Ricardo Galvão, presidente do CNPq: “Se quiser tecnologia de ponta, o Brasil precisa criar de forma soberana”

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Ricardo Galvão presidente do CNPq @Yasmin Velloso
Após quatro anos de desmanche das estruturas federais de fomento à pesquisa, inovação e ciência, o país precisará de força conjunta de Estado, academia e iniciativa privada para avançar no desenvolvimento econômico de longo prazo.

Recém-nomeado presidente do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Ricardo Galvão tem carreira heterodoxa. É especialista em física de plasmas e fusão nuclear, com doutorado pelo Instituto de Tecnologia de Massachusetts. Foi diretor do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (2004-2011), presidente da Sociedade Brasileira de Física (2013-2016) e diretor do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, o Inpe (2016-2019). No mesmo ano em que foi exonerado de seu último cargo pelo então presidente Jair Bolsonaro, que discordava dos dados sobre o desmatamento na Amazônia, Galvão foi escolhido um dos dez cientistas de maior destaque internacional pela revista Nature (2019). Em 2021, filiou-se ao partido Rede de Sustentabilidade para disputar a eleição como deputado federal. Sem votos suficientes para o cargo, foi convidado para atuar no Governo de Transição e, em janeiro, para comandar o CNPq. “A ciência voltou”, disse em sua posse. Nesta entrevista, ele disse como pretende transformar a esperança de sua fala em um fato científico.

DINHEIRO – Qual foi seu primeiro diagnóstico ao ingressar no Governo de Transição como integrante do grupo técnico de Ciência e Tecnologia?
Ricardo Galvão — Foi triste. Nos foi pedido um levantamento do governo passado e o prognóstico das ações emergenciais para os 100 primeiros dias do governo Lula. Em ciência e tecnologia eu já sabia que a situação não estaria boa, mas foi muito pior do que eu pensava. Um verdadeiro desmanche.

É possível dimensionar o estrago?
Além do orçamento, que foi drasticamente reduzido, houve o desmonte das estruturas. O próprio Ministério da Ciência e Tecnologia sofreu desestruturação quase total. Mas o pior foi a introdução da mentalidade e da hierarquia militar que é ortogonal à científica. Isso causou diversos danos dentro do ministério que vão desde a aprovação de projetos à alocação de recursos equivocados.

O Brasil conseguirá recuperar o desmanche tanto da ciência quanto da área ambiental, na qual o senhor atuou como presidente do Inpe?
Tenho esperanças que sim. Na semana passada tivemos uma reunião interministerial para discutir o monitoramento das florestas do Brasil e adotar medidas para coibir o desmatamento, primeiramente na Amazônia, mas que abraçará todos os biomas. Vejo no governo Lula a compreensão de que o nosso desenvolvimento econômico vai depender de políticas ambientais claras e sustentáveis. E vai ser preciso ter muita ciência para trabalhar nisso.

“Vejo no governo Lula a compreensão de que o nosso desenvolvimento econômico vai depender de políticas ambientais claras e sustentáveis” (Crédito:Mateus Bonomi )

Como o CNPq contribuirá para esse desenvolvimento sustentável?
Estamos estudando alguns caminhos para apresentar ao conselho diretor que será nomeado muito em breve. Mas nossa intenção é fazer chamadas mirando claramente a questão ambiental e o desenvolvimento sustentável em parceria com a indústria. Na semana passada enviamos o diretor de Inovação Tecnológica do CNPq para uma reunião na Embraer sobre uma proposta de geração de energia usando o fluxo dos oceanos.

Essa sinergia entre economia real, entidades de pesquisa e academia ainda não é tímida demais para atender as necessidades do país?
Quando comecei a trabalhar com pesquisa no Brasil, em meados da década de 1970, não se via com bons olhos os que se dividiam com as áreas mais aplicadas. Esse sentimento acabou. O meio universitário está valorizando, mais do que nunca, os acadêmicos que trabalham na inovação. Mas exite o lado do empresariado. É preciso ter a disposição de inserir pesquisadores nos quadros. Se não avançarmos nesse intercâmbio, não vamos alcançar o resto do mundo no desenvolvimento do que eu chamo de tecnologia acionada pela ciência, produtos que só são criados se houver o desenvolvimento tecnológico. No CNPq temos um programa de Doutores nas Empresas no qual a entidade financia bolsas para colocar doutorandos trabalhando no laboratório de uma empresa. Isso é pouquíssimo utilizado pelos empresários.

