Em novembro de 1977, o então secretário de Estado americano, Cyrus Vance, veio ao Brasil com uma missão complicada.
Por um lado, queria melhorar as relações do país com o Brasil, estremecidas pelas críticas feitas pelo governo de Jimmy Carter contra violações de direitos humanos praticadas pelas ditaduras latino-americanas.
Por outro, Vance tinha o objetivo de fazer o Brasil ceder e abrir mão de parte de seu programa nuclear.
À época, o Brasil tentava desenvolver seu programa nuclear por meio de um acordo com a Alemanha Ocidental, apelidado de “acordo do século”, e que era alvo de críticas dos Estados Unidos.
O encontro entre ele e o presidente Ernesto Geisel aconteceu no dia 22 de novembro de 1977, em Brasília, e não teria deixado grandes marcas, não fosse uma gafe diplomática que surpreendeu as autoridades brasileiras.
Ao sair do gabinete de Geisel, Vance deixou para trás uma pasta. Nela, estavam documentos elaborados pela equipe do secretário com a estratégia detalhada sobre como ele deveria pressionar Geisel em relação ao seu programa nuclear.
Antes de devolver a pasta aos americanos, os brasileiros, claro, fizeram cópia dos papéis.
Neles, ficava claro que parte da estratégia americana incluía jogar com a suposta rivalidade geopolítica entre Brasil e Argentina e pressionar aliados europeus para evitar que o Brasil obtivesse as tecnologias que estava buscando na época.
Esse e outros documentos fazem parte de um trabalho conduzido por dois pesquisadores brasileiros que abordam os motivos pelos quais, segundo eles, o programa nuclear brasileiro não foi bem-sucedido a exemplo do que ocorreu em outros países considerados como potências médias como a Coreia do Sul ou a Índia.
O artigo “Who’s to blame for the Brazilian nuclear program never coming of age?” (“De quem é a culpa pelo programa nuclear brasileiro nunca ter chegado à maioridade?”, em tradução livre) foi escrito pelo pelo professor de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Dawisson Belém Lopes, e pelo doutor em Ciência Política João Paulo Nicolini Gabriel.
O texto foi publicado pela revista científica Science and Public Policy, vinculada à Universidade Oxford, no Reino Unido.
Entre os elementos apontados pelo estudo, estão a pressa dos militares em adquirir tecnologia nuclear importada em vez de investir no desenvolvimento local nessa área e o isolamento do programa formulado pelos burocratas do governo e o restante da comunidade científica e empresarial brasileira.
Segundo os pesquisadores, o Brasil ainda se viu alvo de uma espécie de “armadilha” institucional que tenta impedir potências médias de atingirem patamares mais altos nas relações internacionais.
Apesar disso, eles avaliam que cair essa “armadilha” não era inevitável e que os governos dos anos 1970 e início da década de 1980 tomaram medidas que facilitaram essa queda.
Esses fatores, segundo eles, ajudam a explicar porque o Brasil, apesar de figurar entre dez maiores economias do mundo, não conseguiu dominar, em escala industrial, todas as etapas do ciclo nuclear para fins pacíficos.
Tensão entre Brasil e Estados Unidos
Para entender o que os documentos deixados para trás por Cyrus Vance significaram na época é preciso entender o contexto da tensão entre os Estados Unidos e o Brasil.
Em 1970, havia entrado em vigor o Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares (TNP).
À época, apenas cinco países já haviam sido capazes de produzir bombas nucleares: Estados Unidos, União Soviética, Reino Unido, França e China. Na prática, o tratado impedia que outros países buscassem deter essa tecnologia.
“O tratado faz uma divisão muito clara da ordem internacional entre um primeiro escalão, auto-intitulados guardiões da ordem internacional, e o resto. Entre os que têm armas nucleares e os que não têm”, disse à BBC News Brasil o professor Dawisson Belém Lopes.
Governado por militares de orientação nacionalista, o Brasil não assinou o tratado e continuou a desenvolver o seu programa nuclear.
“Se o Brasil assinasse o acordo nos anos 1970, o país estaria renunciando ao direito de se equiparar às grandes potências mundiais. E o Brasil tinha suas pretensões e aspirações legítimas de subir a escadaria das relações internacionais. [O raciocínio era que] se ele tivesse capacidade tecnológica de ponta que desse a prerrogativa de desenvolver armamentos nucleares, o Brasil teria mais poder de barganha”, complementou Lopes.
Desde então, o país passou a ser pressionado pelos Estados Unidos e outras potências como a União Soviética a restringir o seu programa, apesar de, oficialmente, o Brasil divulgar que ele tinha fins pacíficos.
Em meio às pressões norte-americanas, o Brasil anunciou, em 1975, um acordo nuclear com a Alemanha Ocidental.
Divulgado como o “acordo do século”, o plano era que, em parceria com os alemães, o Brasil construísse oito usinas nucleares em diversas partes do país e dominar, por meio da transferência de tecnologia, o ciclo completo do enriquecimento e reprocessamento do urânio, essencial para alimentar as usinas nucleares.
Os pesquisadores apontam que, nesta época, os americanos adotaram diversas manobras para prejudicar o programa nuclear brasileiro. Foi nesse contexto que Vance se encontrou com Geisel e deixou para trás a pasta com sua estratégia documentada.
“Na minha opinião, o documento que melhor mostra essa pressão é o documento que Cyrus Vance supostamente deixa no gabinete do Geisel”, afirma o professor João Paulo Nicolini Gabriel. O documento foi localizado pelos pesquisadores em meio a mais de dois mil documentos.
Em um determinado trecho, o documento diz que o principal elemento de pressão para que Geisel cedesse em relação ao programa brasileiro era o fato de os Estados Unidos já terem conversado com o governo argentino e que a ditadura vizinha teria se comprometido a abrir mão do seu projeto de implantar uma planta de reprocessamento de urânio se o Brasil também o fizesse.

