Jogo do tigrinho’ e outros cassinos online contratam influenciadores mirins e direcionam propaganda para crianças no Instagram
Jogos de azar na internet, entre eles o que ficou popularmente conhecido como “jogo do tigrinho”, estão pagando influenciadores mirins brasileiros para divulgar as casas de apostas para crianças e adolescentes no Instagram.
A estratégia agressiva de promoção dos jogos de azar na internet, que já é conhecida por usuários de redes sociais, agora está sendo direcionada especificamente para os perfis de crianças e adolescentes, mostra uma investigação do Instituto Alana, organização voltada à proteção dos direitos das crianças.
As crianças e adolescentes que têm feito a divulgação dos jogos de azar tem entre 6 e 16 anos e um grande alcance entre brasileiros — os canais têm entre 200 mil e mais de 9,5 milhões de seguidores, muitos deles também crianças.
Os jogos de azar são ilegais e proibidos no Brasil. Divulgá-los e promover seu uso por crianças e adolescentes fere leis de proteção à infância e regras de entidades como o Conselho Nacional de Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) e o Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar).
O envolvimento de crianças em jogos de azar e a publicidade deles para essa faixa etária são considerados ainda especialmente danosos por médicos por se tratar de uma idade em que há uma maior vulnerabilidade ao vício.
“Geram danos para a integridade física e psíquica das crianças que elas anunciam.”
Para proteger as crianças e adolescentes envolvidos, a BBC News Brasil não divulga nomes dos oito influenciadores identificados na investigação do Alana.
Mas a reportagem verificou que propagandas dos jogos ilegais eram exibidos em seus perfis no Instagram e verificou que todos estavam ativos até segunda-feira (24/6).
Os influenciadores mirins divulgam stories (posts temporários) e outras publicações com demonstração dos jogos, fazem sorteios de prêmios para quem adquirir bilhetes, alegam supostos ganhos obtidos com as apostas e incentivam de diversas formas seus seguidores a aderir aos jogos.
Familiares das crianças também participam das divulgações.
Nos comentários, é possível ver a interação com outros perfis que têm imagens e linguagem infantil.
Segundo o Alana, isso é uma indicação de que essas propagandas têm de fato atingido outras crianças e adolescentes.
Mas, segundo o instituto, o alcance preciso só seria possível de ser mensurado com a liberação de dados pelo Instagram, mas a rede social disse à BBC News Brasil que não divulga estes dados.
O Instagram não tem, entre as suas opções para reportar postagens problemáticas, uma opção que se refira à violação dos direitos das crianças por meio de propaganda ilegal, como aponta a investigação do Alana e a verificação da BBC News Brasil.
O Alana denunciou as postagens como “golpe ou fraude”, mas recebeu como resposta que os posts “não violavam as diretrizes da comunidade”.
Procurada pela reportagem, a Meta informou que retirou dos perfis os posts que continham propaganda de jogos de azar.
No entanto, os perfis de menores de 13 anos (idade mínima para ter uma conta no Instagram, segundo a própria plataforma) continuam no ar.
“Não permitimos menores 13 anos em nossas plataformas, salvo em casos de contas gerenciadas por um responsável”, disse a empresa.
A reportagem não conseguiu contato com nenhum dos 20 cassinos online envolvidos nas divulgações.
O único que tinha um cadastro de pessoa jurídica brasileiro identificável não respondeu à tentativa de contato da BBC News Brasil.
Ilegais no Brasil
Os cassinos online têm se tornado muito populares entre público brasileiro apesar de serem ilegais.
“Eles são altamente viciantes, são programados para criar dependência e quase sempre vão resultar na perda de dinheiro”, afirma Maria Mello, do Alana.
“É algo programado para que você tenha mais perdas do que ganhos no processo.”
A entidade entregou um dossiê sobre o assunto ao Ministério Público de São Paulo em 6 de junho e pediu que uma investigação seja aberta pelo órgão.
A entidade defende que a Meta, empresa que controla o Instagram, seja responsabilizada pela exibição das propagandas para menores de idade e intimada a derrubar sua veiculação.
O Ministério Público diz que recebeu a denúncia do Alana e que a Promotoria de Justiça de Infância e Juventude pediu informações ao Instagram sobre os fatos.
Em 19 de junho, um projeto de lei para legalizar os jogos de azar no Brasil foi aprovado na Comissão de Constituição e Justiça do Senado.
O autor da proposta, o senador Irajá Silvestre (PSD-TO), justificou dizendo que as apostas são uma “atividade econômica relevante”.
A proposta ainda precisa passar pelo plenário da Casa e também ser aprovada pela Câmara dos Deputados para então ir à sanção pelo presidente para entrar em vigor.
As chamadas “bets”, casas de apostas esportivas na internet, foram regulamentadas no país em dezembro do ano passado.
Mas antes mesmo da legalização, os brasileiros já haviam gastado mais de R$ 54 bilhões em 11 meses em 2023, dinheiro enviado para empresas que atuavam no exterior, segundo o Banco Central.
