O Conselho Nacional de Secretários de Estado da Administração (Consad), em articulação com entidades da sociedade civil, decidiu apresentar, em novembro, uma proposta para regulamentar o trabalho temporário no serviço público em todo o país.
A Constituição já prevê, no artigo 37, inciso 9º, a possibilidade da contratação por tempo determinado “para atender a necessidade temporária de excepcional interesse público”. Porém, na prática, os contratos temporários estão disseminados, de forma precária, em diferentes setores da administração pública.
Estudo do Todos Pela Educação, divulgado em maio, aponta que os professores temporários já se tornaram maioria no conjunto dos sistemas estaduais. De acordo com a entidade, o número de professores concursados caiu ao menor patamar em dez anos.
“Em 2023, as escolas estaduais contavam com 356 mil temporários (alta de 55% em uma década), contra 321 mil professores efetivos (queda de 36% no mesmo período)”, informa o Todos Pela Educação.
Mas o uso indiscriminado de temporários enfrenta controvérsias tanto no debate político quanto do ponto de vista jurídico.
O próprio presidente do Consad, Fabrício Barbosa, admite que a proposta de regulamentação sofrerá resistências, inclusive no Congresso Nacional, mas se torna urgente frente à necessidade de reduzir o custo da folha de pessoal e combater a precarização.
“A ideia é regularizar e regulamentar a contratação temporária nos entes federativos. Que, primeiramente, a gente possa trazer segurança jurídica e regularizar milhares de funcionários públicos hoje temporários que existem nos Estados e nos municípios. Essas pessoas não têm direito a FGTS, não têm direito a absolutamente nada… Estão no limbo. Precisamos fazer um marco para que a gente possa trazer essas pessoas para a segurança jurídica e, obviamente, trazer mais flexibilidade”, afirma o presidente do Consad.
Nos bastidores, o tema ganhou fôlego no último mês. Os defensores da proposta participaram de conversas sobre o tema com representantes do governo e dos sindicatos.
Em entrevista exclusiva ao JOTA e à newsletter Por Dentro da Máquina, a ministra da Gestão e da Inovação, Esther Dweck, reconheceu que o debate precisa ser enfrentado.
Porém, a ministra diverge dos estados sobre o alcance desse tipo de contratação. Enquanto o Consad defende que a lei permita a regularização do contrato por tempo determinado em áreas como Educação, Saúde e Assistência Social, a ministra avalia que essa modalidade deve ser mais restrita, limitada às funções efetivamente temporárias.
“De fato, isso é uma realidade que a gente precisa endereçar. Mas temporário para a gente é quando realmente o trabalho é temporário. É o caso do mateiro da Funai… Tem uma grande questão no IBGE sobre os pesquisadores, de quem coleta pesquisa. Tem gente que acha que deveria ser mais permanente, tem gente que acha que não, que é um trabalho para um pessoal jovem, que, realmente, ninguém vai querer ficar o resto da vida fazendo esse tipo de trabalho. Então, acho que tem uma análise bem criteriosa quanto a isso. Quando você entra em áreas como saúde e educação, aí você já está entrando em atividades mais continuadas. Eu tendo a não ser totalmente favorável a isso. Agora, claro, a realidade dos estados e municípios é muito diferente. A gente já tem uma realidade de municípios, principalmente na área de saúde de OSs, que não é exatamente temporária… Eu preciso sentar com eles para fazer esse debate, né?”, afirmou Esther Dweck ao JOTA.
Além das divergências de mérito, há um importante debate sobre a constitucionalidade dessa iniciativa, que também deve tratar dos direitos desses trabalhadores e do processo seletivo.
Inicialmente, os estados defendiam que a regulamentação dos temporários fosse tratada em emenda constitucional, tal como já ocorre com a PEC 32, proposta parada na Câmara e que, no mérito, é rejeitada por governo, sindicatos e entidades da sociedade civil.
Mas os secretários estaduais se convenceram de que, juridicamente, há possibilidade de uma lei nacional regulamentar essa contratação.
“A gente não vai entrar numa briga para perder. Se percebermos que, em algum momento, vai inviabilizar ou a gente vai ganhar no primeiro momento, mas vai perder no segundo, a gente vai mudar a estratégia. A ideia, justamente, é não impor absolutamente nada. A gente precisa de uma evolução. A gente precisa de uma mudança. Se a gente precisar diminuir um pouco o escopo para, depois, ir evoluindo e mostrando que funciona, a gente vai fazer”, avalia o presidente do Consad.
“Queremos identificar os setores que possam ser contratados de forma temporária. E que isso não traga prejuízo, obviamente, para aquelas carreiras em si, mas que traga um benefício para o erário, flexibilização para o gestor público e, obviamente, diminuição de custo. É o que a gente precisa.”
– Fabrício Barbosa, Presidente do Conselho Nacional dos Secretários de Estado da Administração (Consad)Apesar de todas as controvérsias que envolvem o tema da contratação temporária no serviço público, pode-se dizer que, sim, esta é uma realidade colocada aos entes federados?
