É o horário do almoço de um sábado de fevereiro, e as filas, engrossadas principalmente por argentinos que rumam para as praias do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina, são imensas e chegam a quase quatro horas de espera. A fila preferencial dos residentes da fronteira é um alívio para os “librenses”, que cada vez mais recorrem ao Brasil para comprar alimentos, produtos de higiene pessoal e de limpeza.
“Os produtos aqui saem pela metade do preço em relação à Argentina. Compro tudo, sabão em pó, arroz, bolacha”, diz a contadora argentina Florencia Del Bove, que atravessa semanalmente a ponte que liga os dois países para se abastecer em um hipermercado de Uruguaiana.
No carrinho, a contadora colocou macarrão, temperos, produtos de higiene pessoal e de limpeza, óleo de cozinha, e até um esfregão e uma air fryer. Também tem leite longa-vida, que neste hipermercado de Uruguaiana está R$ 3,8, quando em um supermercado de Paso de los Libres ronda R$ 9.
Mesmo com o custo da viagem, os bate-e-voltas quinzenais, cada vez mais comum dos moradores de Paso de los Libres para fazer supermercado no Brasil, representa uma economia de cerca de 50%. A diferença se explica por uma conjunção de fatores. Por um lado, a brusca diminuição da inflação – de 25,5% em dezembro de 2023 para 2,7% em dezembro de 2024 – ocorreu sobre preços extremamente elevados.
Por outro lado, a Argentina ficou mais cara em dólares, pois o governo manteve o controle sobre a cotação oficial do peso, permitindo uma desvalorização mais lenta do que a inflação. Como resultado, a diferença antes expressiva entre o dólar paralelo e o oficial diminuiu tanto que já não torna os produtos significativamente mais baratos para os brasileiros que chegam ao país vizinho com moeda estrangeira.
Além disso, o peso argentino se valorizou em relação ao dólar, enquanto o real perdeu força, criando um cenário que tornou o Brasil um destino ainda mais atrativo para os “hermanos”.
“Para nós, é muito barato; vale a pena ir fazer compras lá. Toda a minha família vai”, diz Haydée Umeres, que trabalha em um supermercado em Paso de los Libres. Mesmo com desconto de funcionária, ela afirma economizar ao atravessar a fronteira até Uruguaiana para comprar itens básicos.
E a tendência vale também para os moradores de cidades mais afastadas da fronteira. Inés Sanchez é de Mercedes, município argentino a quase duas horas de Uruguaiana, e decidiu passar pela cidade brasileira para comprar produtos para sua padaria. No carrinho, colocou pacotes de refrigerante e de água, para revender, e leite, para elaborar quitutes. Mas o que realmente se destaca na compra são os enormes pacotes com 40 rolos de papel higiênico que está levando para sua casa e para suas avós.
“Muita gente de Mercedes está vindo para cá fazer compras. Não vou conseguir vir sempre, porque tenho dois trabalhos, mas o pai de uma amiga vai começar a vir para a gente se abastecer”, conta ela, que foi a Uruguaiana acompanhada de amigos que também levaram itens de consumo pessoal, além de roupas que compraram em outros estabelecimentos da cidade.
A economia fica evidente em apenas um dos produtos comprados por Sanchez: em sua cidade, ela paga 1,7 mil pesos (R$ 8,30) por uma latinha de refrigerante, enquanto no Brasil a encontra por R$ 3,90. Surpresa, ela também menciona os preços dos aparelhos de ar-condicionado, que podem ser adquiridos por R$ 1,5 mil na cidade brasileira, enquanto em sua região custariam pelo menos R$ 3,4 mil. “É uma loucura”, resume.
O boom do fluxo de argentinos para o Brasil trouxe uma vantagem expressiva: segundo o Observatório das Migrações Internacionais, o número de argentinos que entraram no País saltou de 160.875 em dezembro de 2023 para 254.737 no mesmo mês de 2024, um crescimento de 58,3%.
O fenômeno se explica também pelos argentinos indo passar férias no Brasil neste verão. Só em dezembro, quase 93 mil argentinos entraram no Brasil através do Rio Grande do Sul, o que representou um aumento de 102,2% em relação ao mesmo mês de 2023. Já Santa Catarina registrou a entrada de mais de 44 mil argentinos, 90% a mais do que no mesmo período do ano anterior.
A vendedora argentina Mónica Suárez chegou a orçar uma viagem de uma semana para Ituzaingó, cidade à beira do Rio Paraná, mas constatou que ir descansar no Brasil sairia muito mais barato. “Aqui sairia 2,5 milhões de pesos (R$ 12 mil); e no Brasil, R$ 5 mil”, compara.
Lojas vazias
Suárez trabalha em uma loja de pesca em uma das principais avenidas comerciais de Paso de los Libres, que em um fim da manhã de sábado está silenciosa. As ruas esvaziadas contrastam com a intensa movimentação que havia um ano lotavam a cidade em busca de produtos a preços vantajosos. A situação se inverteu.
