Vistos como alternativa à baixa oferta de planos de saúde individuais e familiares, os planos coletivos para micro e pequenas empresas foram os que registraram o maior índice de reajuste entre os diferentes tipos de convênio médico nos últimos cinco anos, segundo uma pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec). O aumento para essa modalidade foi maior do que o dobro do índice aplicado aos planos de pessoas físicas.
A pesquisa, feita pelo Idec com base em dados da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), mostra que, de 2018 a 2022, os planos coletivos empresariais com até 29 vidas (ou seja, geralmente contratados por micro e pequenas empresas ou até por microempreendedores individuais – MEIs) tiveram alta acumulada de 82,4% no valor da mensalidade.
Entre os planos individuais e familiares, que têm seus aumentos definidos pela ANS, esse índice ficou em 35,4%. Os planos coletivos empresariais com até 29 vidas reúnem cerca de 6,6 milhões de brasileiros, segundo dados da ANS referentes a 2022.
A oferta de planos individuais e familiares tem diminuído ano a ano justamente pela maior regulação à que eles estão sujeitos. Além de ter seu índice máximo de reajuste definido pela ANS, esse tipo de produto não pode ser cancelado unilateralmente pela operadora.
Com isso, muitas operadoras deixaram de atuar no mercado para pessoas físicas e passaram a oferecer apenas planos coletivos, que já representam 82,4% do mercado em número de beneficiários, segundo dados da ANS referentes ao mês de junho. Há dez anos, esse índice era de 78,5%.
Para quem é MEI ou tem uma micro ou pequena empresa, contratar um plano pelo CNPJ virou uma opção mais viável e, à primeira vista, mais barata. Mas com reajustes anuais maiores, essa vantagem financeira desaparece com o tempo.
A ANS argumenta que os índices de reajuste dos planos coletivos empresariais não são regulados por tratar-se de uma negociação entre duas pessoas jurídicas. Na prática, porém, as empresas menores acabam mais vulneráveis.
A pesquisa do Idec mostra que o índice de reajuste para planos contratados por empresas com 30 vidas ou mais, o que inclui as grandes corporações, foi bem inferior no mesmo período: 58,9%. Nos planos coletivos por adesão, ou seja, aqueles geralmente contratados por associações e sindicatos, os reajustes ficaram entre 67,7% (para contratos com 30 vidas ou mais) e 74,3% (para aqueles com até 29 vidas).
A distorção de aumentos entre diferentes planos coletivos empresariais já havia sido notada pela própria ANS e fez a agência editar, em 2012, uma resolução normativa que obrigava as operadoras a aplicarem um índice único de reajuste para todos os contratos de até 29 vidas – nos demais casos, o percentual é definido por contrato.
A regra, chamada de pool ou agrupamento de risco, serve para eliminar distorções caso um contrato pequeno tenha uma despesa muito alta decorrente da ocorrência de uma doença grave, por exemplo.
Com o agrupamento de todos os contratos de até 29 vidas para o cálculo de um único reajuste, esse risco se diluiria e as mensalidades ficariam mais acessíveis para os beneficiários desse grupo. Para o Idec, no entanto, essa regra não foi suficiente para tornar os reajustes mais palatáveis para os usuários.
“Historicamente, a ANS argumenta que, nos planos coletivos, os contratantes têm poder de barganha e que, por isso, ela não precisaria intervir, mas o que a pesquisa mostra é que essa premissa está equivocada, que ela não é confirmada quando olhamos os dados reais dos reajustes. As empresas com poucas vidas não têm esse espaço de negociação”, diz Ana Carolina Navarrete, coordenadora do programa de saúde do Idec.