Sim, é uma verdade. Nós temos que olhar para o trabalho dentro do setor público. A gente tem problemas graves. Precisa olhar para esses problemas e tentar resolver. Um desses problemas é que a gente não tem uma regra nacional que organize o trabalho por tempo determinado. Trabalho por tempo determinado é algo importante, faz parte do planejamento da força de trabalho, mas nós temos grandes distorções. Têm setores, como a educação, que há questão do trabalhador temporário é muito evidente. Portanto, tem que ser pensado com muito cuidado, olhando para as realidades e os problemas reais.
A outra coisa: existe um conjunto de trabalhadores que são contratados com outros nomes, que não o clássico temporário, mas que, no fundo, a gente está falando da mesma coisa. Se você olhar para as administrações públicas, aparecem coisas como precarizados, designados, os famosos estagiários e os residentes. Então, são formas que a administração pública vai criando de contratação por tempo determinado para suprir necessidades.
Acho que o desafio agora é tentar fazer uma lei nacional que traga um mínimo de baliza para organizar e colocar o tema de forma transparente e reconhecer de maneira clara que a contratação por tempo determinado deve coexistir com a contratação por tempo indeterminado, que é o vínculo efetivo. São dois vínculos possíveis, e a gente não pode trabalhar com o temporário como se fosse algo precário. O temporário não pode ser sinônimo de trabalhador precário. O temporário também tem que ter todos os direitos constitucionais, precisa ter regras claras com relação ao prazo, processo seletivo…
Nas prefeituras, por exemplo, muitas vezes não há processo seletivo e a contratação se dá pelos arranjos políticos. E isso tem que ser evitado. A gente não pode ter temporário sendo utilizado para contratar o amigo do amigo em vez de ter um processo seletivo. Então, isso faz parte da profissionalização da força de trabalho pública.
Do ponto de vista da constitucionalidade das contratações temporárias, existe um debate muito duro. Há como trabalhar esse tema por meio de uma legislação normal?
Eu acho que a gente já tem a autorização constitucional para ter a contratação por tempo determinado. Isso está lá no artigo 37, inciso 9 da Constituição Federal, quando fala que a lei vai estabelecer os casos de contratação por tempo determinado. E a expressão que a Constituição fala é atender à necessidade temporária de excepcional interesse público. O desafio da legislação, que eu acho que é um desafio legítimo, correto, é estabelecer a distinção entre a contratação temporária para atender às situações de emergência, que é um uso da contratação temporária frequente e mais comum no nosso sistema, e a ideia da excepcionalidade, de atender excepcional interesse público. Isso não é um sinônimo necessário de contratação por emergência. Excepcional significa fora da situação ordinária, fora das carreiras estabelecidas em lei.
Por trás desse debate existe uma idealização do regime de cargo efetivo. Eu acho que existe o espaço constitucional, não só lendo o dispositivo, mas também por conta das interpretações que o próprio Supremo Tribunal Federal tem feito com relação a variados casos envolvendo contratação temporária. Agora, tem o desafio de escrever que situações são essas; em que casos ela deve ser admitida. Por exemplo, aumento transitório do volume de trabalho, tem a ideia de uma contratação por projeto, diferente de uma contratação perene. Então, quando você pensa numa contratação por projeto, não é necessariamente emergencial. É uma necessidade. É uma necessidade transitória naquele momento, tendo em vista determinada política pública.
Existe o risco de que seja feito um esforço de um projeto que trate bem do tema e que, ao chegar ao STF, seja declarado inconstitucional, por esse ponto da excepcionalidade?
Esse risco existe, mas aí é que está o desafio de fazer um bom projeto de lei. Um projeto de lei que seja legítimo, a ponto de trazer as balizas necessárias para autorizar o trabalho excepcional, no sentido de se contrapor ao trabalho que eu chamei aqui de ordinário. Situações ordinárias são aquelas em que a existência de cargo efetivo funciona bem. Funciona bem, é a regra geral da Constituição Federal, mas a Constituição Federal não proíbe que para além dessa situação ordinária, exista a contratação de pessoal extraordinária e excepcional. O excepcional não significa que ela não se perpetue no tempo. Significa que você vai atender uma necessidade do Estado, considerando as características desse próprio mercado de trabalho, eventualmente.
É um desafio do projeto de lei dizer a que veio e convencer as pessoas de que ele está tratando de maneira legítima e organizando em uma boa norma quando é que você vai diversificar e flexibilizar a contratação. E tem que passar a informação: temporário não é para a saída da crise, e o setor público precisa de agentes especiais contratados. A própria palavra temporário gera um pouco essa leitura muito negativa, tendo em vista o histórico. Talvez a gente possa tratar isso como um agente especial contratado. Porque envolve características especiais, mas deixar claro que o temporário não é clandestino. Têm as palavras que o pessoal costuma usar: extranumerário, extraquadros. Você não pode chamar o terceirizado de estranho, porque ele é um quadro também, né? Ele é um quadro também, mas um quadro diferente.
