Os bastidores da greve nas universidades, que testou o governo Lula

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Vinícius Schmidt/Metrópoles @vinicius.foto

Chegou ao fim nesta semana a greve de técnicos e professores de universidades e institutos federais (IFs), após mais de três meses de paralisação, no caso dos técnicos, e de dois meses, no caso dos docentes. Realizada em um momento difícil para o governo — que se vê às voltas com problemas na articulação política no segundo ano de gestão —, a greve nas instituições de ensino superior foi um teste de fogo para o terceiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e impactou o planejamento acadêmico e profissional de milhares de estudantes do país.

 

No caso da Universidade de Brasília (UnB), por exemplo, que recém havia acertado o calendário acadêmico pós-pandemia, o primeiro semestre de 2024 só será encerrado em 21 de setembro. Haverá um período de menos de 30 dias de férias e as aulas do segundo semestre terão início em outubro, com término previsto para fevereiro de 2025. Só então o calendário será normalizado.

Em caráter excepcional, não haverá o semestre de verão de 2025 na única universidade pública do Distrito Federal, que é o período comprimido de aulas quando estudantes que estão perto de concluir suas formações costumam fazer disciplinas para acelerar a graduação.

 
 

A presidente do Instituto Singularidades e ex-diretora global de educação do Banco Mundial, Claudia Costin, salienta que a geração dos alunos hoje afetada pela greve nas universidades já foi impactada por pelo menos um ano de pandemia durante o Ensino Médio. “Foram dois anos de escolas total ou parcialmente fechadas [entre 2020 e 2021] e isso trouxe alguns danos”, afirma Claudia.

“Em certo sentido, do ponto de vista estritamente educacional ele [o prejuízo da greve] tende até a ser um pouco maior do que na pandemia”, diz ela. Isso porque na pandemia algumas federais conduziram aulas à distância e/ou ofertaram condições de conectividade e acesso a equipamentos a alunos em situação de vulnerabilidade socioeconômica. “Agora não, quando você está em greve você não tem aula, nem à distância nem presencial. Então, os danos em termos de preparação — seja para o mundo do trabalho, seja para ser um pesquisador — são grandes”, frisa.

A especialista indica, porém, que é possível recompor as aprendizagens perdidas e, para tanto, será preciso que cada universidade se atente às questões acadêmicas. “Vai ser importante se pensar como a gente retoma.”

Pressão de servidores

Ao longo de quase todo o primeiro semestre de 2023, o presidente da República conviveu com a pressão de servidores da educação, historicamente base de gestões petistas, que se somou a mobilizações de outras categorias, como a dos agentes ambientais.

A última greve da educação por correção salarial ocorreu há quase 10 anos, em 2015 (gestão Dilma Rousseff), e a escolha pelo movimento no segundo ano de mandato do atual governo Lula chamou a atenção de observadores políticos, que apontaram fragilidade do governo. A intelectualidade brasileira, mais afeita à esquerda, é um setor nevrálgico para o PT. O partido, inclusive, entrou em campo para tentar intermediar as negociações.

A expectativa dos técnicos e dos docentes era de que Lula fizesse uma recomposição das perdas acumuladas nos governos Michel Temer (MDB) e Jair Bolsonaro (PL), mas, segundo o governo, isso se mostrou inviável em razão das restrições orçamentárias. Os servidores ficaram seis anos sem reajuste nas remunerações e o diálogo foi especialmente fragilizado no governo Bolsonaro, que defendia um enxugamento da máquina pública.

Em 2024, é almejada a meta de déficit fiscal zero, para reequilíbrio das contas públicas, e a justificativa dada foi de que não havia folga orçamentária suficiente para atender os servidores da educação.

“Infelizmente o governo não apontou nenhuma espécie de reajuste para o ano de 2024, o que é algo que vem em desfavor da própria política do governo federal, que aponta a valorização da educação como um dos seus eixos estruturantes. Então, é muito lamentável que isso tenha se dado, mas esse foi o avanço possível na construção dessa nossa greve, que teve louros, teve avanços, ainda que limitados e insuficientes”. Gustavo Seferian, presidente do Andes

Os acordos

Sem nenhum percentual de aumento neste ano, restaram reajustes distribuídos nos dois próximos anos, sendo, pelo menos, 9% em janeiro de 2025 e 3,5% em maio de 2026, para os professores; e a partir de 9% em janeiro de 2025 e de 5% em abril de 2026, para os técnicos-administrativos em educação (TAEs).

Somado ao reajuste linear de 9% concedido em 2023, o reajuste à carreira docente até 2026 representa aumento em torno de 28,2% para professores, sendo 43% para o para o cargo de menor remuneração. O ganho fica acima da inflação projetada para o período do atual mandato presidencial (2023 a 2026), que varia de 15% a 18%.

