“Ovo de Páscoa é só açúcar e gordura”

0
322
@getty images /BBC News Brasil

“Ovo de Páscoa é só açúcar e gordura”: como disparada do cacau e cortes da indústria pioraram chocolate no Brasil

A sensação de que o chocolate vendido pela grande indústria no Brasil piorou está na boca do povo e nas redes sociais. A chegada da Páscoa deu novo gás às reclamações de consumidores, que se queixam do sabor e dos preços dos ovos.

Segundo especialistas ouvidas pela BBC News Brasil, a percepção de que o chocolate vendido em larga escala no país hoje “é pura gordura e açúcar” faz sentido e reflete fatores como a qualidade baixa do cacau utilizado e mudanças nas composições dos produtos para reduzir custos ao longo de décadas.

As especialistas ouvidas também alertam que o cenário tem se agravado com a disparada do preço do cacau nos últimos dois anos. O valor da commodity chegou a quadruplicar atingindo o recorde de mais de US$ 10 mil dólares por tonelada, sob impacto de quebras de safra na África Ocidental, maior região produtora do mundo, devido a questões climáticas e pragas.

Um exemplo da ira dos consumidores é o vídeo compartilhado no início de março no Instagram pela conta Nostalgia Pura (@nostalgiapuraaa1) sobre como os ovos de Páscoa seriam melhores e mais baratos em 1995. A postagem acumulou mais 1,3 milhão de visualizações em duas semanas e centenas de comentários reclamando que o produto de hoje não tem mais “chocolate de verdade”.

“Nessa época chocolate era chocolate. Agora é só açúcar e gordura com sabor de chocolate “, reclama um deles.

“Estamos vivendo a era do ‘ovo fake’ . Tem formato de ovo, cheiro de ovo, saco de ovo, mas, quando você abre, o ‘ovo é falso'”, comentou outra pessoa.

Outro alvo de polêmica é o aumento dos produtos “sabor chocolate”, que levam menos de 25% de cacau na composição. Reclamações sobre a recente mudança na fórmula do Choco Biscuit, da Bauducco, viralizaram na virada do ano.

O produto, que antes era composto de um biscoito com cobertura de chocolate ao leite ou meio amargo, passou a ser feito com cobertura “sabor chocolate ao leite” ou “sabor chocolate meio amargo”.

A mudança do nome indica que a cobertura deixou de ter em sua composição o mínimo de 25% de cacau exigido pela legislação brasileira para um produto ser chamado de chocolate — percentual já baixo para padrões internacionais, segundo especialistas entrevistadas.

Na União Europeia, onde as regras são mais duras, o mínimo exigido é de 35% para chocolate em geral, e de 30% para chocolate ao leite.

Um vídeo do consultor gastronômico Davi Laranjeira criticando o novo Choco Biscuit acumula mais de 8 milhões de visualizações e mais de 11 mil comentários no Instagram, desde 27 de dezembro.

“Eles não cansam de fazer pegadinha, piorar os produtos, tentar te ludibriar, pra te vender produto de má qualidade”, reclama.

No vídeo, ele diz que esse tipo de produto não é exclusividade da Bauducco.

“Também tá aqui ó: Choco Biscuit da Garoto, sabor chocolate ao leite. Que é o que? Uma base de gordura hidrogenada e puro açúcar com um pouquinho de cacau para dar sabor de chocolate, mas não é chocolate, não é saboroso, não faz bem pra sua saúde, não é de alta qualidade”, continua.

O sabor chocolate aparece também em outros produtos das grandes marcas, como biscoitos wafer e bombons. O clássico Serenata de Amor, da Garoto, é um exemplo, em que a cobertura não tem mais chocolate de verdade, assim como seu concorrente, o Sonho de Valsa, da Lacta.

Embalagens de biscoito com cobertura sabor chocolate ao leite
Vídeos com críticas a produtos “sabor chocolate” têm viralizado Reprodução Instagram Davi Laranjeira

‘Sim, o chocolate piorou’, diz especialista

Especialistas em chocolate ouvidas pela BBC News Brasil dizem que a percepção de que houve uma piora na qualidade dos produtos da grande indústria está correta.