Não seria o caso de se pensar, portanto, em fazer as duas coisas? Mudar a Constituição e uma lei consistente? A própria PEC 32 fala nos temporários…
Se a gente pensar no ponto de vista ideal, talvez sim, porém, qualquer tentativa de mudar a Constituição é sempre um desafio infinito. Então, você mesmo mencionou a PEC 32, ela entrou de um jeito e saiu de outro. Completamente diferente. O debate constitucional abre espaço para um oportunismo constitucional muito perigoso. Então, a saída mais fácil nesse momento, considerando que a Constituição Federal autoriza, considerando que o Supremo Tribunal Federal nunca disse que a contratação temporária não é aceita, não é legítima, não tem previsão constitucional, é aproveitar a janela que já existe no artigo 37, inciso 9, e gastar a capacidade política para articular um bom projeto de lei que seja capaz de fazer com que o temporário não seja um arremedo de contratação. Que a gente tenha uma boa governança, que a gente tenha um bom planejamento, evitar a precarização, que a gente tenha mais clareza.
Se a gente for direto para a Constituição Federal, ela vai simplesmente repetir algo que já está autorizado com outras palavras, só para ser um pouco mais claro. E a gente vai continuar sem ter um debate importante sobre como se faz para ter uma contratação temporária melhor. A minha opinião é: se for para o debate constitucional, esquece. Esse assunto vai ficar para a próxima década. E eu acho que a gente tem boas chances de conseguir uma legislação nacional com o apoio do STF.
Quais seriam as palavras-chave que podem conectar de fato o projeto com o que está na Constituição sobre temporários?
Respondendo a sua pergunta, já trazendo aqui um exemplo. Os estados e municípios trazem muitas situações envolvendo terceirização, que acaba sendo a saída para casos como segurança armada, que se contrata por posto de trabalho, contrato terceirizado, profissional na área de TI, merendeira, transporte escolar… Essa terceirização, que hoje já é aceita, ninguém diz que não pode haver, e ela acaba saindo muito cara para o poder público. Ela acaba saindo mais cara do que se fizesse a composição do quadro temporário porque você tem uma pessoa interposta no meio do caminho. Então esse é o primeiro argumento.
Seria um princípio de economicidade…
Um princípio de bom gasto fiscal para evitar terceirizações que não fazem sentido, atividades em que hoje já se reconhece que não faz sentido você colocar dentro do quadro permanente da administração pública, como essas que eu mencionei, por exemplo. Esse é um primeiro ponto. Segundo: de maneira ainda muito inicial. A gente precisa dizer que isso não é um vínculo precário. Depois, que essa é uma força de trabalho, que é legítimo que ela seja treinada, que ela seja capacitada, assim como acontece, por exemplo, com residência médica em hospital público. Tem que ser claro que isso não é para tapar buraco. Portanto, precisa de planejamento. A gente precisa sair da armadilha de que a legislação traga só hipóteses e soluções provisórias para situações muito pontuais, que acabam sempre sendo muito questionadas. Então, a gente deve ter uma legislação de melhor qualidade para ter algum tipo de controle sobre os resultados, a qualidade de trabalho, a avaliação, o controle desses gastos… Se pode ou não pode prorrogação, se não tem quarentena para essas pessoas. E governança.
Já dá para dizer os direitos que esse trabalhador deveria ter?
Esse é um tema muito sensível, porque, por incrível que pareça, a legislação dos estados e dos municípios é de muito baixa qualidade. Às vezes, por má informação, nem sempre de maneira proposital, mas ela é de muito baixa qualidade. E essa regra própria não pode deixar de reconhecer os direitos constitucionais trabalhistas. Os constitucionais não têm a menor chance de não reconhecer, até porque o próprio Judiciário tem dito que contratação por tempo determinado que não reconhece licença-maternidade está errada. Está errado quando não reconhece a estabilidade da gestante. Tem que ter direito a férias e mais um terço, décimo terceiro salário… Tem que recolher o FGTS proporcional ao tempo de serviço. O Judiciário tem dito e redito. E isso é que tem feito também com que haja grande precarização, porque, como as legislações locais não dizem isso explicitamente, não reconhecem esses direitos constitucionais, tem enorme judicialização.
Em tese, não precisa ter direito a verba rescisória. Não vai ter os direitos dos estatutários, que é direito à estabilidade, não tem direito de ser efetivo, não tem direito ao afastamento remunerado, etc. E a regra previdenciária vai ser a regra de previdência geral. Eu não vejo outra saída.
O processo seletivo é disperso. A lei trataria disso?
A lei tem que fazer isso. Eu acho que uma das funções principais é desenhar o processo seletivo, sem dúvida. Porque, lembrando, a palavra concurso na Constituição está ligada ao ocupante de cargo efetivo, àquele que tem estabilidade. A palavra concurso está ligada à estabilidade na Constituição Federal. Não fazer concurso não significa que não haja um processo seletivo. E um processo seletivo usando, inclusive, as próprias diretrizes do projeto de lei nacional de concurso (aprovado, em agosto, pelo Congresso). Usando as mesmas ideias. Na rede pública de educação, alguns estados e alguns municípios de maior porte fazem processo seletivo. Isso é novidade.
Crédito: Por Dentro da Máquina Pública/ JOTA – @ disponível na internet 4/9/2024