PEC contra contratação de servidores pela CLT ganha apoio de entidades e parlamentares

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Sindicatos e associações de classe criticam a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de que União, estados e municípios não são mais obrigados a adotar somente uma forma de contratação para seus servidores, denominada Regime Jurídico Único (RJU). Com isso, os governos poderão admitir funcionários tanto pelo regime estatutário, modalidade até então vigente e que garante estabilidade, quanto por outros regimes, como o celetista, utilizado no setor privado com base na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).

Em evento realizado na Câmara Federal em março, entidades e parlamentares se mobilizaram para debater o tema e fortalecer a coleta de assinaturas em apoio à Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que revoga a decisão do STF e reafirma o RJU na Constituição Federal. De autoria da deputada Luciene Cavalcante (Psol-SP), a PEC precisa de 172 assinaturas, ou seja, 1/3 dos 513 deputados da Casa para ser protocolada. A Liderança do PL na Câmara foi procurada, mas não deu retorno sobre o assunto.

A mudança, no entanto, só vale para futuros servidores e não altera a exigência de concursos, independentemente do regime adotado. Além disso, não se aplica a carreiras de Estado, isto é, que exercem atividades relacionadas ao Poder Estatal: fiscalização agrária, agropecuária, tributária e de relação de trabalho, arrecadação, finanças e controle, gestão pública, comércio exterior, segurança pública, diplomacia, advocacia pública, defensoria pública, regulação, política monetária, inteligência de Estado, planejamento e orçamento federal, magistratura e o Ministério Público, segundo o Fórum Nacional das Carreira Típicas de Estado (Fonacate).

Com excessão desses casos, a escolha de quais cargos poderão ser contratados sob novo regime compete ao Executivo e ao Legislativo. Ou seja, outros regimes poderão ser implementados, desde que haja uma lei específica aprovada em cada esfera governamental: no âmbito da União, terá de passar pelo Congresso Nacional; nos estados, pelas Assembleias Legislativas; e nos municípios, pelas Câmaras de Vereadores, para, então, começar a valer. Ainda assim, as decisões poderão ser questionadas judicialmente quanto a sua constitucionalidade.

Entenda a decisão

A flexibilização foi validada pelo STF em novembro de 2024, proposta pelo artigo 39 da Reforma Administrativa de 1998 (Emenda Constitucional 19), que havia sido suspenso por decisão judicial em 2007.

A Constituição exige que mudanças sejam feitas por meio de emendas, que precisam ser votadas duas vezes na Câmara e duas vezes no Senado, sendo aprovadas apenas se alcançarem três quintos dos votos em cada etapa. Em 1998, a Emenda Constitucional nº 19 alterou o artigo 39 da Constituição para permitir diferentes tipos de contratação no serviço público além do RJU — que, até então, tinha o regime estatutário como o mais instaurado. 

Durante a aprovação na Câmara, o texto da EC sofreu um ajuste de posição, mas o conteúdo aprovado em ambos os turnos permaneceu o mesmo — tipo de reorganização permitida pelo regimento interno do Congresso. No entanto, em 2007, o STF suspendeu os efeitos do artigo ao conceder liminar na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 2.135 — ajuizada pelos partidos PT, PDT e PCdoB —, concordando que o texto não teria sido aprovado corretamente.

Apenas em 2024, 17 anos depois, no julgamento da ADI, o tribunal revisou a decisão e confirmou que o processo legislativo foi válido, suspendendo a liminar e autorizando a retomada da contratação de servidores por outros regimes.

Impactos

O advogado Kayo Cesar Araújo, especialista em serviço público, esclarece que, inicialmente, os novos servidores não serão imediatamente afetados pela decisão. “Enquanto essas leis específicas não forem editadas, a situação permanece exatamente como hoje, sem alteração para os concursos públicos já previstos ou em andamento, cujos cargos continuarão sendo regidos pelo regime estatutário atualmente vigente.”

Para ele, a possibilidade de União, estados e municípios adotarem múltiplos regimes jurídicos terá como um dos principais impactos a flexibilização da própria gestão pública. “Por um lado, isso poderia facilitar contratações mais ágeis e menos custosas, especialmente em funções administrativas ou operacionais. Por outro lado, a coexistência de regimes poderá gerar desigualdades internas, na medida em que servidores que desempenham funções semelhantes poderão estar sujeitos a regimes, garantias e prerrogativas distintos.”

Kayo Cesar Araújo, advogado administrativista:
Kayo Cesar Araújo, advogado administrativista: “Regime estatutário e a estabilidade proporcionam proteção para o servidor exercer suas funções com eficiência e qualidade” (foto: Arquivo pessoal )

Outro impacto está relacionado à segurança jurídica para contratados sob o regime celetista: “Esses servidores estarão sujeitos a maior insegurança na continuidade do vínculo, o que poderia trazer consequências diretas sobre a continuidade e qualidade dos serviços públicos prestados. Além disso, poderá aumentar a judicialização de conflitos trabalhistas envolvendo servidores contratados pela CLT, impondo à administração pública novos custos e desafios jurídicos que hoje são menos frequentes no regime estatutário”, ressalta Kayo.