Por qual motivo?
O empresário ainda quer resultados imediatos. Uma miopia. Preferem a cópia do que já existe em algum lugar. Eles falam em comprar tecnologia de ponta. Isso é uma enganação. Uma falácia. Ninguém vende tecnologia de ponta. Se quiser realmente ter tecnologia de ponta, o Brasil precisará criar de forma soberana. Mas, no mundo corporativo, investimentos em pesquisas mais profundas ainda são raras. Se o País não caminhar nessa direção, acho muito difícil alcançarmos algum protagonismo no cenário internacional.

Isso vale para todos os setores?
Estamos indo muito bem em tecnologia de informação. Mas em áreas como saúde, geração de energia eólica, estamos muito atrasados. Aí vem o ponto de vista estratégico, no qual o governo precisa atuar.

É o plano que falta para o País sair da promessa do líder da bioeconomia para ser protagonista de fato?
Precisamos de uma ação articuladora do governo. Temos grupos com conhecimento disponível sobre a agenda, mas eles não conversam entre si e não podem contar com o Estado nem para se aproximar do setor privado. Isso quando o governo não atrapalha, como foi o caso do Centro de Pesquisas de Energia Elétrica (Cepel). Com 48 anos de pesquisas, inclusive em renováveis, ele corre o risco de fechar porque a relação com sua principal mantenedora, a Eletrobrás, mudou: na lei de privatização da estatal ficou estabelecido que o orçamento destinado ao centro será cortado em um sexto a cada ano pelos próximos seis anos. Depois, nenhum recurso a mais.

No Brasil foi criada uma dicotomia entre lucro e meio ambiente. Dá para mudar?
Vivemos quase um século e meio de desenvolvimento econômico mundial baseado na disponibilidade de combustíveis fósseis a preços baixos. Isso promoveu um aumento industrial muito rápido. Essa realidade não existe mais. Além disso, não tínhamos a percepção do efeito estufa. Trazendo para o Brasil, no caso da Amazônia, o desenvolvimento se deu em uma lógica militar. Há uma frase do Delfim Netto emblemática: “A maneira de conquistar a Amazônia é primeiro se fazer de lá um faroeste, depois mandamos o xerife”. Só que o xerife nunca chegou. Mas hoje temos tecnologia, ciência e conhecimento da biodiversidade. Podemos fazer vários arranjos público-privados, com produção sustentável. A dicotomia não existe mais. Ao contrário.

“Vivemos quase um século e meio de desenvolvimento baseado na disponibilidade de combustíveis fósseis a preços baixos. Isso não existe mais” (Crédito:Divulgação)

E aí entramos em guerras de narrativas, como a do agronegócio, que hora é vilão, hora a solução. Como trazer a ciência para esse debate?
O mal do Brasil não é o agronegócio. É o ogronegócio. Na atividade agropecuária séria temos diversas tecnologias de baixo carbono e que somos rentáveis. Temos a Embrapa, uma referência em ciência. Mas o produtor precisa querer mudar.

De outro lado, cresce o número de indústrias deixando o Brasil. O senhor acredita que é possível reindustrializar o país?
Não sei se é possível, mas é absolutamente necessário. Estive na posse do vice-presidente Geraldo Alckmin como ministro da Indústria e Comércio. E ele bateu fortemente na questão que se nós não tivermos uma reindustrialização do País vamos estar numa situação terrível. Temos que ter um plano claro sobre em quais setores vamos focar a nossa indústria.

Nos últimos anos temos visto um crescimento das fake news. O senhor mesmo sofreu com isso como presidente do Inpe. A desinformação pode estar corroendo a ciência e a coesão social no Brasil?
No caso do Brasil, a alfabetização científica da população é muito baixa. São raras as escolas, até entre as privadas, que têm laboratório. Há ensino de tela de computador, mas sem experiência prática. E na ciência, a teoria e a prática são uma coisa só. Outro ponto são as mídias sociais. Elas são rasas, o que torna difícil para um cientista desmontar até ideias simples como a que diz que a Lua está parada. E agora com a aprendizagem de máquinas, todos esses chats, ficará ainda mais difícil. Infelizmente os negacionistas exploram isso de forma muito ardilosa e não existe um lado positivo.

Nossa democracia está ameaçada?
Tenho minhas preocupações. Mas acho que na medida que o governo começar a mostrar resultados, vamos entrar no caminho certo. É hora de agir.

Crédito: Lana Pinheiro / IstoÉ Dineiro, edição nº 1312 – @ disponível na internet 18/02/2023

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