Com isso, o salário inicial de um docente com doutorado passará para R$ 13,7 mil. Em abril de 2023 (antes do aumento concedido em 2023) um professor em início de carreira, atuando 40 horas, recebia R$ 9,9 mil. Já o salário para professor titular, no topo da carreira, passará de R$ 20.530 (valor de abril de 2023) para R$ 26.326 em 2026.

O acordo inclui ainda a reestruturação de classes e padrões da carreira docente (os chamados steps), com destaque para a aglutinação das classes iniciais. Essa era uma das demandas dos professores, que pediam que a carreira fosse mais atrativa para os ingressantes. A alteração dos steps de progressão é dos atuais 4% para 4,5% em 2025 e para 5% em 2026. Os professores adjuntos (C1) a progressão será de 5,5% para 6%.

Já no caso das carreiras dos técnicos TAEs, o reajuste acumulado varia de 24,8% a 46,5%, dependendo da classe e do nível na carreira. Na reestruturação da carreira, o tempo de progressão diminui de 18 para 12 meses, com aceleração a cada cinco anos. Essa mudança permite que se chegue do início ao topo da carreira em 15 anos.

O impacto fiscal dos dois acordos é de cerca de R$ 10 bilhões em dois anos, apurou a reportagem. Eles ainda precisarão ser referendados pelo Congresso nas peças orçamentárias dos próximos anos.

Os acordos fechados com servidores da educação se somam a outro reajuste, concedido em maio de 2024 a todo o funcionalismo público, nos benefícios. Foi feita correção de 118% no auxílio-alimentação, que chegou a R$ 1.000 a partir deste ano; e de 51% no auxílio-saúde e no auxílio-creche.

Apesar dos incrementos, servidores do Executivo federal se queixaram que essas correções (à exceção do auxílio-saúde) seriam “etaristas” e excludentes, por não contemplarem os aposentados. Também há reclamações de que os valores seguem aquém dos que os poderes Legislativo e Judiciário pagam a seus servidores. Para fins de comparação, o Judiciário reajustou recentemente o auxílio-alimentação para R$ 1.393,10.

Rixa sindical

A greve docente explicitou a divisão entre as entidades que representam os professores das federais. O termo de acordo dos docentes chegou a ser assinado em 27 de maio pela Federação de Sindicatos de Professores e Professoras de Instituições Federais de Ensino Superior e de Ensino Básico Técnico e Tecnológico (Proifes), que representa um percentual menor da categoria. Apesar disso, a greve ainda se prolongou depois disso.

A Proifes-Federação advogou pela concordância por entender que não havia mais espaço para negociação. Para o presidente da entidade, Wellington Dias, o documento assinado foi “o melhor do pior”. “Nós sabemos dos limites orçamentários, sabemos da questão da dívida pública, sabemos das grandes dificuldades que o governo vai ter por causa dos acontecimentos trágicos do Rio Grande do Sul, que terão impacto no PIB, certamente”, disse Dias.

Proifes x Andes: entenda rixa sindical de professores universitários

Com discordâncias, o Andes foi à Justiça e conseguiu a suspensão do acordo por meio de ação aceita pela 3ª Vara Federal de Sergipe. Nesse ínterim, a Proifes obteve registro sindical, reconhecido pelo Ministério do Trabalho e Emprego, e usou a decisão como reconhecimento de sua legitimidade. E o governo voltou a se reunir com os docentes insatisfeitos para apelar pela assinatura do acordo, apresentando um conjunto de ações da chamada pauta não remuneratória, que não tem impacto fiscal.

Por meio do Ministério da Educação (MEC), foi proposta uma alteração na carga horária dos professores dos institutos federais. O registro de ponto eletrônico e a carga horária do Ensino Básico Técnico e Tecnológico (EBTT) serão alterados por meio da revogação da Portaria nº 983/2020, editada pelo governo Bolsonaro. A norma é criticada por ampliar a carga horária mínima semanal.

Como é de praxe em gestões petistas, foi constituído um Grupo de Trabalho (GT) para elaborar uma nova regulamentação no prazo de 60 dias.

A mudança na carga horária se somou a mais uma sinalização, dada no último dia 10, de destinação de R$ 5,5 bilhões em investimentos do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) para centros e hospitais universitários.

Além dos investimentos no PAC, haverá um acréscimo de recursos para o custeio das instituições federais, no total de R$ 400 milhões, dos quais R$ 279,2 milhões serão destinados aos centros universitários e outros R$ 120,7 milhões irão para os institutos federais.

