Muitas vezes na política a sincronicidade de alguns acontecimentos pode ser fatal. O encadeamento recente de fatos, a partir da decisão do governo de anunciar a divulgação das medidas para resolver a suposta dificuldade na questão fiscal, terminou por escancarar os equívocos cometidos desde o começo do terceiro mandato na área econômica.
Assim, de trapalhada em trapalhada, de concessão em concessão ao financismo, o governo revelou sua incapacidade em sair por cima da iniciativa política, justamente na semana em que o noticiário estava dominado pelas revelações dos crimes praticados por uma parte da elite das Forças Armadas em sua tentativa golpista em 2022 e mesmo no início de 2023.
Após muito tempo de indefinição e indecisão, Lula parece ter se resolvido a não apresentar aquilo que seus assessores da área econômica tentavam empurrar como fato consumado goela abaixo do chefe. Desde o início do ano passado, uma série de assessores e secretários das pastas da Fazenda e do Planejamento anunciavam publicamente a suposta necessidade de serem promovidas medidas para conter as despesas de forma estrutural.
Há poucas semanas, Fernando Hadad e Simone Tebet passaram a verbalizar, em nome do governo, tais intenções. Ambos foram explícitos na defesa do fim dos pisos constitucionais para saúde e educação, além da eliminação da paridade entre os benefícios previdenciários em relação ao valor do salário-mínimo. Uma loucura!
À medida em que avançava o calendário, tudo indica que Lula tenha se dado conta dos riscos políticos envolvidos em tal aventura irresponsável que seus assessores lhe propunham.
Assim, o formato do pacote fiscal que foi finalmente anunciado deixou de fora as mudanças constitucionais, que retirariam a segurança de conquistas que até o momento ainda não haviam sido retiradas da Constituição Federal nem mesmo pelos governos de Temer e Bolsonaro. Ocorre que a lógica de impor sacrifícios à grande maioria da população se mantém nas medidas apresentadas. A estratégia envolveu a separação do conjunto de proposições em 2 trilhas.
De um lado, as medidas envolvendo as receitas e de outro lado, aquela destinadas às despesas. Tudo se justifica por uma verdadeira obsessão que acomete, ao longo dos últimos 2 anos, o Ministro da Fazenda. Além de ter convencido o Presidente da necessidade de uma lei complementar tratando do Novo Arcabouço Fiscal (NAF), Haddad também impôs a meta de zerar o déficit fiscal primário.
As armadilhas de Haddad: arcabouço e zerar o déficit
E justamente por ter imposto tal armadilha de zerar o déficit ao governo a curto prazo é que ele está correndo atrás do tempo para propor medidas de corte de gastos a todo o custo. É bem verdade que Lula exigiu a inclusão de uma promessa antiga de elevar a isenção de Imposto de Renda (IR) para quem recebe até R$ 5.000. E Haddad buscou encontrar uma fórmula para compensar essa perda de arrecadação com uma intenção vaga de uma tributação de IR para quem recebesse acima de R$ 50 mil reais por mês. A intenção é boa, mas ainda não se conhecem os detalhes da medida e se haveria efetiva capacidade de promover a arrecadação desejada. De todo modo, tudo leva a crer que tais proposições só terão impacto econômico a partir de 2026, uma vez que os Presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado Federal não pretendem colocar o assunto em votação ainda em dezembro.
Desta forma, as maldades passariam ter validade a partir de 1 de janeiro próximo, ao passo que as medidas que poderiam significar maior justiça tributária ficam para depois. A conhecida tática que muitos pais aplicam aos filhos – “na volta a gente compra”. De qualquer forma, o que temos para o momento são propostas que afetam os mais pobres, a exemplo da redução dos ganhos do abono salarial, o endurecimento das regras para o Benefício de Prestação Continuada (BPC) e as mudanças nas regras do salário-mínimo para reduzir os ganhos reais acima da inflação.
A pergunta que não quer calar é: por que Haddad insiste em deixar de lado qualquer iniciativa que signifique buscar receita ou reduzir despesas envolvendo os setores do topo de nossa pirâmide da desigualdade? Para cumprir com a meta de zerar o déficit primário, bastaria editar uma Medida Provisória eliminando a aberração da isenção que faz com os beneficiários de lucros e dividendos não sejam atingidos pela tributação de IR, assim como acontece com qualquer assalariado ou aposentado/pensionista. Tal medida foi uma generosidade oferecida por Fernando Henrique Cardoso em 1995 e nenhum governo do PT fez nada esse respeito desde 1 de janeiro de 2003.
Pacote de maldades e explosão de juros
Há vários estudos com estimativas a este respeito e todos parecem confluir para conclusões de que esta medida promoveria justiça tributária e asseguraria volume de receitas mais do que suficiente para compensar as perdas decorrentes da elevação do limite de isenção para R$ 5 mil. Outro aspecto seria voltar os holofotes para maior rubrica “gastadora” da estrutura de despesas orçamentárias. Refiro-me à conta de juros da dívida pública. E aqui retomo o início do artigo, comentando a sincronicidade das coisas da política. Isso porque no mesmo dia em que Haddad tentava convencer a sociedade a respeito da inevitabilidade de seu pacote e da justeza do mesmo, o Banco Central (BC) divulgava discretamente em suas páginas o Relatório Mensal das Estatísticas Fiscais.
E os dados são impressionantes! Durante o mês de outubro, o Brasil bateu um novo recorde de volume mensal de pagamentos de juros. Foram extraídos do Orçamento Federal um total de R$ 111 bilhões para essa rubrica financeira para serem torrados em apenas 22 dias úteis. Como diria o Presidente Lula, nunca antes há História deste País se gastou tanto em um único intervalo mensal com o direcionamento de recurso públicos para os integrantes do topo da vergonhosa pirâmide da injustiça. A bem da verdade, no recente mês de junho outro recorde havia sido estabelecido, quando foi atingido o montante de R$ 95 bi. Mas, como a metodologia adotada desde sempre (e jamais modificada, nem mesmo com Lula ou Dilma) pela área econômica mantém a lógica do ajuste fiscal exclusivamente “primário”, isso significa deixar de lado do cálculo as despesas não-primárias – entenda-se, as despesas financeiras. Para esses gastos considerados como VIP, não há teto, nem limite, nem contingenciamento.
Juros: R$ 111 bi em outubro. Recorde atrás de recorde
Ao analisar a série mais alongada das despesas com juros, chegamos ao volume impressionante de R$ 762 bi apenas para os 10 primeiros meses de 2024. A comparação com os valores do mesmo período janeiro/outubro para os anos anteriores revela que o rentismo permanece intocável e segue sendo privilegiado como sempre.
Se a intenção for comparar os valores anuais, envolvendo a totalidade de gastos financeiros realizados em 12 meses, a realidade também segue gritando bem alto.
Se considerarmos o período de novembro 2023 a outubro 2024, temos um novo recorde atingido. Foram R$ 869 bi gastos com o pagamento de juros da dívida pública, um crescimento de 21% em relação ao que foram gastos ao longo dos 12 meses do ano passado.
É importante registrar que nenhuma outra rubrica orçamentária teve tamanha elevação de valores dispendidos.
O gráfico abaixo exibe os números já corrigidos pela inflação para os últimos 4 exercícios. São valores crescentes, em um período em que os gastos da área social e dos investimentos públicos estavam submetidos ao Teto de Gastos de Temer e ao NAF de Haddad mais recentemente.
Crédito: Paulo Kliass / Jornal GGN na página da CONDSEF – @ disponível na internet 4/12/2024