![Uma das principais ruas comerciais de Paso de los Libres está deserta](https://i0.wp.com/www.estadao.com.br/resizer/v2/EC7BNK6OPJAGXN6KLMGGVBVMDE.jpeg?resize=696%2C521&ssl=1)
A uma quadra dali, os frentistas Juan Sartori e Marcos Carbonell aguardam a chegada de um carro para abastecer. Eles relembram o tempo em que, naquele mesmo posto, brasileiros formavam filas de até oito quarteirões para aproveitar o combustível subsidiado.
“Não tinha descanso, as filas eram enormes de 6h às 21h. Nós mesmos tínhamos de rodar para ver em que posto não tinha tanta fila ou ainda tinha gasolina”, descrevem, contando que em novembro de 2023, quando a gasolina comum estava cerca de R$ 2 por litro em Paso de los Libres, a procura era tanta que os postos da estatal YPF não vendiam para brasileiros e outros vendiam com limites máximos. O deles abastecia com a quantidade pedida pelos motoristas, mas precisava de reposição praticamente diária com um caminhão de 38 litros de combustível.
Com a chegada de Javier Milei e os ajustes de preço, a pechincha e a alta procura ficaram no passado. Atualmente, a gasolina comum nesse posto custa R$ 5,90, enquanto em Uruguaiana sai por R$ 6,30. A pequena diferença, refletida na baixa movimentação e na redução das reposições – agora limitadas a um único caminhão por semana –, já não compensa a travessia para os brasileiros.
Ao contrário, o que vale, segundo Carbonell, é comprar peças de carro no Brasil. Ele mesmo, quando precisou, trocou os quatro pneus do seu em Uruguaiana. “Aqui cada pneu saía R$ 930, e lá paguei R$ 1.116 pelos quatro”, conta ao lado do colega.
“Sentimos muito esse impacto. Antes, os brasileiros vinham todo mês para cá, enchiam dois carrinhos de supermercado. Mas agora já faz quase um ano que eles não vêm comprar. Nós nos mantemos com o público argentino que também é pouco, porque nós mesmos estamos indo fazer compras no Brasil”, relata Umeres.
Fechamento de lojas e demissões
Na cidade argentina de Bernardo de Irigoyen, na fronteira com Dionísio Cerqueira (SC) e Barracão (PR), a consequência dessa inversão de fluxo foi o fechamento de estabelecimentos comerciais e demissões. “Está muito difícil para o comércio argentino, teve uma queda de 70%, 80% das vendas”, lamenta, afirma Walter Feldman, presidente da Câmara de Comércio da cidade.
Segundo ele, o movimento de moradores da cidade argentina indo comprar produtos da cesta básica no Brasil se intensificou a partir de outubro e hoje, em um fim de semana, a clientela argentina é 80% de alguns supermercados do lado brasileiro.
“Os estabelecimentos se adaptaram para recebê-los, contratando argentinos, focando nos produtos que os argentinos mais procuram, e aceitam pesos”, relata.
O boom também é aproveitado por motoristas que passaram a levar argentinos para o Brasil. O serviço inclui aguardá-los por até duas horas e levá-los de volta para a Argentina. Em Paso de los Libres, o serviço sai cerca de R$ 150, com duas horas de espera.
Um desses motoristas conta que tem conseguido fazer de três a seis viagens por dia para o Brasil. Mas eles não são os únicos que trabalham com isso: há também os conhecidos como “passadores”, que transportam passageiros a preços menores porque têm como principal tarefa levar produtos de um país para o outro burlando a fiscalização alfandegária para evitar o pagamento de taxas. Em bom português, o contrabando.
Um deles, que pediu não ser identificado, contou à reportagem que entre os principais produtos que os argentinos pedem do Brasil estão ventiladores, aparelhos de ar-condicionado e copos térmicos de uma marca famosa que na Argentina estão “os olhos da cara”.
A caixa com três ventiladores é comprada em Uruguaiana por 65 mil pesos, e o “passador” cobra 10 mil pelo serviço. Ele conta que, em Paso de los Libres, somente uma unidade custaria 40 mil e, em outras províncias, pode passar de 60 mil.
Em várias lojas da cidade, comerciantes relataram ao Estadão que dobraram a meta de vendas que tinham para o mês de janeiro. Lidiane Zárate, gerente de um dos free shops de Uruguaiana, conta que janeiro sempre é um mês de alto fluxo no local, mas que neste ano “foi muito fora da curva, totalmente diferente”.
A maioria dos consumidores argentinos nessas lojas são os argentinos que passam pela cidade antes de ir para praias brasileiras ou voltar para seu país. Segundo Zárate, a maioria chega com dólares, mas também há um uso massivo do Pix, que passou a ser utilizado por meio de alguns aplicativos de contas virtuais que surgiram no último ano na Argentina.
Para os comerciantes e o setor hoteleiro de Uruguaiana, a invasão argentina é sinônimo de metas batidas e bonificações. “Espero que eles continuem ganhando dinheiro e vindo gastar, porque estamos felizes”, comemora.
Crédito: Luciana Taddeo / O Estrado de São Paulo – @ disponível na internet 10/2/2025