Toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e à sua família saúde, bem-estar e cuidados médicos. A determinação presente na Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, ainda está longe de ser uma realidade em todo o mundo, e a pandemia escancarou as desigualdades sociais determinantes no acesso à saúde.
Diante desse cenário, o 7º Fórum Latino-Americano de Qualidade e Segurança na Saúde, o primeiro realizado presencialmente pela Sociedade Beneficente Israelita Brasileira Albert Einstein e o Institute for Healthcare Improvement (IHI) após dois anos de pandemia, trouxe a equidade e as ações do setor em ESG (sigla em inglês para ambiental, social e governança) como temas centrais dos debates.
Sob o lema “Muito além do ESG”, as discussões envolveram lideranças e especialistas do setor na América Latina, além de médicos, pesquisadores e estudantes de 18 países. “Foi um evento de um alcance importante, de um grande impacto acadêmico, de conteúdo e emocional. Reunimos 2.630 participantes, sendo que mais de 1.900 deles estiveram presencialmente nos quatro dias de fórum”, afirmou o vice-presidente do IHI, Pedro Delgado, destacando o clima de troca de conhecimento que permeou o evento realizado no Centro de Ensino e Pesquisa do Einstein, entre 12 e 15 de setembro.
Com o objetivo de sensibilizar os representantes do setor de saúde e de organizações a assumirem compromissos mais ambiciosos, os debates abordaram temas como os impactos das mudanças climáticas e do desequilíbrio ambiental para a saúde das pessoas – e para o sistema. “Quando as pessoas ficam doentes, é o setor da saúde que absorve essa pancada, é nessa ponta que a corda se rompe normalmente. Por isso, acreditamos ter a responsabilidade de dizer às outras indústrias que olhem para as questões ESG, para enxergarem além dos seus muros”, disse o médico Miguel Cendoroglo Neto, diretor-superintendente médico e de serviços hospitalares do Einstein.
O pedido por maior compromisso também veio de jovens estudantes de Medicina do Einstein, que fizeram uma carta para CEOs presentes no fórum instando esforços coletivos para mudanças estruturais.
Ações por maior equidade foram uma demanda apresentada por especialistas de diversos países da região. “Temos que dar a cada pessoa o que ela necessita para resolver seu quadro clínico, e isso não está sendo assim”, disse o argentino Marcelo Pellizzari, diretor do Departamento de Qualidade e Segurança do Paciente do Hospital Universitário Austral, de Buenos Aires. “Na Argentina, há cidades onde sobram equipamentos de ressonância e tomógrafos, e lugares onde não há uma equipe de radiologia. O desafio é muito profundo e muito básico ao mesmo tempo. E é uma enorme responsabilidade de todos.”
O médico Donald Berwick, fundador, presidente emérito e membro sênior do IHI, destacou a importância de um trabalho conjunto na busca pela equidade. “Existem fatores que determinam se teremos ou não uma boa saúde: moradia, acesso ao transporte, segurança alimentar”, disse, ressaltando que questões como raça e pobreza excluem as pessoas do acesso a saúde. “Cada país tem que se constranger pelos grupos de pessoas que deixa de fora.”
O fórum trouxe ainda o debate sobre como manter os sistemas de saúde resilientes em tempos de crise – seja ela ambiental, econômica ou por motivo de guerra. “Todas as conversas sobre segurança (em saúde) são inúteis enquanto o mundo enfrenta esse tipo de ameaça”, disse a médica Olesya Vynny K, da Salutas Clinic, em Lviv, oeste da Ucrânia, em referência aos ataques russos que assolam seu país há mais de 200 dias. “Fazer o nosso trabalho como médicos, o melhor e o mais rápido que conseguimos, se tornou o nosso único objetivo.”
Mudanças climáticas geram riscos à saúde – Quanto mais vulnerável a condição socioeconômica da comunidade, mais ela sofre
Ondas de calor intenso, tempestades que causam enchentes e deslizamentos e períodos de seca prolongados. Os impactos das mudanças climáticas sobre a saúde das pessoas são visíveis em todo o mundo. Entre 2030 e 2050, a Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que, sem grandes mudanças nos comportamentos de governos, empresas e populações, 250 mil mortes serão causadas anualmente por conta do desequilíbrio no clima.