“Sim, o chocolate piorou. Isso não é uma sensação, é realidade”, afirma a engenheira de alimentos Luciana Monteiro, fundadora e diretora da Ara Cacao, uma consultoria para inovação em chocolates.

Antes de se tornar consultora, Monteiro atuou dez anos em grandes empresas, como a multinacional Bunge, onde desenvolvia gorduras para substituir manteiga de cacau na produção de chocolates, e a suíça Barry Callebaut, uma das gigantes mundiais em processamento de cacau.

Também se especializou academicamente na área, com mestrado na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e um ano como pesquisadora convidada na Universidade Estadual de Utah, nos Estados Unidos.

Monteiro diz que a piora do produto é consequência de mudanças no processo de produção e nos insumos utilizados ao longo de décadas, em ações da indústria para reduzir custos.

Esse processo, ressalta, começa com a crise que assolou as fazendas de cacau na Bahia há quarenta anos, quando uma praga, a vassoura-de-bruxa, fez a produção brasileira encolher quase 80% entre 1985 e 1999, de cerca de 449 mil toneladas ao ano para apenas 96 mil.

Na época, o país era o segundo maior produtor mundial. Hoje é o sexto, com cerca de 300 mil toneladas de cacau ao ano, segundo a Organização Internacional do Cacau (ICCO)

Os dois primeiros, Costa do Marfim e Gana, chegaram a produzir juntos quase três milhões toneladas de cacau na safra 2022/2023, mas a produção caiu 23% para 2,22 milhões toneladas na safra seguinte, segundo projeções iniciais da ICCO, o que impactou na disparada do preço recente.

A crise da vassoura-de-bruxa, nota Monteiro, levou à piora da qualidade do cacau brasileiro.

E, nesse contexto de menos oferta da matéria prima básica do chocolate, a exigência mínima de sólidos de cacau foi reduzida para 25%, como uma nova regulamentação adotada em 2005 pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).

Além do percentual baixo, a norma também dá flexibilidade aos tipos de sólido que podem ser utilizados para atingir o mínimo.

“Em 2005, vem uma regulamentação que simplifica muito o que se pode chamar de chocolate. Esse sólido de cacau [para cumprir o mínimo de 25%] pode ser pó de cacau, manteiga de cacau e massa de cacau. Isso também é uma grande diferença da nossa indústria. O pó de cacau entra muitas vezes ali como um redutor de custo”, explica.

“Então, ele não tem a mesma performance [que a massa ou a manteiga], não tem o mesmo sabor, mas ele, dentro da legislação, tá incluso [no que pode ser usado]”, continua.

“E há também uma margem muito grande para gorduras substitutas da manteiga de cacau. Então, gorduras vegetais podem entrar na formulação sem problema nenhum, vai continuar sendo chamado de chocolate”, disse ainda.

Monteiro ressalta que isso viabilizou o crescimento da indústria no país. Mas, como a produção de cacau não se recuperou na mesma velocidade, a qualidade piorou.

“Até início dos anos 1990, as fazendas cuidavam melhor do seu cacau, no processo de fermentação, de secagem. Então, tinha uma matéria-prima de maior qualidade”, avalia.

“Como a indústria se desenvolveu, cresceu, e a matéria-prima estava escassa, os critérios de qualidade foram muito reduzidos. Até porque a qualidade não é reconhecida. Se eu faço cacau de boa qualidade e você faz um cacau pior, a indústria vai pagar o mesmo para mim e para você. Não existe um incentivo para agregação de valor”, destaca.

Professora do curso de Lazer e Turismo da Universidade de São Paulo (USP) e coordenadora do projeto de extensão Cacau e Cultura, Mariana Bueno também vê grande pressão na indústria por redução de custos e substituições nos insumos.

A manteiga de cacau, nota ela, é um ingrediente importante para garantir que o chocolate derreta na temperatura da boca, que é de 37 graus.

Como o insumo é demandado também pela indústria de cosméticos, esse é mais um fator que pressiona as empresas de chocolate a buscarem gorduras mais baratas.

