
A festa começou antes mesmo de a rendição incondicional da Alemanha entrar em vigor na noite de 8 de maio de 1945. Fogos de artifício iluminavam os céus, multidões lotavam as ruas e todo o comércio fechava as portas. Era como um “carnaval improvisado” no Rio de Janeiro, conforme definiu o jornal O Globo na edição daquela terça-feira.
A Segunda Guerra Mundial estava encerrada na Europa, onde o “Dia da Vitória” inspirou comemorações efusivas nas principais cidades dos Aliados. Mas a euforia popular que se irrompeu também na então capital federal pela capitulação alemã indicava o grau de envolvimento do Brasil no maior conflito bélico da história da humanidade.
Nas rédeas da ditadura do Estado Novo de Getúlio Vargas, o país enviou uma Força Expedicionária Brasileira (FEB) com mais de 25 mil homens para lutar contra o nazifascismo na Itália. Mal treinada e sem acesso ao armamento mais avançado da época, a divisão apelidada de “Cobras Fumantes” enfrentou quase 500 baixas, mas cumpriu todas as missões a que lhes foram atribuídas.
“Houve altos e baixos, mas a resultante líquida é de que a FEB foi um sucesso”, afirma o professor Sênior do Mestrado Profissional em História da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Dennison de Oliveira. “Isso garante ao Brasil um papel muito importante na fundação da Organização das Nações Unidas em 1948.”

Os combatentes brasileiros ficaram conhecidos pelo epíteto de pracinha. No geral, eles eram operários, funcionários públicos, atendentes de comércio, entre outras profissões urbanas – um contraste ante uma população ainda majoritariamente rural.
As classes mais ricas da sociedade mobilizaram favores para evitar o recrutamento, revela o professor Francisco Cesar Ferraz, do Departamento de História da Universidade Estadual de Londrina (UEL), autor do livro Os Brasileiros e a Segunda Guerra Mundial. “Os recrutados foram aqueles que não tinham nenhum tipo de apadrinhamento”, afirma.
Brasileiro nos dois lados da guerra
Do lado oposto, centenas de brasileiros descendentes de alemães também se juntaram às fileiras do exército nazista para lutar pela Alemanha. A lei alemã define a cidadania com base na ascendência. “Isso garantiu que todos aqueles nascidos em território brasileiro que moravam na Alemanha na época do nazismo tenham sido sim recrutados pelo serviço militar”, explica Oliveira.
Não há números precisos disponíveis, mas as estimativas mais aceitas sugerem que cerca de 800 brasileiros foram alistados na defesa alemã, segundo o professor. Muitos deles tentaram escapar da obrigação, sem sucesso.
O cenário contrapôs brasileiros nos dois lados da guerra, depois que Vargas se viu obrigado a abandonar a postura de neutralidade que manteve desde as primeiras batalhas na Europa. No final da década de 30, a Alemanha havia se firmado como um dos principais parceiros comerciais do Brasil, após uma sequência de crescimento vertiginoso no intercâmbio entre as duas economias.
Em 1932, o país europeu respondia por quase 9% das exportações brasileiras, proporção que saltou para 19,06% em 1938, de acordo com dados históricos do Serviço de Estatística Econômica e Financeira, disponíveis na biblioteca do Ministério da Fazenda. A participação dos EUA, por sua vez, declinou de 45% para 34% no período.
Havia ainda considerações de ordem ideológica. O debate sobre o alcance da aproximação de Vargas com o fascismo é ativo até hoje, mas o Estado Novo emulou vários dos fatores políticos que sustentaram os governos totalitaristas, entre eles o culto à personalidade do líder e o nacionalismo ufanista.
O chefe da polícia do regime, Filinto Müller, chegou a viajar à Alemanha nazista para se encontrar com o homólogo alemão à época, Heinrich Himmler, em 1937. Ele também foi um dos artífices da deportação da militante comunista Olga Benário Prestes para o Reich, onde, grávida, foi presa pela Gestapo e executada em um campo de extermínio.
“Enquanto o nazismo e o fascismo tinham algum prestígio, Vargas pegava carona nessa onda, fazendo uma emulação bastante frequente dos ideais e dos valores da mística fascista”, explica Oliveira. “Só que isso não dura para sempre.”
Blefe de Vargas
No começo da década de 40, Vargas indica a possibilidade de construção de uma siderúrgica com apoio dos alemães. Preocupado com o aceno, o então presidente dos EUA, Franklin D. Roosevelt, acerta o financiamento da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), em Volta Redonda, no Rio de Janeiro.