O Andes vinha se negando a referendar o acordo e exigindo recomposição na casa de 3% ainda neste ano. Tendo em vista as negativas, os setores mais radicalizados cederam e exatamente um mês depois da assinatura do acordo pela Proifes, em 27 de junho, o Andes e o Sindicato Nacional dos Servidores Federais da Educação Básica, Profissional e Tecnológica (Sinasefe) também assinaram o documento, com a inclusão dos itens da pauta não remuneratória. A Proifes assinou o aditivo ao acordo.

As universidades e institutos federais deverão retomar as aulas até a quarta-feira que vem (3/7), com cada instituição definindo o calendário do primeiro semestre de 2024, interrompido desde meados de abril.

Servidores da educação x forças de segurança

Durante o processo de mobilização, servidores da educação se queixaram da falta de deferência à categoria, que não foi recebida por nenhum dos ministros envolvidos nas negociações — nem aqueles da ala econômica nem os da área setorial.

Além disso, eles reclamaram do fato de o governo ter negado reajuste em 2024 a eles enquanto concedeu correções a profissionais da segurança, categoria que, em sua maioria, está mais distante ideologicamente dessa gestão.

Em um ato político do governo federal em Araraquara, no interior de São Paulo, em maio, Lula ouviu um coro de estudantes mostrando descontentamento com o processo negocial: “Ei, Lula, preste atenção, negocia com a Educação”.

“O governo fez uma escolha política de favorecer não a educação, que fortalece a democracia, que fortalece a crítica social, que fortalece o enfrentamento ao neofascismo, para, nesse caso, favorecer as forças de repressão do Estado, que são amplamente bolsonarizadas. Foi uma escolha política bastante infeliz que o governo teve”, disse o presidente do sindicato dos docentes.

Provocado pelo Metrópoles sobre isso após a assinatura dos acordos, o ministro da Educação, Camilo Santana, disse que as categorias não são tratadas “por questão partidária”.

“O governo do presidente Lula é um governo que historicamente mais olhou para a educação pública brasileira. Não tem sido diferente nesse terceiro mandato, só que nós estamos reconstruindo o ministério, reconstruindo o país do ponto de vista orçamentário, do ponto de vista do diálogo”.Camilo Santana, ministro da Educação

A reunião de assinatura do acordo com os servidores da educação foi a única que contou com as presenças dos ministros da Educação e da Gestão, em uma tentativa de demonstrar a importância que o governo dá a esse grupo.

No ato, a ministra da Gestão, Esther Dweck, ressaltou que os acordos abrem espaço para novos diálogos com a categoria. “Esse é um governo que jamais será contra os sindicatos. As discordâncias são parte do processo democrático”, afirmou.

O secretário de Relações do Trabalho do Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos (MGI), José Lopez Feijóo, disse que o voto dos servidores na eleição de 2022 não é “elemento na mesa de negociação”.
 

“Eu não posso sentar em uma mesa de negociação e levar como parâmetro de negociação em quem as pessoas votaram”, afirmou o auxiliar da ministra Dweck em entrevista concedida no início de junho.

Quem é o ex-sindicalista que Lula escalou para negociar com servidores

Feijóo foi escalado pessoalmente pelo presidente Lula para ser o negociador do governo com o funcionalismo. Ex-dirigente da Central Única dos Trabalhadores (CUT), ele foi metalúrgico da Ford em São Bernardo do Campo (SP) e contemporâneo de Lula na luta sindical, integrando o círculo íntimo do petista há décadas.

Lula, inclusive, fez elogios públicos ao auxiliar:

“Pense num galego ‘porreta’, pense num cara preparado. Possivelmente é o dirigente sindical, do ponto de vista orgânico, mais preparado que a gente tem no Brasil. É ele que nós colocamos para negociar greve”. Presidente Lula

Em caráter reservado, representantes dos servidores disseram saber com quem estavam lidando e entender que ele foi apontado pelo próprio Lula, apesar de publicamente pedirem a intercessão do presidente. “Feijóo tem trajetória”, reconheceu um funcionário público sobre o secretário.

Em um dos momentos mais tensos da negociação, o secretário chegou a ser seguido no corredor de um prédio da Esplanada dos Ministérios onde ocorria uma das últimas reuniões com sindicalistas, quando o governo informou ter chegado ao limite e anunciou intenção de encerrar a mesa de negociação.

Na assinatura do acordo na quinta-feira (27/6), Feijóo brincou com o momento. “Teve perseguição ao velhinho no corredor”, disse, entre risos.