“Não temos poder de barganha nenhum, eles nem sequer nos avisam com antecedência do reajuste, só mandam o boleto com o novo valor”, diz o microempresário Marcelo Pignatari Pinheiro, de 59 anos, que neste ano recebeu um reajuste de 37,5% para o plano que contratou por meio de sua empresa para ele, um funcionário e três familiares. “O que explica um aumento de quase 40% em um cenário de inflação de 3%? Não tem cabimento”, diz ele, que entrou com uma ação na Justiça questionando o reajuste e aguarda decisão.
Segundo Marcos Patullo, sócio do Vilhena Silva Advogados, escritório especializado em direito à saúde, embora não haja um teto do índice de reajuste para planos coletivos definido pela ANS, a Justiça costuma declarar o aumento abusivo e improcedente para planos coletivos quando a operadora não consegue justificar nos autos o que explica aquele índice – o que, segundo o advogado, acontece na maioria das vezes.
Somente neste ano, o escritório já ingressou com 53 ações questionando reajustes de planos coletivos de micro e pequenas empresas, um aumento de 37% em relação ao número de processos movidos em 2018.
“Na maioria dos casos, as operadoras tentam justificar com documentos que os peritos não aceitam porque são documentos unilaterais, planilhas sem notas fiscais, laudos de supostas auditorias que não são auditorias. Há uma fragilidade nessas bases de dados e, quando esse reajuste não é justificado, o juiz o declara como abusivo”, diz o advogado, que afirma que em cerca de 80% dos casos atendidos pelo escritório há o entendimento de que o reajuste foi indevido porque a operadora não conseguiu justificar o cálculo.
Alta na mensalidade é cinco vezes maior que aumento do valor para reembolso
O empresário Eduardo Luiz Ribeiro, de 63 anos, é outro beneficiário que prepara documentos para ingressar com uma ação judicial contra a operadora contestando o aumento de quase 20% que recebeu neste ano. Ele tem uma pequena empresa e, em 2015, contratou um plano por meio do seu CNPJ que inclui como dependentes sua esposa e filho.
“Quando eu contratei, cheguei a ver o preço do plano familiar, mas era muito mais caro. Então, quando você tem uma empresa, você é levado a optar pelo coletivo, mas, no decorrer do tempo, aquele valor que era menor vai aumentando e supera o dos planos individuais e familiares”, diz.
Ele defende uma regulação maior da ANS sobre os planos coletivos de pequenas empresas. “Uma empresa com menos de 30 vidas não tem força para fazer negociação porque a operadora não está preocupada em perder um contrato que tem só 3 ou 4 pessoas. A gente tem que engolir ou então sair do plano”, diz.
Ribeiro reclama ainda que o valor do reajuste é muito superior ao aumento do valor coberto pelo plano para reembolsos. “Eles falam que o aumento foi em função da alta nos custos médicos e hospitalares, só que daí eu recebo um aumento de 19,4% e o meu valor de reembolso sobe só 3,8%. É uma incoerência”, afirma.
O Idec defende, junto à ANS, uma série de mudanças na regulação dos reajustes dos planos coletivos, em especial os contratados por micro e pequenas empresas. “Fizemos reuniões com a agência em maio e junho para levar uma proposta que acabe com esse duplo padrão regulatório. Se o mercado tem uma parte não regulada, é óbvio que as empresas vão querer atuar nessa parte”, diz Ana Carolina, referindo-se aos planos coletivos.
Na proposta, o instituto pede que, no caso dos planos coletivos empresariais, a regra de agrupamento de contratos de até 29 vidas para definição de um reajuste único deveria ser estendida para contratos maiores. O Idec entende que o número atual não é suficiente para diluir a sinistralidade e, por isso, mantém distorção nos preços praticados.
Uma análise técnica feita pela própria ANS em 2017 identificou essa necessidade e recomendou para a diretoria da agência que esse número fosse elevado de 29 para 100 vidas, mas isso não foi alterado até hoje.