“O óleo de palma é um tipo de gordura vegetal usado em substituição à manteiga de cacau. Mas, muitas vezes, a indústria ainda substitui esse óleo de palma por óleo de palmiste, que é muito inferior. Então, é a substituição da substituição”, exemplifica.

“O cacau chegou a preços inimagináveis do ano passado pra cá. Em consequência, os produtos tendem a ter cada vez menos cacau, cada vez mais substituições”, prevê.

A cotação internacional quadruplicou em dois anos. Segundo monitoramento da Organização Internacional do Cacau, o valor médio mensal de uma tonelada do produto, que estava em US$ 2.587 em fevereiro de 2023, atingiu um pico de US$ 9.876 em abril do ano seguinte. Após um período de recuo e instabilidade, alcançou novo recorde em janeiro deste ano, US$ 10.709.

Outro insumo que tem sido substituído pela indústria de chocolate é o leite. Na lista de ingredientes de produtos de grandes marcas, é fácil encontrar o permeado de soro de leite em pó e soro de leite em pó.

Mulher despeja bacia com cacau sobre pilha de frutos acumulados
Valor do cacau disparou com quebras de safra na África e alta demada mundial @Reuters

Como identificar bons chocolates?

Estudiosa do assunto há mais de uma década, Zélia Frangioni é autora do Chocólatras Online, que começou em 2014 como blog e hoje está presente nas principais redes sociais.

Na sua visão, a piora do chocolate nas últimas décadas reflete um mercado muito competitivo no país e a demanda dos consumidores por produtos baratos. “As empresas tentam ganhar de qualquer jeito, fazem produtos cada vez mais doces”.

Em contraponto, ela diz que tem crescido a oferta de chocolates de excelente qualidade no Brasil, que seguem os princípios do movimento “bean to bar” [do grão à barra], método de produção que controla toda a cadeia produtiva, com cuidados especiais na plantação e processamento do cacau, inclusive ambientais e sociais.

Além do cacau melhor, ressalta, esse tipo de chocolate é feito com poucos insumos, sem usar as substituições da grande indústria.

“O cacau é igual às uvas dos vinhos. Então, dependendo da região onde ele foi plantado, como foi fermentado, como foi secado, você vai ter diferentes notas de sabores”. explica.

“Mas não é só uma questão sensorial, é também de sustentabilidade. O produtor do bean to bar paga muito melhor o produtor de cacau. Ele vai ser valorizado da forma justa”, diz ainda.

Todos esses cuidados, ressalta, impactam os preços.

“Falando dos melhores chocolates no Brasil, você compra uma barra [de 80 gramas] por R$ 30 a R$ 35. É caro, sim, comparado com a barra de uma grande marca, que vai custar R$ 9 a R$ 10. É três, quatro vezes mais caro”, compara.

Em um país desigual e de renda média baixa como o Brasil, Frangioni sabe que o chocolate “bean to bar” não cabe em todos os bolsos. Por outro lado, ela vê esse produto como “um luxo acessível para a classe média”.

Uma boa troca, diz, é reduzir o consumo e investir na qualidade.

“Eu prefiro comprar um chocolate de melhor qualidade e comer menos quantidade, mesmo porque chocolate em quantidade, não importa a qualidade, não vai fazer bem pra saúde. É para consumir com moderação”, recomenda.

“Então, escolha que tipo de chocolate você quer e o quanto você está disposto a pagar por isso. Tem os intermediários”, reforça.

Uma dica para identificar um bom produto, diz, é ler seu rótulo, pois os insumos são listados em ordem decrescente de quantidade — ou seja, os mais presentes aparecem primeiro.

“O cacau tem que ser um dos principais ingredientes. O açúcar não deve ser o primeiro ingrediente. Chocolate Bom, não tem aromatizante. Por uma coisa muito simples, se você usa um cacau bom, você não precisa de aromatizante [que serve para realçar o sabor e o aroma dos alimentos]”, orienta.

Esse cuidado é importante inclusive com os chocolates mais caros.

