No aniversário de 80 anos da CLT, informalidade chega a 40% e carteira não é mais sonho; veja histórias
Baixo dinamismo da economia dificulta geração de empregos com proteção social, e legislação não dá conta dos novos perfis de ocupações. Renda está estagnada
A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), que criou as bases para direitos e proteção social dos trabalhadores no Brasil, completa hoje 80 anos. Foi no 1º de maio de 1943 que o presidente Getulio Vargas sancionou a CLT, dando início ao que na época era uma modernização das relações trabalhistas. Mas, hoje, para muitos brasileiros, este marco é apenas um verbete na História.
Quase 40% dos empregos e ocupações no país são informais. E ter uma carteira de trabalho assinada já está fora das expectativas e aspirações da maioria destes trabalhadores. Desde 2015 (para quando há dados completos disponíveis), a informalidade segue estacionada neste patamar. Assim como se mantém estagnada a renda dos trabalhadores.
Por isso, para muitos, ter um emprego formal não é nem um sonho nem uma opção. Caio Santos de Oliveira, de 26 anos, trabalha na praia de domingo a domingo e tem como meta tirar carteira, mas de motorista, para obter uma renda maior como mototáxi.
Felipe Vieira, de 31 anos, é motorista de aplicativo e procura emprego formal, mas sabe que, mesmo se tiver a carteira assinada, vai precisar continuar nas corridas para complementar sua renda, já que os salários no mercado estão muito baixos.
Baixo dinamismo
Aos 41 anos, Vania Silvano Batista ganha a vida vendendo quentinhas e está há cinco anos sem registro: “é como se a minha carteira de trabalho estivesse morta”, afirma. Ela se preocupa com o futuro:
— Como vou me aposentar?
Especialistas afirmam que, ainda que o Brasil tenha feito uma reforma trabalhista em 2017, a legislação atual não dá conta de novos desafios, como o da tecnologia. Por outro lado, o baixo dinamismo da economia brasileira dificulta a geração de empregos com proteção social.
Desde o quarto trimestre de 2015, o número de trabalhadores informais do país gira em torno de 35 milhões. No primeiro trimestre deste ano, este patamar alcançou 38,1 milhões. Os dados são da Pnad Contínua, a pesquisa de emprego do IBGE, e fazem parte de um levantamento do economista Fernando de Holanda Barbosa, pesquisador do FGV Ibre, a pedido do GLOBO.
Os números incluem os empregados sem carteira assinada no setor privado, os trabalhadores domésticos informais, os conta própria sem CNPJ e os empregadores sem CNPJ.
Segundo Rodolpho Tobler, também do FGV Ibre, o mercado de trabalho brasileiro tem um padrão de informalidade alto na comparação com outros países, e esse processo está ligado à baixa produtividade da economia.
Ele lembra que esse padrão já era elevado em 2012, quando começa a série histórica da Pnad e o país tinha cerca de 20 milhões de informais, considerando os critérios usados pelo IBGE na época. Mas a informalidade foi acentuada nos anos seguintes pela crise econômica e a pandemia. A reforma trabalhista, em 2017, na visão dele, também não ajudou:
— Temos baixa qualificação da mão de obra, alto custo da formalização, mas esse padrão de informais vai muito em linha com a dificuldade da economia brasileira de manter um período constante de crescimento econômico e de desenvolvimento.
Veja abaixo depoimentos de quem está na informalidade:
‘Não posso me dar ao luxo de esperar’
A estabilidade profissional de Anderson Xavier, de 46 anos, começou a ruir ainda em 2015. Em meio à crise econômica que levou o país à recessão, o soldador perdeu o emprego numa grande montadora na Baixada Fluminense. Com três filhos ainda pequenos, ele alternou entre funções temporárias durante cinco anos, até conseguir um posto de porteiro.
A chegada da pandemia, porém, atropelou novamente a segurança financeira da família. Ele e a mulher decidiram se mudar de Duque de Caxias para a favela do Cantagalo, na Zona Sul do Rio, em busca de oportunidades. Os “bicos” continuaram, numa tentativa de complementar os R$ 600 do Bolsa Família. A situação melhorou um pouco quando os dois viraram entregadores de aplicativo:
— Não perco a esperança de achar algo formal, com todos os direitos, é o que mais quero. Mas não posso me dar ao luxo de esperar. Eu me vejo numa dificuldade muito grande. Não estou mais na idade que é alvo das empresas, mesmo com a minha formação.
‘É como uma carteira de trabalho morta’
Vania Silvano Batista, de 41 anos, já foi registrada como auxiliar de creche, de serviços gerais e atendente de lanchonete, mas há cinco anos vive na informalidade após ser demitida numa leva de corte de custos.
Passou a trabalhar como camelô, até ser chamada por um conhecido para vender quentinhas. Ela sai de casa, Méier, na Zona Norte do Rio, todos os dias para vender as refeições às margens da Lagoa Rodrigo de Freitas, na Zona Sul.