“A maior ameaça à humanidade neste momento é a mudança climática. Ela vai trazer fome, mais doenças. Teremos que nos adaptar a novas pandemias, e vamos ter provavelmente mais instabilidade social”, observou Bernd Oberpaur, diretor médico da Clínica Alemana, de Santiago, no Chile, durante debate no 7º Fórum Latino-Americano de Qualidade e Segurança na Saúde, realizado pela ociedade Beneficente Israelita Brasileira Albert Einstein e pelo Institute for Healthcare Improvement (IHI), com representantes de hospitais da região.
Os danos às populações podem ser diretos – com surgimento ou agravamento de doenças, por exemplo – ou indiretos, como o impacto das alterações climáticas sobre a produção de alimentos. O desequilíbrio ambiental ainda afeta mais da metade da população mundial que vive em cidades onde a poluição prejudica a qualidade do ar, ocasionando uma piora em doenças respiratórias.
Grupos que têm mais dificuldade de se adaptar às alterações de temperatura, como crianças e idosos, estão entre os mais vulneráveis. “As ondas de calor podem ocasionar desidratação, sobrecarga do sistema cardiovascular, com risco de infarto ou um acidente vascular cerebral (AVC) e arritmia”, explica o médico Guilherme Schettino, diretor do Instituto Israelita de Responsabilidade Social do Einstein. “Além disso, há ainda a associação com os casos de doenças mentais, com o crescimento de casos de ansiedade, depressão, e até suicídios.”
A condição socioeconômica é outro fator que deixa populações mais suscetíveis aos danos à saúde causados pelas mudanças climáticas. Em sua palestra no fórum, o costa-riquenho Carlos Faerron Guzmán, diretor associado da Planetary Health Alliance, de Harvard, falou sobre fatores determinantes para a saúde das populações, como educação, condições de trabalho e status socioeconômico, mas também destacou as dificuldades enfrentadas por grupos mais vulneráveis, como LGBTQ+ e pessoas com deficiência. “A saúde é o produto final de um processo ecossocial. É um produto dinâmico, e as mudanças nos sistemas naturais da Terra estão impactando de maneira desigual as pessoas”, afirmou Guzmán. “As populações que têm menos poder tendem a ser muito mais afetadas pelas mudanças climáticas. E as pessoas mais afetadas pelas mudanças climáticas são as que têm menos poder para fazer algo a respeito.”
Desafios do setor
O peso que as alterações ambientais extremas impõem sobre as pessoas e sobre os sistemas de saúde pede urgência na adoção de medidas para combater as mudanças climáticas – uma responsabilidade de governos e organizações, inclusive do setor de saúde.
O diretor-geral da Fundação Santa Fé de Bogotá, na Colômbia, Henry Gallardo, destacou que as instituições que prestam serviço de saúde têm enormes desafios, como diminuir emissões de gases do efeito estufa adotando carros elétricos, ou reduzir a quantidade de plástico não reciclável utilizado nas operações do dia a dia.
“Sob a desculpa moral de que salvamos vidas, fazemos um dano ambiental imenso. E essa licença não podemos nos dar mais, porque vamos nos tornar ilegítimos rapidamente”, afirmou. Em todo o mundo, o setor de saúde é responsável por cerca de 4,4% das emissões de gases do efeito estufa, segundo a organização Health Care Without Harm.
O professor da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP) Mauro Saraiva, contudo, fez questão de ressaltar a responsabilidade de todos sobre a saúde do planeta, e, consequentemente, das populações. “Há um paradoxo na nossa civilização: os ganhos enormes que obtivemos nos últimos 70 anos – vistos nas taxas de mortalidade infantil e de expectativa de vida, por exemplo – estão em xeque por conta da atividade humana.”
‘Equidade deve ser prioridade estratégica na prestação do serviço de saúde’
A pandemia de covid-19 tornou ainda mais evidente a falta de acesso igualitário à assistência em saúde, fazendo com que o tema de equidade impusesse sua urgência.
No início deste ano, o Institute for Healthcare Improvement (IHI), organização cuja proposta sobre melhorias no sistema de saúde é seguida em todo o mundo, colocou a busca pela equidade como mais um objetivo – o quinto – a ser seguido.
As três primeiras metas, sugeridas em 2008, preveem melhorar a experiência do paciente, a qualidade da saúde e combater desperdícios na assistência. O quarto objetivo tem como foco o cuidado com os profissionais de saúde.