O Idec defende ainda que os contratos de microempreendedores individuais (MEI) tenham seus reajustes regulados pela ANS, como acontece com os planos individuais e familiares. A entidade pede também que haja uma obrigatoriedade de padronizar as cláusulas que definem como é calculado o reajuste dos planos coletivos e que seja aplicado um índice único de aumento para todos os coletivos por adesão. “Associações, sindicatos também não têm poder de barganha para negociar”, diz Ana Carolina.
Questionada sobre possíveis mudanças na regulação dos reajustes de planos coletivos, a ANS disse que “vem estudando mudanças”, conforme prevê a agenda regulatória para o período de 2023 a 2025, e disse que, entre as medidas estudadas, estão o “aumento do número de beneficiários dos contratos do pool de risco e maior transparência dos dados utilizados para o cálculo do reajuste dos planos coletivos com 30 ou mais beneficiários”.
A ANS destacou que, apesar dos estudos, “não há pretensão de regular o plano coletivo como o individual, mas de criar ferramentas de transparência e previsibilidade, o que estimularia a concorrência, a discussão de preço e a qualidade”.
Questionada ainda sobre por que não adotou a recomendação de análise técnica de 2017, que sugeria o aumento de 29 para 100 vidas para o pool de risco, a ANS afirmou que a proposta compõe o estudo sobre aprimoramento das regras de reajuste coletivo de grupo técnico sobre política de reajuste iniciado em 2015. De acordo com a agência, a primeira medida do grupo foi definir as regras para aumento de planos individuais, trabalho concluído em 2018.
A ANS afirma que, depois disso, o grupo seguiu com as discussões sobre as regras de reajuste para planos coletivos, mas que, com a pandemia de covid-19, “qualquer medida proposta seria prematura em cenário de profunda incerteza e instabilidades assistenciais e econômico-financeira do setor”. Disse que o tema está sendo priorizado no momento, mas não informou quando novas regras devem ser estabelecidas.
O Estadão também procurou a Federação Nacional de Saúde Suplementar (FenaSaúde), principal representante das operadoras, para comentar a pesquisa e as propostas do Idec. Em nota, a entidade afirmou que, de acordo com dados da ANS, “em dois dos últimos três anos, o reajuste médio de todos os tipos de contratos coletivos foi inferior ao teto autorizado pela ANS para o reajuste dos planos individuais” e que os aumentos refletem “questões como o aumento do custo de assistência, a insegurança e a instabilidade regulatória, o crescimento da judicialização e o avanço expressivo da ocorrência de fraudes contra os planos de saúde”, fatores que, segunda a entidade, “as operadoras têm se esforçado para controlar”.
A FenaSaúde disse ainda que, nos últimos dois anos, as operadoras, mesmo com “esforços para reequilibrar o cenário econômico-financeiro do setor”, registraram resultados financeiros negativos. Diante disso, a entidade afirma que “a proposta de fixar um teto de reajuste para os planos de saúde coletivos pode comprometer ainda mais a sustentabilidade do setor, inviabilizando a atuação de operadoras de saúde, consequentemente, aumentando a sobrecarga sobre o SUS”.
O que fazer em caso de reajuste abusivo do plano de saúde
Nos casos de planos individuais e familiares, o índice máximo de reajuste é definido anualmente pela ANS e deve ser seguido pelas operadoras. Caso não seja, o consumidor pode questionar o valor junto ao serviço de atendimento ao cliente do plano e, se não tiver o problema resolvido, pode abrir uma queixa nos canais de atendimento da ANS ou em um Procon de sua região. Em último caso, é possível também ingressar com uma ação judicial.
Nos casos de planos coletivos, o cliente também pode abrir uma reclamação na operadora, ANS ou órgãos de defesa do consumidor, mas a chance de resolução na esfera administrativa é menor por não haver uma regulação desse índice de aumento. Em alguns casos, a única solução é ingressar na Justiça solicitando que a operadora justifique aquele aumento. Caso ela não o faça ou apresente cálculos considerados imprecisos, o juiz pode considerar o aumento abusivo e suspender o reajuste.