O físico britânico Peter Higgs morreu na segunda-feira (8/4) aos 94 anos, informou um comunicado da Universidade de Edimburgo, no Reino Unido.
Higgs era um um gigante da ciência que teve a ideia da partícula do bóson de Higgs, a qual ficou conhecida como a “partícula de Deus”.
Ele recebeu o Prêmio Nobel de Física em 2013 por seu trabalho revolucionário que mostra como o bóson ajuda a unir o universo.
No comunicado sobre a morte de Higgs, a universidade o definiu como um “cientista verdadeiramente talentoso, cuja visão e imaginação enriqueceram o nosso conhecimento do mundo que nos rodeia”.
O professor Brian Cox prestou homenagem a Higgs no X (o antigo Twitter): “Tive a sorte de conhecê-lo várias vezes e, além de ser um físico famoso – às vezes acho que para seu constrangimento – ele sempre foi charmoso e modesto.”
“Seu nome será lembrado enquanto fizermos física na forma do bóson de Higgs.”
Alan Barr, professor de física na Universidade de Oxford, também comentou o legado do cientista.
“Da mente do professor Higgs, surgiram ideias que tiveram um impacto profundo na nossa compreensão do Universo, da matéria e da massa”, disse Barr.
“Ele propôs a existência de um campo que permeia todo o universo, da massa até as partículas, dos elétrons aos quarks superiores.”
“Ele também foi um verdadeiro cavalheiro, humilde e educado, sempre dando o devido crédito aos outros e encorajando gentilmente as futuras gerações de cientistas e acadêmicos”, acrescentou.
O que foi a descoberta de Higgs
Em 4 de julho de 2012, os pesquisadores do Grande Colisor de Hádrons anunciaram ter encontrado a última peça de um quebra-cabeças que estava incompleto havia 48 anos.
O Grande Colisor de Hádrons é a maior e mais complexa máquina já construída. A “peça” que ele descobriu é uma partícula do mundo subatômico e um dos blocos elementares que compõem tudo o que conhecemos.
Essa peça é chamada de bóson de Higgs, e a comprovação da sua existência é uma das maiores conquistas da física moderna.
Com a descoberta do bóson de Higgs, completou-se o modelo-padrão, que descreve o conjunto de partículas elementares que compõem tudo o que conhecemos e as forças que interagem entre elas.
Mas essa descoberta teve origem décadas antes, nos anos 1960.
A façanha do Grande Colisor de Hádrons foi uma aventura que começou em 1964, quando Higgs publicou uma teoria que previa a existência do bóson.
Segundo o próprio Higgs, essa foi a “única boa ideia” que ele teve em sua vida, e a princípio achou que sua teoria não era nada além de um apanhado de cálculos inúteis.
Naquele período, ele não era o único trabalhando na ideia do que hoje se chama de campo de Higgs. De modo simultâneo, outros pesquisadores apresentavam estudos na mesma direção.
Higgs, no entanto, foi o único a perceber que sua ideia matemática era verdadeira, ou seja, de que realmente está presenta na natureza e não era só um truque para resolver problemas teóricos.
“Então, se esse campo é real, deveríamos ser capazes de detectá-lo. E a forma de fazer isso deveria ser [encontrando] o que chamamos hoje de bóson de Higgs”, explica Frank Close, professor emérito de física teórica na Universidade de Oxford.
“Higgs foi o único que notou isso, por isso o bóson foi batizado corretamente com seu nome.”
Essa “única boa ideia” lhe rendeu o Nobel de Física em 2013 e, paradoxalmente, arruinou sua vida, segundo ele mesmo conta (entenda melhor abaixo).
Modelo-padrão
Durante muito tempo, pensava-se que os átomos eram as partículas mais elementares de tudo.
Depois, aprendemos que esses átomos na realidade são feitos de partículas ainda menores: prótons e nêutrons, que formam o núcleo do átomo, e os elétrons, que orbitam esse núcleo.
Mas hoje sabemos que até esses prótons e nêutrons podem se dividir em partículas ainda menores.
No total, foram detectadas 17 partículas fundamentais que, ao interagirem entre si por influências de forças, compõem todo o Universo que conhecemos.
Esse conjunto de 17 partículas e forças é conhecido como modelo-padrão.
Essas partículas se dividem em duas grandes famílias: os férmions e bósons.
Férmions – São os tijolos que formam o Universo — como peças de blocos de montar que, a depender de como sejam combinadas, formam átomos diferentes. Há 12 férmions, divididos em seis quarks e seis léptons. Em outras palavras: toda a matéria que conhecemos é feita de combinações de quarks e léptons. Ou, de modo mais geral, tudo o que vemos é feito de férmions.
Bósons – São as partículas que transportam as forças que fazem os férmions interagirem. Há cinco tipos de bósons, cada um deles transportando as forças fundamentais que fazem a matéria interagir:
1 – O glúon, que transporta a chamada força forte que mantém os quarks unidos
2 e 3 – O bóson W e o bóson Z, que levam a força fraca, o que faz com que um núcleo de átomo se desintegre e forme outro átomo
4 – Os fótons, que levam a força eletromagnética.
Também há a força mais famosa de todas, a gravidade. Acontece que a gravidade, em nível subatômico, é tão fraca que sua influência pode ser em grande parte ignorada — por isso, ela não é parte do modelo-padrão.
Dessa forma, temos o modelo-padrão quase completo: a família de férmions interage com a família de bósons para formar o Universo.
Mas ainda falta incluirmos o quinto bóson.
O que é o bóson de Higgs?
Já vimos 12 férmions e 4 bósons, ou seja, 16 das 17 peças do modelo-padrão.
Falta apenas a peça que completa o modelo: o bóson de Higgs.