Jogos de azar como o “Fortune Tiger”, conhecido como o “jogo do tigrinho”, são diferentes das bets porque os resultados dependem unicamente dos algoritmos criados pelas empresas.
Já as apostas esportivas dependem de critérios previamente estabelecidos e resultados de campeonatos.
A publicidade de ambos para crianças é proibida por uma série de regulamentações nacionais do Conar e do Conanda. Os jogos de azar são ilegais no Brasil para todos os públicos.
As polícias de diversos Estados têm atuado contra os influenciadores adultos que promovem o jogo por considerar que eles cometem estelionato.
A Polícia Civil de Alagoas realizou uma operação de busca e apreensão em 18 de junho contra um destes influenciadores. Um dia antes, a Polícia Civil de São Paulo havia executado outro mandado de busca e apreensão.
Quais os riscos do ‘jogo do tigrinho’?
Um dos jogos de azar mais populares na internet, o “jogo do tigrinho” foi retirado da Play Store, loja de aplicativos para usuários do Android, a plataforma de celular mais usada no país, após reclamações.
Mas é possível instalá-lo no telefone com uma série de links disponibilizados pelos influenciadores que fazem a divulgação.
Os jogos em geral funcionam como caça-níqueis: o jogador precisa sortear combinações específicas para receber um prêmio em dinheiro.
Há inúmeras variações das mecânicas, mas, em todos, o resultado depende exclusivamente do algoritmo criado pela casa de aposta.
Assim como caça-níqueis físicos, os jogos são programados para darem alguns pequenos ganhos no curto prazo, mas, no total, geram enormes prejuízos para os usuários, diz Maria Mello, do Alana.
Médicos e pesquisadores alertam que o nível de vício gerado por jogos de azar é equivalente à dependência química causada por cigarro, álcool e drogas ilegais.
“Sabemos há muito tempo, por inúmeras pesquisas, que dependências sóciocomportamentais como jogos de azar geram uma dependência equivalente à dependência química”, explica o psiquiatra Rodrigo Machado, colaborador do Ambulatório de Transtornos do Impulso do Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo (USP(, centro que é referência sobre o assunto na América Latina.
“O transtorno do jogo funciona através dos mesmos mecanismos, ele modifica o sistema de recompensa do cérebro.”
O comportamento que causa dependência, explica Machado, estimula a liberação de dopamina — um dos hormônios responsáveis pela sensação de prazer — no corpo.
Quando há uma exposição reiterada àquele comportamento, a pessoa pode perder o controle, não conseguindo mais parar sem ajuda.
Isso não acontece com todos. Um comportamento capaz de causar dependência produz mais este efeito em pessoas que têm uma vulnerabilidade: quando, por exemplo, os outros sistemas que deveriam atuar para controlar os impulsos, como uma região do cérebro chamada córtex pré-frontal, não estão em equilíbrio.
“A vulnerabilidade pode ser genética, social, ambiental”, explica Machado.
No caso dos jogos de azar, o que estimula a liberação de dopamina nas pessoas com dependência não é a vitória, mas o risco.
A dependência causa uma mudança no cérebro, explica Machado, e a pessoa fica muito mais sensível àquele estímulo gerado pelo comportamento viciante.
Crianças e adolescentes são especialmente vulneráveis à dependência porque seu córtex pré-frontal não está totalmente desenvolvido, diz Machado.
“É por isso inclusive que adolescentes tendem a se comportar de maneira mais impulsiva, que têm menos condições de avaliar risco.”
A maioria das pessoas que se tornam dependentes, explica o médico, tiveram o primeiro contato com o jogo (ou outro comportamento viciante) na infância ou adolescência.
“Quanto mais precoce o contato, maior a chance da pessoa desenvolver dependência. Por isso é extremamente perverso o avanço dos jogos de azar sobre as crianças”, afirma.
Cassinos online podem ser ainda mais viciantes do que os caça-níveis físicos, porque usam diversos mecanismos chamados elementos de design de manipulação.
“Eles são coloridos, oferecem prêmios e medalhas virtuais, têm bonequinhos e desenhos para pressionar o usuário a continuar, contagens regressivas rápidas para que a pessoa não tenha tempo de perder a atenção, têm propagandas em que você não acha o botão para sair”, explica Machado.
“Enfim, uma série de mecanismos que promovem uma restrição da possibilidade escolha. E as crianças e adolescentes são especialmente vulneráveis a esse mecanismo.”
Outro fator dos jogos online apontado como facilitador da dependência, especialmente para as crianças, é o fato de que eles podem ser facilmente acessados de qualquer lugar — não é preciso o deslocamento para um cassino, como no caso de caça-níqueis físicos.
O efeito da propaganda
Tanto Rodrigo Machado quanto o Instituto Alana destacam que as crianças são mais vulneráveis também à propaganda — e o fato do jogo ilegal estar sendo promovido por outras crianças agrava esse fator.