O especialista chama atenção, ainda, para a diferença entre RJU e regime estatutário: “A confusão é bastante frequente, porque, na prática, desde a edição da Constituição de 88, quase todos os entes públicos adotaram o regime estatutário como sendo seu regime jurídico único. Como resultado, durante décadas, a expressão ‘regime jurídico único’ acabou sendo usada popularmente como sinônimo do regime estatutário, gerando essa confusão conceitual.”

Entidades se organizam

Em discussão sobre o tema, a Frente Parlamentar Mista do Serviço Público promoveu, em março, na Câmara Federal, um seminário que reuniu parlamentares, especialistas e entidades para debater os efeitos da decisão do STF e seus impactos no serviço público brasileiro. Segundo entidades, a medida pode levar à precarização das condições de trabalho e à perda de direitos conquistados ao longo dos anos, como a estabilidade e a isonomia entre servidores. 

Seminário da Frente do Serviço Público, em 11 de março, na Câmara dos Deputados, contou com o secretário de Gestão de Pessoas do MGI, José Celso Cardoso
Seminário da Frente do Serviço Público, em 11 de março, na Câmara dos Deputados, contou com o secretário de Gestão de Pessoas do MGI, José Celso Cardoso (foto: Divulgação)

“A nossa luta é grande. É contestar uma decisão do Supremo que legalizou a terceirização. Porque, quando você flexibiliza, facilita novas portas de entrada no serviço público. E nós, os mais experientes, servidores federais, já vimos esse filme”, afirmou, na ocasião, a deputada federal Alice Portugal (PCdoB-BA), uma das coordenadoras da Frente. “Objetivamente, nós queremos que o RJU vigore na sua inteireza, para que nós possamos ter um serviço público organizado, a serviço da população e da soberania, e que, ao mesmo tempo, respeite os direitos de seus trabalhadores”, completou.

Ao final do seminário, foram aprovadas ações unificadas, sobretudo no âmbito jurídico. “Vamos embargar de todas as formas possíveis a decisão do STF, esperando o acórdão ser publicado, e estudar a entrada de outra medida para a contestação do mérito da constitucionalidade da Emenda 19, buscando, quem sabe, obter uma liminar que nos dê tempo de debate”, sintetizou Portugal.

Críticas

Mônica Carneiro, do Sindsep-DF:
Mônica Carneiro, do Sindsep-DF: “Essas pautas buscam reduzir o papel do Estado e abrir espaço para a privatização” (foto: Divulgação)

Para entidades, como o Sindicato dos Trabalhadores no Serviço Público Federal no Distrito Federal (Sindsep-DF), a decisão “representa um ataque frontal aos direitos dos trabalhadores do setor público e avança no desmonte do Estado brasileiro, facilitando a precarização das relações de trabalho e ampliando as portas para a privatização de serviços essenciais.”

Ao Correio, a diretora da Secretaria de Comunicação e Imprensa do Sindsep-DF, Mônica Carneiro, destaca que, nos últimos anos, medidas, como a Reforma Trabalhista e a Reforma da Previdência, vêm favorecendo o setor privado em detrimento do funcionalismo público, “buscando reduzir o papel do Estado e abrir espaço para a privatização de serviços essenciais.”

Artur Marques, da Afpesp, acredita que a retomada do julgamento pode estar relacionada ao avanço da PEC 32/20, em tramitação
Artur Marques, da Afpesp, acredita que a retomada do julgamento pode estar relacionada ao avanço da PEC 32/20, em tramitação (foto: Divulgação)

Artur Marques, presidente da Associação dos Funcionários Públicos do Estado de São Paulo (Afpesp), acredita que a retomada do julgamento pelo STF pode estar relacionada ao avanço, mesmo lento, da Reforma Administrativa (PEC 32/20) no Congresso e a ações semelhantes adotadas por estados e municípios.

Ele também defende que “a estabilidade dos estatutários impede que, nas mudanças de governo, programas e serviços relevantes sejam paralisados ou alterados para pior, e evitam que influências ideológicas e partidárias interfiram de modo danoso no atendimento à população.”

Posicionamento do MGI

O Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos (MGI), representado pelo secretário de Gestão de Pessoas, José Celso Cardoso Júnior, marcou presença on-line no seminário na Câmara e também manifestou preocupação com o tema. Segundo Cardoso, a permissão para coexistência de múltiplos regimes “abre um leque de fragilização da burocracia profissional no país, iniciado com a Constituição de 88 e consolidado pela Lei 8.112/1990.”

Ele alerta que estados e municípios tendem a buscar formas mais flexíveis e, em alguns casos, precárias de contratação, como vínculos temporários e terceirizados. “Essa pluralidade pode resultar em uma fragmentação da administração pública, afetando a remuneração, a representação sindical e a proteção social dos trabalhadores.”

O secretário também destacou que a possibilidade de criação de novos regimes por meio de leis infraconstitucionais pode acelerar o processo de mudanças no serviço público: “O risco é que cada um dos 5.570 municípios, os 26 estados e o Distrito Federal, além de cada Poder dentro dessas esferas, possam criar regimes próprios de contratação, resultando em um desmonte dos serviços públicos e da função pública no Brasil.”

Apesar de a decisão do STF ainda não ter sido publicada em acórdão final, o Ministério reforça que a segurança jurídica dos servidores deve ser preservada e que eventuais mudanças precisam ser amplamente discutidas.

Crédito: Marina Rodrigues / Correio Braziliense – @ disponível na internet 8/4/2025

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