“Espera-se que a Justiça, que personifica uma expressão da soberania, esteja apresentável”. Assim, o desembargador José Renato Nalini defendeu, em 2014, mais um auxílio que estava sendo incorporado ao salário dos magistrados.
Na época, ele era presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo e tentou emplacar a tese de que só “aparentemente” o juiz brasileiro ganha bem, mas que na verdade “não dá para ir toda hora a Miami comprar terno”.
Essa desconexão da elite do funcionalismo público com a realidade brasileira — que resulta em uma corrida por remunerações exorbitantes em esferas do Judiciário, Legislativo e Executivo — é o foco de “O país dos privilégios”, livro do economista Bruno Carazza lançado neste mês pela Cia das Letras.
— Até para fazer com que o juiz fique um pouco mais animado, não tenha tanta depressão, tanta síndrome de pânico, tanto AVC. A população precisa entender isso — disse Nalini, em entrevista ao “Jornal da Cultura” citada na publicação.
Peso no orçamento
Esse é o primeiro volume do livro, que será uma trilogia. A previsão de lançamento dos próximos é 2025 (sobre privilégios a empresários) e 2026 (a super-ricos). Segundo Carazza, o Brasil não tem um Estado inchado, mas gasta muito com seus servidores. Ele aponta que todo o setor público, em todos os níveis da federação, incluindo os militares, empregava 12% da força de trabalho do país em dezembro de 2020. Esse patamar é menor do que o observado entre os membros da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), um bloco de países ricos. Lá, o setor público emprega 18%, em média. Na Noruega chega a 30%. Até mesmo os EUA, considerado um exemplo de Estado mínimo pela direita, tem mais: 15%.
— Muitas dessas carreiras justificam esses altos rendimentos pela a importância que elas têm, mas isso não se sustenta. Quer dizer que o fiscal do Ibama dentro da Amazônia enfrentando o desmatamento ilegal não é tão relevante quanto? Um enfermeiro do SUS que enfrentou a pandemia não merece ser bem valorizado? — questiona Carazza.
O resultado disso é que enquanto professores da educação básica e outros profissionais no nível municipal têm remunerações abaixo de seus colegas que atuam na rede privada, 93% dos juízes e desembargadores receberam acima do teto do funcionalismo, que é de R$ 44 mil, o salário dos ministros do Superior Tribunal Federal (STF). Além disso, 1.002 deles receberam R$ 1 milhão líquidos em 2023 (uma média de R$ 83 mil por mês). No Ministério Público nem todos os contracheques estão divulgados como deveriam. Mas, dos disponíveis, 91,5% dos servidores recebem acima do teto do funcionalismo.
Nos dois casos, isso se dá por meio de diferentes estratégias: benefícios estaduais que vão sendo replicados e, mesmo quando inconstitucionais, demoram para serem derrubados; articulações de peso de associações profissionais junto ao Congresso e ao próprio Judiciário para decisões que muitas vezes beneficiam o próprio magistrado; e a atuação de órgãos próprios como o Conselho Nacional do Ministério Público e o Conselho da Justiça Federal para criar ou expandir penduricalhos que, definidos como indenizatórios (como auxílio-moradia), acabam furando o teto.
No Executivo, o economista descreve uma corrida que transformou o teto salarial em meta. Algumas carreiras com maior poder de mobilização como delegados da Polícia Federal (média de R$ 29,9 mil mensais) e auditores fiscais do trabalho (R$ 29,2 mil) já aparecem entre as mais bem pagas do funcionalismo.
De acordo com ele, essa política de valorização remuneratória na elite do Poder Executivo fez com que um professor universitário receba o equivalente a 66,4% do subsídio de um delegado da Polícia Federal. Já um pesquisador com nota máxima na avaliação de desempenho, 58,1%.
— Em períodos que os reajustes ficam mais difíceis, como agora, essas distorções começam a aflorar de forma mais forte e aí a gente vê essas greves que aconteceram — avalia o autor do livro.
Políticos e militares
Outros dois relevantes drenos de recursos públicos apontados na obra são os políticos e os militares. O primeiro grupo, diz o especialista, recebe cota parlamentar que chega R$ 51 mil mensais para custear passagens aéreas, aluguel de veículos, publicidade, pesquisas e consultorias. O resultado disso, na avaliação de Carazza, é que “acabam fazendo campanha eleitoral em tempo integral durante toda a duração de seu mandato”, o que beneficia os parlamentares a conseguirem reeleições.
Já os militares, têm uma Justiça especializada — que custa um terço do Superior Tribunal de Justiça e tem 70 vezes menos processos — e um sistema de previdência próprio também extremamente oneroso: o déficit do INSS, de R$ 270 bilhões em 2022, atendia 30 milhões de aposentados e pensionistas. Já o rombo da previdência das Forças Armadas é de R$ 48 bilhões para 519 mil militares.
Carazza defende que o Brasil precisa de uma reforma administrativa “desprovida de ideologias”. Para ele, essa medida é necessária para reduzir desigualdades, abrir espaço fiscal e garantir serviços públicos com melhor qualidade. Ainda de acordo com o economista, é preciso se afastar da discussão polarizada entre quem entende ser a reforma uma bala de prata para reduzir o Estado ao mínimo e entre os que afirmam que qualquer discussão nesse sentido vai trazer precarização de serviços.
— Uma reforma que recupere só a autoridade do teto remuneratório gera uma economia de centenas de bilhões de reais para os próximos anos. Só no Judiciário são R$ 8 bilhões por ano. Não é a solução de todos os problemas, mas garante ganhos fiscais relevantes — afirma.
Crédito: Bruno Alfano / O Globo – @ disponível na internet 22/7/2024