Ele é necessário para responder uma pergunta-chave: de onde partículas como quarks e léptons obtêm sua massa?
A resposta é o chamado campo de Higgs, um entorno invisível que permeia todo o Universo e que impregna de massa as partículas que navegam nele.
Nesse campo de Higgs estão os bósons de Higgs, que preenchem com massa as partículas que formam a matéria.
“O descobrimento do bóson de Higgs nos mostrou que existe uma coisa estranha em que estamos todos imersos, e que é conhecido como campo de Higgs”, explica Close.
Em 1964, Peter Higgs foi um dos primeiros a teorizar a existência desse campo e o primeiro a prever que deveria existir uma partícula associada a esse campo.
Mas foi só em 2012, graças ao Grande Colisor de Hádrons, que foi possível observar que essa partícula, hoje chamada de bóson de Higgs, existe para além da teoria.
Por que foi uma descoberta importante?
Para Saúl Noé Ramos Sánchez, pesquisador do Instituto de Física da Universidade Nacional Autônoma do México, o marco do descobrimento do bóson de Higgs pode ser descrito em três pontos:
1. Permitiu um conhecimento mais completo das partículas elementares das quais somos formados
“Todas as partículas que formam os nossos átomos foram finalmente compreendidas, incluindo suas relações com outras partículas”, diz Ramos Sánchez.
2. Foi encontrada uma partícula diferente de todas as demais
O bosón de Higgs não se parece com elétrons nem prótons e é responsável por certas interações que levam ao conhecimento sobre a massa dessas partículas.
Ou seja, o bóson de Higgs é a peça-chave que nos diz por que as demais partículas são como são.
3. Conquistou-se a teoria mais precisa possível até o momento
Ramos Sánchez argumenta que o modelo-padrão é “a teoria mais precisa que a humanidade tem” até o momento.
Close tem opinião parecida.
“Com algumas pequenas exceções, ela explica muito bem tudo o que vemos”, diz o professor.
O futuro
Os especialistas concordam que, depois do histórico 4 de julho de 2012, não houve até o momento nenhuma outra grande descoberta ligada à física de partículas.
Alguns experimentos recentes no Grande Colisor de Hádrons e no Fermilab, outro acelerador de partículas, este localizado nos EUA, deram sinais do que poderia ser uma nova partícula ou uma nova força, até agora desconhecidas.
Caso isso se confirme, haverá questionamentos ao modelo-padrão.
No entanto, os resultados desses experimentos ainda são inconclusivos.
“Depois da descoberta do bóson de Higgs, o modelo-padrão está mais sólido do que qualquer outra coisa”, diz Ramos Sánchez.
Mas também existem várias perguntas que o modelo-padrão não é capaz de responder.
Ele não explica, por exemplo, o que é a matéria escura, um misterioso componente que constitui cerca de 27% do Universo.
Outra grande lacuna é que o modelo não consegue incorporar a força da gravidade.
Para vários desses enigmas foram criadas hipóteses, mas ainda não há uma resposta contundente.
Nada disso, porém, quer dizer que o modelo-padrão esteja equivocado, dizem os especialistas.
“Quem dera ele estivesse em crise”, diz Frank Close.
“Se estivesse em crise, isso nos daria as pistas para construir uma grande teoria que explicasse tudo isso. O ‘problema’ do modelo-padrão é que ele funciona muito bem. Sabemos que não é a teoria definitiva, mas sim uma descrição completa de tudo a que temos acesso até agora.”
‘Simples truque matemático’
Segundo Close, que entrevistou Higgs para escrever a biografia dele, o físico sustenta que o bóson “é a única boa ideia” que ele já teve.
De fato, a princípio, Higgs pensava que seu descobrimento seria “completamente inútil”, conta Close.
“Ele achava que tinha feito um simples truque matemático.”
Além disso, Higgs não foi particularmente prolífico.
Escreveu só 12 estudos em sua carreira e, deles, apenas três — relacionados ao bóson de Higgs — tiveram alguma relevância, segundo Close.
“Ele tampouco seguiu trabalhando nisso, não fez mais praticamente nada nesse sentido”, explica o professor.
Foram outras pessoas que, a partir de suas ideias, agregaram conhecimento até a construção do Grande Colisor.
“Então pode ser que o bóson tenha sido a única boa ideia de Higgs, mas eu me pergunto: quantas ideias realmente boas qualquer um de nós tem?”, conclui Close.
‘Arruinou a minha vida’
Higgs saiu de casa, tomou um ônibus e se refugiou em um bar para tomar uma cerveja.
Em uma de suas entrevistas, Close perguntou a Higgs qual havia sido o impacto de ganhar um Nobel.
A resposta deixou-o surpreso: Higgs disse que o prêmio “arruinou a minha vida”.
“Acabou com minha existência relativamente pacífica. Eu não gosto desse tipo de publicidade. Meu estilo é trabalhar isolado e, ocasionalmente, ter uma ideia brilhante”, explicou o físico.
Isso explica por que Higgs se isolou no dia do anúncio do prêmio — embora a estratégia tenha tido o efeito contrário ao desejado.
“O que é mais atraente para os jornalistas?”, questiona Close. “Um homem que ganha o Nobel e fica disponível para entrevistas, ou alguém que ganha o Nobel e desaparece?”
Até morrer, Peter Higgs era aposentado e vivia em Edimburgo, na Escócia. Ele não usava internet e morava em um prédio sem elevador.
Para Close, isso mostra o quão elusivo era Peter Higgs — tão elusivo quanto o famoso bóson que passou anos escondido e, quando finalmente visto, mudou para sempre o entendimento do Universo.
Crédito:BBC News Brasil / @ disponível na internet 10/4/2024