Em outro trecho, o documento afirma que a ideia era fazer o governo brasileiro acreditar que o programa nuclear argentino estava mais avançado que o brasileiro e que, se não houvesse um acordo para parar os dois programas, a Argentina conseguiria atingir a capacidade de reprocessamento de urânio antes do Brasil.

Em outro trecho, o documento também aponta que os norte-americanos continuariam a tentar o apoio da França e da Alemanha para dissuadir o governo brasileiro.

Gabriel sintetiza o recado deixado pelos norte-americanos.
“(O documento dizia que) os Estados Unidos não querem uma corrida nuclear na América do Sul, os argentinos já estão prontos para negociar com a gente (Estados Unidos). Então ou vocês (Brasil) vão ficar isolados, vão virar um pária internacional e nós vamos, se não abdicarem (do programa nuclear), nós vamos fazer pressão na ONU para estigmatizar o Brasil e vocês também”, disse o professor à BBC News Brasil.
Outro documento mostrou como o governo brasileiro reagiu à pasta deixada para trás por Vance.
Trata-se de um memorando enviado pelo então ministro das Relações Exteriores, Azeredo da Silveira, ao presidente Geisel no qual avalia o conteúdo da estratégia norte-americana. O documento, enviado oito dias depois do encontro entre Geisel e Vance, analisa a estratégia descrita nos documentos norte-americanos. Na avaliação de Azeredo da Silveira, a estratégia dos Estados Unidos era “irresponsável”.
“Os EUA passam, agora, a lançar na mesa outras considerações e a fomentar problemas regionais, procurando desestabilizar o relacionamento entre os países latino-americanos, notadamente o Brasil e a Argentina. Essa atitude é totalmente irresponsável”, disse o diplomata no documento.