O faturamento é por unidade vendida. Ela e sua esposa, que atua na mesma função, recebem R$ 1 mil por mês. A renda delas, que têm quatro filhos, é complementada com R$ 600 do Bolsa Família. Não é suficiente. E Vania perdeu a esperança do emprego.
—Trabalhar como informal é muito ruim. Se ficar doente, não dá para tentar um benefício no INSS. Se isso aqui acabar, não tenho nada. Já estou com 41 anos, cinco sem registro. É como se minha carteira de trabalho estivesse morta. Como vou me aposentar? Se arrumasse um emprego agora, ia embora — afirma.
‘Salários na minha área estão muito baixos’
No ano passado, a carreira de Felipe Vieira, 31, acabou mudando de rota. Com experiência em diferentes funções logísticas, ele perdeu o emprego formal numa transportadora. As corridas via aplicativo que fazia para complementar o salário viraram a fonte principal de renda.
Com o que ganha, Felipe ajuda nas contas da casa em que vive com os pais no Jardim
América, na Zona Norte do Rio, paga o financiamento do carro e a mensalidade da faculdade de Educação Física. Muitos dos estudos e trabalhos do curso são feitos no carro, entre as viagens e o estágio. A procura por uma vaga formal continua, mas ele sabe que não significará ganhar bem:
— Tentei outras empresas, fiz entrevistas, mas não consegui nada. Sigo procurando alguma coisa, mas continuaria nas corridas. É uma renda extra importante, porque os salários na minha área estão muito baixos. Eu me sinto desprotegido sem carteira, não tenho direito algum. Todo dia o medo de sofrer um acidente e ficar sem renda passa pela cabeça.
‘Toco a vida, mas penso na aposentadoria’
Leonardo Mantovani Fernandes, de 41 anos, só teve a carteira assinada uma vez na vida, aos 18, como vendedor, mas deixou o emprego quando o patrão começou a atrasar o salário. Sem achar outro, voltou à ocupação herdada do pai e desde então trabalha em feiras livres do Rio.
Uma irmã atua com ele no ramo, assim como os pais, que continuam trabalhando, mesmo estando aposentado. O filho mais velho, de 21 anos, trocou os estudos pela feira. Carteira de trabalho não está no horizonte da família.
Morador da Vila Kennedy, na Zona Oeste do Rio, Leonardo diz ter uma vida confortável e tenta se organizar para ter uma renda na velhice:
— Toco minha vida bem, mas já pensei em como seria se ainda estivesse com a carteira assinada, porque trabalhar na rua tem seus problemas. A CLT te dá uma segurança. Penso na aposentadoria. Já seria uma renda garantida lá na frente. Não pago o INSS como autônomo, só como MEI, que tem contribuição pequena. Preferi construir umas casinhas para alugar.
‘Faculdade é sonho. Penso em ser mototáxi’
A vida profissional de Caio Santos de Oliveira, de 26 anos, começou forçadamente quando ele tinha apenas 11. Com a morte da mãe e o abandono do padrasto, foi com suas três irmãs morar com uma tia, mãe de outras seis crianças. Na casa cheia, viu-se obrigado a “começar a se virar”. Passou a ajudar vizinhos do Morro da Babilônia, no Leme, que trabalhavam como barraqueiros na praia.
O primeiro registro na carteira veio depois dos 20, como entregador numa pet shop. Quatro meses depois, quebrou o tornozelo numa queda. Após uma cirurgia e um mês de internação, foi demitido. Voltou à praia. Mesmo trabalhando, terminou o ensino médio, mas
o sonho de se tornar veterinário ficou pelo caminho:
— Tenho uns cinco cursos com diploma, incluindo informática e administração, mas trabalho com carteira está difícil. Em qualquer portinha aberta, deixo currículo. A faculdade virou um sonho distante. Hoje penso em tirar a habilitação e comprar uma moto para trabalhar como mototáxi.
‘Não contribuo ao INSS, mas queria voltar’
Apesar de só ter tido a carteira assinada uma vez, durante três anos, a guardadora de veículos Loayzi Souza de Queiroz, de 43, sentiu o baque da falta de proteção da CLT no nascimento das filhas gêmeas.
Mãe também de um rapaz de 20 e um menino de 12, a moradora de Oswaldo Cruz, na Zona Norte do Rio, conseguiu tirar a licença-maternidade remunerada do mais novo, quando era registrada em uma empresa que atuava nos estacionamentos públicos.
A firma deixou o ramo e sua função voltou à informalidade. Após o nascimento das duas caçulas, hoje com 9 anos, Loayzi não ficou mais de três meses em casa. A renda fez falta e a obrigou a voltar às ruas.
O marido é formado em contabilidade, mas também é informal, nunca conseguiu um emprego na área e atua como motorista de van há mais de duas décadas. Os dois conseguem manter a família, mas há uma falta, diz a guardadora:
– Sinto falta da carteira assinada. Não contribuo ao INSS, penso em voltar. Imagina se eu tivesse contribuído nesses 25 anos de trabalho?
Crédito: Letícia Lopes e Carolina Nalin / O Globo – @ disponível na internet 01/05/2023