Em troca, Vargas permite a construção de bases americanas no Norte e Nordeste do Brasil, região estratégica para abastecimento de voos em direção ao norte da África. Natal, no Rio Grande do Norte, se torna o principal interposto dessa rota.
“O bloqueio naval britânico jamais permitiria à Alemanha vender qualquer coisa no Brasil, muito menos uma imensa usina siderúrgica, mas foi um blefe do Vargas que deu muito certo”, destaca Oliveira.
A postura ambígua em relação à guerra manteve a neutralidade de pé até 1942, quando o então ministro da Aeronáutica, Joaquim Pedro Salgado Filho, diz à imprensa que a Força Aérea Brasileira teria abatido submarinos alemães no Atlântico. Em represália, os nazistas deflagram o torpedeamento de navios brasileiros, em uma ofensiva que deixou mais de 600 mortos.
A cena dos naufrágios tem um impacto irreversível sobre a opinião pública. Em vários dos ataques, os corpos das vítimas eram levados pela maré às praias do Nordeste brasileiro. Um clima nacional de comoção se transforma em uma onda de ódio à Alemanha.
“É essa imensa pressão popular que leva o governo Vargas, muito a contragosto, a finalmente fazer o Brasil formalmente entrar na Segunda Guerra Mundial ao declarar guerra ao Eixo”, destaca Oliveira.

“Mais fácil uma cobra fumar”
Do anúncio de um “estado de beligerância”, em 22 de agosto de 1942, dois anos se passaram até que as primeiras tropas brasileiras desembarcassem na Europa. A demora cobriu a campanha de uma atmosfera de desconfiança popular, sintetizada por uma frase que circulava como troça pelo país: “mais fácil uma cobra fumar do que o Brasil ir à guerra”.
A piada deu origem ao lema que marcaria as operações dos “Cobras Fumantes” no norte da Itália. Os Aliados enfrentavam uma crise de efetivos e precisavam de reforços na região, para que pudessem aplicar força máxima no propósito prioritário de liberar a França.
A introdução da FEB ao teatro de guerra acontece em setembro de 1944, em batalhas relativamente secundárias. A missão mais decisiva e emblemática começaria dois meses depois, na ofensiva pela tomada do Monte Castello.
O objetivo principal era ajudar a liberar o acesso dos americanos à cidade de Bolonha. Para isso, seria necessário conquistar o controle da cordilheira às margens da principal rodovia local, que estava sob domínio dos alemães.
Nas primeiras quatro tentativas, o esforço brasileiro fracassou. A coordenação com a 10ª Divisão de Montanha era frágil e as forças nazistas aplicavam intensa resistência.
Foi só em fevereiro de 1945 que, em conjunto com a 10ª Divisão de Montanha dos Estados Unidos, a FEB finalmente conseguiu cumprir a missão de Monte Castello. “O triunfo no combate teve a importância de provar que os brasileiros eram capazes de ter sucesso”, destaca Ferraz.

FEB força rendição de 20 mil soldados nazifascistas
Após romper linhas de resistência do eixo, os Aliados perseguiam os alemães em direção à Áustria, quando descobriram que um grupo de tropas do eixo haviam ficado para trás, na região de Fornovo di Taro. Eram duas divisões italianas e uma alemã, que representavam risco significativo à retaguarda americana.
“Quem poderia evitar o vexame do planejamento americano que desconsiderou o exército da Ligúria? É aí que eles lembram que os brasileiros poderiam fazer isso”, conta Oliveira.
Os cerca de três mil homens da FEB remanescentes, então, recebem uma tarefa hercúlea: contornar a superioridade numérica dos nazifascistas e forçar a rendição de 20 mil soldados inimigos. No fim, a operação foi um sucesso. “É um grande triunfo brasileiro”, define o historiador.
A vitória empresta ao Brasil um inédito prestígio no tabuleiro da geopolítica da época. A FEB, inclusive, foi convidada para participar da subsequente ocupação da Áustria, mas esbarrou em questões políticas.
O general Eurico Gaspar Dutra temia que a popularidade da força expedicionária engrossasse o apoio a Vargas, que já enfrentava pressão para acabar com a ditadura do Estado Novo e convocar eleições. Assim, Dutra dissolve a FEB e encerra a participação brasileira nos esforços de guerra europeus.
Para Oliveira, o legado da campanha brasileira teria sido ainda mais expressivo se o país tivesse continuado na Europa. Os países que ocuparam a Áustria (França, Reino Unido, Estado Unidos e União Soviética) ficaram com os assentos permanentes no Conselho de Segurança da ONU, além da China. “Mas mesmo sem ter tropa de ocupação no pós-guerra, a ação da FEB garantiu ao Brasil um imenso prestígio internacional”, avalia.
Progressivo esquecimento dos pracinhas
Na volta ao Brasil, os veteranos enfrentaram várias dificuldades para se reintegrar à sociedade após o trauma da guerra, principalmente pracinhas que não eram militares de carreira. Os soldados incapacitados ganharam direito a uma compensação financeira, mas muitos esbarravam em burocracia. O restante da força tinha problemas para garantir trabalho e lidar com a saúde mental.
Parte dos veteranos buscou se reunir em associações de ex-combatentes para reivindicar demandas. No entanto, o turbulento cenário político do Brasil nas décadas seguintes atrapalhou o processo. “Houve um progressivo esquecimento dessa memória dos brasileiros que lutaram contra o nazifascimo na Itália”, diz Ferraz.
Já os brasileiros de ascendência alemã que lutaram por Hitler esconderam a associação com o exército nazista, com medo da repressão e hostilidade contra elementos ligados à Alemanha no pós-guerra. Só no final do século 20, já após a queda do Muro de Berlim, que os primeiros desse contingente aceitaram conversar com o historiador Dennison de Oliveira, autor do livro Os Soldados Brasileiros de Hitler.