Pressionada pelos Estados Unidos, a Alemanha Ocidental recuou e não fez a prometida transferência tecnológica que o Brasil tanto desejava. Das oito usinas previstas no acordo com os alemães, apenas uma ficou pronta: Angra 2.
No total, o Brasil tem apenas duas usinas nucleares: Angra 1 (que usa um reator norte-americano) e Angra 2 (com tecnologia alemã). Angra 3 ainda está em construção.
Ainda nos anos 1970, em meio às pressões internacionais, militares brasileiros passaram a desenvolver programas paralelos e secretos relacionados à energia nuclear. O Exército tentou construir um reator para produção de plutônio. A Aeronáutica buscou usar o método laser para enriquecer urânio. E a Marinha perseguiu um submarino nuclear.
A existência dos poços de testes da Serra do Cachimbo, no Pará, era desconhecida do público e foi revelada pelo jornal Folha de São Paulo em 1986, durante o governo civil de José Sarney.
Apesar disso, segundo Gabriel, o Brasil só conseguiu produzir urânio enriquecido em nível industrial em 2006.
Ainda assim, o país ainda precisa de assistência de países europeus ou do Canadá para produzir o hexafluoreto de urânio, essencial para a fabricação de combustível nuclear.
As duas usinas nucleares do país são equipadas com reatores importados. Em 2021, foi necessário que o Brasil fizesse um acordo com o Cazaquistão para o fornecimento de urânio a ser usado nas duas unidades.
Sob o impacto da crise econômica do final dos anos 1970 e 1980 diante das dificuldades em obter a tecnologia dos alemães, os militares foram, paulatinamente, diminuindo o financiamento para o programa nuclear.
Em 1988, a Constituição Federal estabeleceu que o Brasil só poderia utilizar a energia nuclear para fins pacíficas, pavimentando o caminho para que o Brasil assinasse o TNP.
Dois anos mais tarde, o então presidente Fernando Collor de Melo, anunciou que o Brasil desistiria de experimentos envolvendo explosões nucleares, ainda que para fins pacíficos.
Em 1997, sob o comando de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), o país aderiu ao TNP.
O que deu errado?
Os pesquisadores afirmam que a pressão externa ajudou a prejudicar o programa nuclear brasileiro, mas dizem que foram elementos domésticos os principais fatores por trás do relativo fracasso dos planos da ditadura militar.
Os quatro principais foram: isolamento da chamada “nucleocracia” brasileira; opressão sobre a comunidade científica; salto de fases; e falta de realismo.
A “nucleocracia” é o termo usado para definir o grupo de burocratas escolhidos pelo governo militar para comandar o programa brasileiro.
O chamado “isolamento da nucleocracia” era, segundo os pesquisadores, a distância entre estes burocratas e o restante da comunidade científica, empresarial e de inovação.
“Não tinha uma parceria sustentada com o empresariado e com os cientistas brasileiros para que aquele programa todo fosse utilizado”, disse Gabriel.
A supressão à comunidade científica, segundo os pesquisadores, acentuou a desconexão entre o comando do programa nuclear e os cientistas brasileiros.
Segundo o artigo, “Geisel questionava o engajamento de cientistas, criticando o uso de verbas públicas para viajar”. Além disso, “o ceticismo da nucleocracia sobre o potencial dos centros universitários para ajudar o desenvolvimento nuclear foi exacerbado pela perseguição de cientistas por razões políticas”, diz o artigo.
O terceiro elemento, a pressa dos militares, segundo pesquisadores, fez com que o governo optasse pela estratégia de adquirir tecnologia estrangeira em vez de desenvolvê-la no Brasil.
“Essa ideia de pular etapas não deu tempo para que a comunidade acadêmica brasileira se adaptasse. Ela matou programas nacionais porque, ao invés de financiar estudos nacionais, como os que eram feitos aqui na UFMG, ou no IPEN (Instituto Nacional de Pesquisas Energéticas e Nucleares), preferiu-se dar todo o orçamento para a tecnologia alemã”, disse Gabriel.
Em último lugar, segundo os pesquisadores, está a falta de realismo do programa brasileiro. Um exemplo dessa falta de realismo, segundo os pesquisadores, foi subestimar as complexidades para que a Alemanha transferisse a tecnologia que os brasileiros buscavam.
“Desde o final da Segunda Guerra Mundial, a Alemanha não podia ter um programa nuclear com 100% de capital nacional. A empresa que forneceria essa tecnologia ao Brasil era alemã, holandesa e britânica. Quando ela entrou no acordo, os demais parceiros, por pressão, vetaram a transferência. Isso criou um problema gigantesco”, disse Gabriel.
Gabriel aponta que um dos elementos apontados no estudo publicado com Dawisson Belém Lopes indica não foram apenas interesses geopolíticos que teriam guiado a pressão norte-americana contra o projeto nuclear brasileiro.
“Os norte-americanos não queriam que o Brasil tivesse uma indústria bem consolidada porque eles queriam escoar a produção dos seus maquinários para o nosso país”, disse o pesquisador.

Armadilha?
Para Lopes e Gabriel, ao apostar suas fichas em seu programa nuclear, o Brasil se viu alvo do que a teoria chama de “armadilha de potência média”.
“Países como o Brasil, Indonésia ou Turquia geralmente têm aspirações de ascensão e querem revisar os termos da ordem internacional porque consideram que eles são injustos. Países como os Estados Unidos, por outro lado, têm interesse em manter as coisas como estão”, diz Lopes.
Para o professor da UFMG, neste contexto, o desejo brasileiro de adquirir tecnologia nuclear e desenvolver um programa nacional era não apenas uma ameaça comercial, mas geopolítica.
Lopes diz que um dos méritos do trabalho publicado recentemente foi mostrar que essa “armadilha” não era inevitável. Países como a Índia e a Coreia do Sul, por exemplo, seguiram um outro caminho, investiram no desenvolvimento de ciência e tecnologia nacional, e dominaram a energia nuclear. A Índia, por exemplo, é um dos países que conseguiu desenvolver bombas atômicas.
“Eu diria que a Coreia do Sul é um caso interessante porque o domínio dessa tecnologia não necessariamente vai dar em bomba atômica. Você pode desenvolver uma indústria nuclear doméstica robusta e vender energia, por exemplo”, disse o professor.
Segundo ele, apesar de alguns teóricos atribuírem o declínio do programa nuclear brasileiro aos governos brasileiros a partir dos anos 1980, naquela época, o “jogo” já teria sido jogado e as alternativas ao país eram mais restritas.
“Nos anos 1970, o Brasil tinha mais espaço para criar a sua a sua trajetória e encontrar uma forma de obter sua inserção no regime internacional”, disse o professor.
Artes por Caroline Souza, Equipe de Jornalismo Visual da BBC Brasil
Crédito: Leandro Prazeres / BBC News Brasil em Brasília – @ disponível na internet 12/4/2025