina, por exemplo com mísseis ou bombardeiros de longo alcance.
Cuba e Venezuela são hoje países muito fracos e sem peso na região para isso, afirma: “No campo do discurso, porém, a construção de um cenário de ameaça por parte da Rússia certamente funciona.”
Provocações fazem parte do jogo diplomático
Também não é a primeira vez que a Rússia sugere aumentar seu envolvimento militar na América Latina. Em 2008, a Rússia ameaçou estacionar bombardeiros nucleares Tu-160 de longo alcance em Cuba e na Venezuela, em reação a planos do Ocidente de instalar um sistema de defesa antimíssil na Polônia e na República Tcheca.
Em 2014, a mídia russa informou sobre a possível reativação da antiga base soviética Lourdes, perto de Havana. A estação de escuta segue desativada até hoje, mas aparentemente serve à Rússia vez ou outra como uma ameaça para advertir os EUA para que não ultrapasse certos limites na Europa.
Venezuela e Colômbia exploram o conflito
Além das ameaças simbólicas de Moscou, os países latino-americanos e os atores regionais têm seus próprios interesses e estão tentando se beneficiar da crise da Ucrânia. Por exemplo, o governo de Nicolás Maduro, na Venezuela.
“Maduro tem interesse em colocar seus problemas em cima desse confronto, a fim de parecer interessante para a Rússia e possivelmente ganhar vantagens”, explica Maihold. Uma dessas vantagens seria, por exemplo, encontrar outro pretexto para finalmente enterrar as rodadas de diálogo com a oposição venezuelana.
![Nicolás Maduro fala em evento da ONU](https://static.dw.com/image/59530598_906.jpg)
A vizinha Colômbia, o único “parceiro global” da Otan na América Latina, aparentemente também descobriu a possibilidade de fazer da crise da Ucrânia um capital político. Em sua atual viagem à Europa, o presidente Iván Duque não perdeu a oportunidade de apontar o perigo que a Rússia representaria na região.
Na segunda semana de fevereiro, o ministro do Exterior colombiano, Diego Molina, mencionou a presença de militares russos na Venezuela, na região fronteiriça com a Colômbia, e falou de “interferência estrangeira”. Perigo real ou manobra de político interna?
A Colômbia realizará eleições parlamentares em março e presidenciais no fim de maio, nas quais um candidato de esquerda é considerado o mais provável sucessor do direitista Duque.
“Iván Duque mencionou a presença russa como uma ameaça à Colômbia por razões políticas domésticas”, afirma Maihold. “Foi uma manobra para associar um determinado candidato da campanha eleitoral a uma ameaça comunista fictícia.”
Abstinência autoimposta do México
Segundo Maihold, o fato de atores regionais da “segunda e terceira fila” estarem tentando aparecer no cenário mundial também se deve ao fato de a América Latina ter perdido muito espaço na política internacional. Os pesos-pesados regionais México e Brasil praticamente não desempenham nenhum papel no palco mundial, no momento.
No México, por exemplo, o presidente Andrés Manuel López Obrador, que comanda a segunda economia mais importante da América Latina, fez da não-interferência um princípio. O perfil da política externa mexicana perdeu tanta força, que dificilmente se pode esperar alguma influência no cenário internacional.
![López Obrado](https://static.dw.com/image/60521914_906.jpg)
Contudo, no início de 2021, López Obrador convidou Putin para ir ao México. Na ocasião, ambos discutiram ao telefone a entrega de 24 milhões de doses da vacina russa Sputnik V. A diplomacia da vacina na América Latina poderia valer muito mais a pena e ser mais sustentável para a Rússia do que o custoso e politicamente arriscado envio de aeronaves e mísseis.
Argentina busca saída para sua crise
![Alberto Fernandez cumprimenta Vladimir Putin em Moscou](https://static.dw.com/image/60646638_906.jpg)
Alberto Fernández também tinha a vacina russa em mente. Era possível quase adivinhar isso ao vê-lo elogiando efusivamente o país, durante sua visita a Moscou: “Estamos muito gratos por o senhor ter estado presente quando ninguém mais quis nos dar vacinas”, disse o presidente da Argentina a Putin.
“A maneira como Fernández declarou seu país uma porta de entrada para a Rússia na América Latina me surpreendeu”, disse Maihold. Mas o mandatário também está buscando seus próprios interesses, ao se aproximar da Rússia: seu país está muito endividado com o Fundo Monetário Internacional e busca maneiras de se livrar dessa dependência.
Apesar da atual atenção às atividades da Rússia na América Latina, em conexão com a crise na Ucrânia, a presença de Moscou na região não é, de qualquer forma, concorrência para a China, assegura Günther Maihold. De maneira silenciosa, há longo tempo o gigante asiático já ganhou influência muito maior.
Crédito: Gabriel González Zorrilla/Deutsche Welle – @ disponível na internet 18/02/2022