Assista ao vídeo:

Lula e PT entram em campo

Ainda em abril, no início das mobilizações, Lula entrou em campo para se colocar como defensor do direito de greve, lembrando de sua trajetória no movimento sindical. Ele ressaltou que “ninguém será punido neste país por fazer uma greve”, mas falou que há limitações. “Eu acho que [greve] é um direito legítimo, só que eles [servidores grevistas] têm que compreender que eles pedem o quanto eles querem, a gente dá quanto a gente pode”.

Dias depois, em nova tentativa de debelar as mobilizações, o petista recebeu, no Palácio do Planalto, reitores de universidades federais, já em meio à greve.

O Partido dos Trabalhadores também abriu diálogo com a categoria. A presidente nacional do partido, Gleisi Hoffmann, esteve com presidentes de associações de docentes, a maioria militantes filiados à sigla. Segundo relatos, Gleisi buscou esclarecer o impasse que levou à greve e ao seu prolongamento.

De acordo com os mesmos relatos, os professores disseram que o movimento surgiu de uma “genuína insatisfação da base docente”, que estaria se sentindo frustrada e cansada com a remuneração corroída nos últimos anos e as universidades sucateadas. Os docentes ainda se queixam de ter ajudado em peso a eleger o atual governo e não terem conseguido nada para a categoria após mais de um ano de gestão.

A reunião teve poucos resultados práticos, mas serviu para os servidores salientarem que a greve não se tratava de uma “provocação” de algum grupo político ultra esquerdista nem tampouco se traduzia em um movimento contra o governo Lula.

O consenso foi de que o próximo pleito, que deverá receber apoio do PT, é a demanda pela recomposição do orçamento das universidades e institutos federais, bem como o do MEC, para bancar as políticas públicas para a educação superior.

UNE defende “reforma universitária”

A presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE), Manuella Mirella, lembra que, como cada campus das universidades está inserido em um contexto regional, social e de adesão à greve, o ideal é que elas “formatem” o calendário pós-paralisação individualmente, levando em conta a opinião e deliberação de toda comunidade acadêmica, especialmente os estudantes.

“A UNE entende que a greve é um reflexo de anos de descaso e falta de projeto para a educação superior, neste caso, a rede federal, acumulando perdas de orçamento e defasagens quanto ao projeto de expansão”.

Manuella Mirella, presidente da UNE

A entidade defende uma “reforma universitária”, que inclui adaptar as instituições de ensino superior aos desafios da atualidade e recomposição orçamentária. “Temos uma janela de oportunidade, com o projeto de lei do Plano Nacional de Educação, que será debatido no Congresso, para fortalecer (e cumprir) a defesa de percentuais do PIB para educação e assim reposicionar as universidades como um pilar para o desenvolvimento do país”, sustenta Manuella.

Questão remuneratória no centro

A questão remuneratória do professor de educação superior tem relação com a atratividade da profissão, em especial para os ingressantes na carreira. Para a especialista Claudia Costin, o governo não deveria abrir mais institutos federais se não consegue dar conta de atender às demandas remuneratórias do quadro atual.

“Em um contexto em que a gente tem dificuldade em melhorar os salários dos professores de federais e em que o gasto por aluno já é tão superior ao dos países da média da OCDE [Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico], esse é o momento de se ampliar o número de institutos federais?”, questiona a especialista.

Claudia explica que existe um mito de que o Brasil gasta demais com educação e falta apenas boa gestão. No entanto, o gasto por aluno com educação básica é menos da metade do que países da OCDE pagam. Esse descompasso, ela defende, precisa receber mais atenção do governo federal.

“O maior gasto em educação básica é com professores, que é uma atividade intensiva em pessoas. Com gasto menor, a profissão é menos atrativa. Parte dos problemas da educação básica é a dificuldade de reter talentos”, argumenta ela.

O gasto maior no ensino superior pode ser, em parte, justificado pela pesquisa, visto que 90% dela no Brasil é feita pelas universidades, em especial as federais.

Claudia Costin defende que haja um olhar holístico para a educação no Brasil. “Afinal, gasto em educação é investimento. E, ao gastar em educação, deve-se prestar atenção na educação básica, mas sem degradar os gastos que vão permitir uma atratividade também para a profissão de professor universitário.”

Entre as alternativas defendidas por ela, está pensar em remunerações não unificadas, considerando as diferenças regionais e o aquecimento do mercado de trabalho de cada estado. “De repente, em um estado em que o mercado é um pouco menos aquecido, você consegue atrair e reter talentos na universidade com um tipo de salário”, explica. Ela cita o exemplo da Alemanha, que também é uma república federativa e onde as universidades públicas não pagam salários idênticos aos docentes.

Outra possibilidade indicada por Claudia seria avaliar a necessidade de criação e manutenção de departamentos em todas as áreas de conhecimento e em todas as instituições, tendo em vista uma lógica de eficiência e adequação do gasto público.

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