Em entrevista, Kedar Mate, presidente do IHI, e Sidney Klajner, presidente da Sociedade Beneficente Israelita Brasileira Albert Einstein, falaram sobre a importância de colocar a equidade no centro do debate de saúde, como propôs o 7º Fórum Latino-Americano de Qualidade e Segurança na Saúde, realizado pela ociedade Beneficente Israelita Brasileira Albert Einstein e pelo Institute for Healthcare Improvement (IHI). “Você pode ter um ótimo acesso ao sistema de saúde, mas que te oferece uma assistência muito ruim. Temos que resolver esses problemas juntos”, pontua Mate.
Qual é o impacto da falta de acesso igualitário à saúde no mundo?
Mate: A falta de equidade não é uma novidade, acontece no mundo inteiro, é uma questão há muito tempo. O que a pandemia fez foi nos tornar muito mais conscientes disso. Ficou clara também a qualidade desse atendimento, porque você pode até ter um ótimo acesso ao sistema de saúde, mas que te oferece uma assistência muito ruim. Temos que resolver esses problemas juntos, certificando-nos que as pessoas consigam ser cuidadas, mas que o atendimento que recebam seja de qualidade, próximo de onde moram. Que seja uma assistência que coloque o paciente no centro.
Essa iniquidade no acesso à assistência ficou ainda mais nítida durante a pandemia?
Klajner: A pandemia jogou uma lente de aumento naquilo que já sabíamos que era ruim em todo o mundo. No Brasil, ficou ainda mais clara a grande diferença no atendimento nas diversas regiões do País. Isso se comprovou inclusive na mortalidade por covid: a da Região Sudeste foi menor que a da Região Norte, por exemplo, em grande parte por piores condições do sistema de saúde e falta de equipamentos adequados.
Mas a pandemia evidenciou também que a equidade tem que ser buscada antes mesmo do atendimento, já que a qualidade de saúde de cada população influencia nos índices de mortalidade, como vimos no Hospital Municipal M’Boi Mirim – Dr. Moysés Deutsch (gerido pelo Einstein), onde o protocolo, o equipamento e os profissionais eram os mesmos da rede privada, mas a gravidade com a qual o paciente chegava ao hospital era bem maior.
Falar em equidade é entender que todas as pessoas devem ter a oportunidade justa de atingir o seu potencial de saúde.
Nosso papel é tentar influenciar o poder público para que não haja uma diferença tão grande nas condições de vida que podem levar à perda da saúde
Qual é o primeiro passo a se dar para um acesso mais equânime?
Mate: Após estudar esse problema por muitos anos, descobrimos que fomos capazes de criar assistência à saúde de melhor qualidade, mas para populações que já eram privilegiadas, porque não elegemos a equidade como algo importante. Então o primeiro passo é transformar equidade em uma prioridade estratégica na prestação do serviço de saúde.
Os hospitais e os sistemas de saúde com os quais temos parceria, como o Einstein, escolheram colocar esse tema dentro da estratégia da organização. E quando você dá esse passo, muita coisa muda. Porque agora não basta oferecer bom atendimento às pessoas que entram pela sua porta, temos que encontrar essas pessoas que precisam dos nossos serviços e que não têm o histórico de entrar em nossas instituições, pessoas que nem sequer confiam no sistema de saúde.
A gente consegue pensar em equidade no Brasil sem pensar no poder público?
Klajner: O nosso papel como organização de saúde é tentar influenciar o poder público para que não haja uma diferença tão grande nas condições de vida que podem levar à perda da saúde. Uma questão importante quando você fala de equidade é atuar na parte social, para favorecer vidas saudáveis em todos os lugares. Mas as organizações também podem ir para dentro de uma comunidade para promover, por exemplo, a profissionalização de adolescentes. Isso o Einstein já fazia, indo além dos muros de uma entidade de saúde e colaborando para que essa população tenha uma vida mais digna e não adoeça. A inclusão da equidade como um ponto de vista estratégico é papel das organizações de todos os setores. Isso entra dentro do ESG.
Por que acrescentar uma quarta e uma quinta metas para os sistemas de saúde se fez necessário?
Mate: Fez sentido começar a trabalhar em dois outros objetivos: garantir que os profissionais da saúde estejam saudáveis, seguros e que tenham satisfação e propósito em suas vidas, e garantir melhor saúde para pessoas de todas as raças e orientações sexuais, para quem mora na cidade ou na área rural. Em todos os países em que trabalhamos, as causas da iniquidade são diferentes, mas, em todos os casos em que começamos a trabalhar nisso, conseguimos resultados.
Crédito: Sociedade Beneficente Israelita Brasileira Albert Einstein, Estadão Blue Studio – @ disponível na internet 03/10/2022