“Existe um espelhamento. Para uma criança e especialmente para um adolescente, ver alguém como ele aumenta muito a chance de querer reproduzir aquele comportamento”, diz o pesquisador da USP.
“Isso é da natureza humana, é parte de uma necessidade de sentir parte de um grupo, e é especialmente forte nesses estágios da vida.”
É por isso que existem recomendações contrárias ao uso de crianças e adolescentes para veiculação de propaganda em uma série de órgãos de fiscalização.
A resolução 163 do Conanda (Conselho Nacional de Direitos da Criança e do Adolescente), por exemplo, explicita que o uso de “apresentadores infantis” em peças publicitárias é um dos elementos com potencial de seduzir crianças para o consumo de forma abusiva.
Tanto o Conanda quanto o Conar vedam o emprego de elementos lúdicos — como personagens animados, a exemplo do tigrinho — e de manipulação do universo infantil na comunicação publicitária.
No documento entregue ao Ministério Público, o Alana cita o artigo 227 da Constituição Federal, que fala sobre proteção integral e a responsabilidade compartilhada na garantia de direitos de crianças e adolescentes.
“Estado, famílias e sociedade, incluindo as empresas, devem atuar em conjunto para assegurar a proteção das crianças, adolescentes e jovens e a promoção dos seus direitos”, reforça a instituição.
Maria Mello, do Alana, aponta que houve avanços importantes ao longo dos últimos anos em relação à regulação de propaganda direcionada às crianças nos meios de comunicação tradicionais, como televisão, mídia impressa.
“Agora é preciso que isso seja transferido e fiscalizado na internet”, diz Mello.
No documento entregue ao Ministério Público, o Alana pede a investigação das casas de aposta que fazem a promoção dos jogos ilegais, mas seu pedido principal é para que o MP peça à Justiça que a Meta seja intimada a tomar atitudes para combater a divulgação dos cassinos online para crianças.
“O mais fundamental aqui é a gente perceber o tamanho da ilegalidade da conduta do Instagram, porque a plataforma não só permite, ela viabiliza essas publicações”, diz Maria Mello.
“Essas propagandas jamais conseguiriam atingir o mesmo público se não fosse a plataforma.”
Além disso, ao intimar o Instagram, a Justiça conseguiria a retirada do ar de diversas propagandas ao mesmo tempo, diz ela.
Sendo que o combate às casas de apostas em si é mais pulverizado — e muitas delas são baseadas no exterior.
A BBC News Brasil procurou a Meta, que afirmou que suas políticas “não permitem conteúdos potencialmente voltados a menores de 18 anos que tentem promover jogos online envolvendo valores monetários”.
A empresa disse que removeu “os posts dessa natureza das contas apontadas pela reportagem” e que usa “uma combinação de tecnologia e revisores humanos para identificar conteúdos e contas que violem” suas políticas.
“Estamos sempre trabalhando para aprimorar a nossa abordagem em prol de um ambiente seguro para todos”, disse a Meta.
A empresa, no entanto, não respondeu por que não tem uma categoria de denúncia para postagens que incentivem jogos de azar ilegais nem por que o Instagram não proíbe em absoluto postagens de usuários com publicidade de jogos de azar, que continuam ilegais no Brasil.
A Meta também não respondeu por que o Instagram não tem regras específicas para resguardar os direitos dos influenciadores digitais mirins.
A empresa também não divulgou o alcance que tiveram as publicidades de cassinos voltadas para crianças feitas pelos 8 perfis analisados.
Os influenciadores mirins
O instituto Alana aponta ainda a irregularidade e os potenciais danos às crianças e adolescentes que fazem a veiculação das propagandas de jogos de azar.
As crianças e adolescentes dos oito perfis analisados pelo Alana são do Ceará, Paraíba, Bahia, São Paulo e Rio de Janeiro.
O conteúdo que elas postam variam entre compartilhamento da sua rotina, postagens de humor, dancinhas e música.
E, longe de ser algo esporádico, o incentivo para a inscrição, o depósito de dinheiro e o uso dos jogos de azar é uma prática constante nos canais.
“O Instagram tem permitido a atuação dos influenciadores mirins muito provavelmente sem a observação das normas legais em relação ao que a gente chama de trabalho infantil artístico”, afirma Maria Mello.
Segundo ela, embora muitos dos influenciadores sejam acompanhados por familiares na divulgação das propagandas, isso não impede que o trabalho das crianças seja explorado de forma abusiva.
“As crianças e adolescentes muito provavelmente não têm um acompanhamento adequado desse tipo de atuação”, diz Mello.
“Para que crianças façam esse trabalho artístico, é necessário um alvará judicial e uma análise para garantir que elas não estejam sendo exploradas e tenham seus direitos garantidos.”
Crédito: Letícia Mori / BBC News Brasil – @ disponível na internet 25/6/2024