“Não tem como ter um chocolate bom e barato, mas não quer dizer que os chocolates caros sejam sempre bons. Às vezes é só marketing. Tem marcas muito chiques que você olha a lista de ingredientes e vê que não é ingrediente bom”.

Nutricionista do programa de Alimentação Saudável e Sustentável do Instituto de Defesa de Consumidores (Idec), Mariana Ribeiro reforça que o excesso de chocolate é prejudicial à saúde, ainda mais quando se trata de produtos ultraprocessados, que usam muitos aditivos, como espessantes, emulsificantes, corantes e aromatizantes.

“Essas substâncias aumentam a incidência de diabetes, obesidade e hipertensão”, alerta.

Ela também recomenda especial atenção ao rótulo porque, muitas vezes, as embalagens podem confundir o consumidor. Produtos sabor chocolate, por exemplo, costumam trazer essa informação sem destaque, em letras pequenas.

“Muitas vezes o produto está de acordo com as regras de rotulagem e informam que é sabor chocolate, ou sabor outra coisa. Mas, por outro lado, também vemos jogos de palavras, uma comunicação visual muito semelhante [ao chocolate real]. Isso pode levar o consumidor ao engano em relação às características daquele produto”, reforça.

A BBC News Brasil encontrou diversos produtos “sabor chocolate” vendidos na internet com comunicação pouco clara sobre a composição do produto.

O Choco Biscuit da Garoto, por exemplo, é vendido em sites de grades varejistas como “Biscoito + Chocolate”. Procurada, a Nestlé, dona da Garoto, não se pronunciou.

Propaganda online do Choco Biscuit mostra o prouto e a mensagem "Biscoito + Chocolate"
Propaganda online do Choco Biscuit da Garoto indica que o produto tem chocolate ao mesmo tempo em que diz “Sabor Chocolate” @ reprodução

O que diz a indústria do Chocolate?

Procurada pela reportagen, a Pandurata Alimentos, dona da Bauducco, diz que a mudança do Choco Biscuit para sabor chocolate buscou “equilibrar qualidade e acessibilidade”.

A empresa ressaltou que a alteração foi comunicada nas embalagens, conforme previsto na legislação.

“Em um contexto de pressão inflacionária, especialmente nos custos do cacau, a Pandurata Alimentos reforça sua responsabilidade de garantir o acesso ao seu portfólio”, disse a empresa.

“O estudo encomendado pela marca mostrou que, considerando todas as métricas avaliadas, a receita atingiu 99% de performance comparativa à receita original entre os consumidores habituais do produto”, afirmou ainda a dona da Bauducco.

A reportagem também entrou em contato com a Nestlé, dona da Garoto, e a Mondelez, dona da Lacta, mas não obteve retorno.

Já a Associação Brasileira da Indústria de Chocolates, Cacau, Amendoim, Balas e Derivados (Abicab) ressaltou em nota à reportagem que a indústria oferta uma variedade de produtos, com diferentes percentuais de cacau, para escolha do consumidor.

“A preferência nacional é o chocolate ao leite, mas os produtores têm feito composições com frutas, castanhas, amendoim, pistache. A Anvisa estabelece que um produto, para ser considerado chocolate, tenha, no mínimo 25%, de cacau. Mas, todas as indústrias oferecem produtos com mais intensidade de cacau e menos açúcar”, diz a nota.

“Ano passado, foram colocados 611 itens no mercado nessa época de Páscoa. 115 deles foram lançamentos. Gramaturas diferentes, barras, coelhinhos. A indústria se adapta ao gosto do consumidor e ao poder de compra de cada camada da população”, continuou a Abicab.

A associação também destacou que a Organização Internacional do Cacau (ICCO na sigla em inglês) concedeu ao chocolate brasileiro o certificado de 100% de aroma e sabor.

O certificado, porém, só atesta a qualiade do cacau fino exportado pelo Brasil, não analisando a qualidade do cacau produzido em larga escala.

Segundo publicação do governo brasileiro de 2022, apenas 3% da produção de cacau brasileira é do tipo fino.

Crédito: Mariana Schreiber / BBC News Brasil – @ disponível na internet 22/3/2025

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui