Reclamar o tempo inteiro pode ameaçar a saúde; entenda motivos e como superar essa mania
É normal se queixar de uma coisa ou outra, mas quando isso vira um padrão de comportamento, é preciso acender um sinal de alerta
Reclamar é humano. De vez em quando, todo mundo solta um desabafo sobre o trânsito caótico, a fila do supermercado ou aquele colega que não colabora no trabalho. Mais do que natural, esse tipo de queixa pode ser útil, especialmente quando expressa uma necessidade real ou um descontentamento que precisa ser discutido.
Em um primeiro momento, a sensação de “colocar para fora” ou desabafar pode gerar um alívio momentâneo. De acordo com Thaís Gameiro, neurocientista pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e sócia da consultoria Nêmesis, isso ocorre porque verbalizar a frustração e compartilhá-la com outras pessoas é uma estratégia de alívio do estresse, que diminui temporariamente a tensão acumulada. “Entretanto, a reclamação pode se tornar um mau hábito e não resolver a causa raiz do desconforto. É como colocar um curativo em uma ferida que precisa de pontos”, alerta.
“Reclamar está ligado à percepção das nossas próprias necessidades”, explica o psicólogo Anderson Siqueira Pereira, doutor pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). “Pode ser válido quando usamos essa verbalização para mobilizar ajuda, comunicar um problema ou refletir sobre uma insatisfação. Mas, se a reclamação for o único movimento que fazemos, sem ação ou busca por soluções, ela pode aumentar a sensação de desamparo e paralisar diante das dificuldades”, diferencia.
Sinais de que a reclamação passou do ponto
Por isso, é preciso atenção para que a reclamação ocasional não se torne um comportamento recorrente e nocivo. Para Pereira, vale observar a forma como se demonstra vulnerabilidade. “A reclamação genuína vem de uma postura de vulnerabilidade que quer a resolução do problema. Dessa forma, a pessoa irá aceitar ajuda e acolhimento. Por outro lado, o reclamador disfuncional não busca ser ajudado ou acolhido, ele apenas quer se queixar e receber atenção, mas não consegue se satisfazer ou ir atrás da resolução do problema”, descreve.
Há ainda casos em que a reclamação pode ser um sintoma de um problema de saúde mental, como depressão ou ansiedade. Assim, a tendência é notar uma melhora depois de investir no tratamento da condição de base. Ou pode ser um padrão comportamental ou de personalidade mais profundo, onde a pessoa já reclama habitualmente. “Essa diferenciação requer uma avaliação profissional”, recomenda o psiquiatra Rodrigo Menezes Machado, pesquisador do Ambulatório Integrado dos Transtornos do Impulso (PRO-AMITI) do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (IPq-HCFMUSP).
Os riscos de reclamar demais
De qualquer forma, é importante ter conhecimento de que, quando reclamamos, nosso cérebro ativa circuitos neurais relacionados à experiência de estresse e demais emoções negativas. “Há uma orquestra complexa de neurotransmissores em jogo, mas a reclamação, especialmente se muito frequente, pode liberar cortisol (conhecido como hormônio do estresse) e noradrenalina, preparando o corpo para uma resposta de defesa”, ensina Thaís.
Ela explica que a reclamação crônica é como manter o cérebro em constante estado de alerta, podendo levar a uma série de efeitos nocivos, como:
- Danos aos neurônios
- Hiperativação da amígdala (relacionada à resposta emocional defensiva)
- Atrofia de áreas cerebrais como hipocampo (importante para a memória) e córtex pré-frontal (essencial para funções cognitivas e executivas como autocontrole, planejamento, resolução de problemas e foco atencional).
“Isso significa que, em longo prazo, esse cérebro fica mais vulnerável ao adoecimento, abrindo oportunidade para o desenvolvimento de transtornos emocionais, bem como outras doenças neurodegenerativas”, ressalta a especialista.
Thaís elenca alguns possíveis impactos da reclamação constante no dia dia:
- Atenção: Ao focar no negativo, desviamos a atenção de soluções e oportunidades. Nossa capacidade de concentração diminui, pois o cérebro está constantemente em modo de “problema”.
- Memória: O estresse crônico dificulta tanto a formação de novas memórias quanto a recuperação de informações existentes. Ficamos mais propensos a lembrar de experiências negativas e a negligenciar as positivas.
- Tomada de decisão: Com o córtex pré-frontal comprometido, nossa capacidade de analisar racionalmente situações, ponderar opções e tomar decisões eficazes é seriamente prejudicada. Tendemos a fazer escolhas mais impulsivas e menos estratégicas.
Reclamar pode ser contagioso
O reclamão é o outro? Pois conviver com indivíduos assim também tem potencial de impactar o funcionamento do nosso próprio cérebro. O motivo está em um fenômeno chamado contágio emocional. “Quando ouvimos e convivemos com pessoas que reclamam o tempo todo, somos contagiados por essas emoções negativas, devido ao nosso sistema de neurônios-espelho, que literalmente simula em nosso cérebro o comportamento observado”, diz Thaís.
Segundo a especialista, isso pode nos deixar mais pesados, desanimados e até “sugados”, já que o cérebro começa a espelhar os padrões emocionais da reclamação, tornando-nos mais propensos a agir da mesma forma.
“Além disso, a convivência constante com pessoas que reclamam pode normalizar esse hábito, tornando-o mais aceitável e frequente em nosso próprio repertório comportamental”, afirma a neurocientista.
Reprogramando o cérebro
A boa notícia é que o cérebro pode aprender a focar no que funciona – e não só no que incomoda. “O cérebro é plástico. Ele aprende o que praticamos com frequência. Se alimentamos o padrão de queixa, ele se fortalece. Mas se treinamos uma atitude mais otimista, conseguimos criar novas rotas neurais e transformar esse padrão”, ressalta Thaís.
Algumas práticas que podem ajudar nesse processo:
- Gratidão diária: Praticar a gratidão, mesmo por pequenas coisas, ativa o circuito de recompensa do cérebro, liberando dopamina e serotonina, neurotransmissores associados ao prazer e ao bem-estar.
- Mindfulness e meditação: Essas práticas ensinam o cérebro a observar os pensamentos e emoções sem julgamento, diminuindo a reatividade e o foco no negativo. A meditação regular fortalece o córtex pré-frontal, importante para fortalecer nosso autocontrole emocional.
- Reestruturação cognitiva: Antes de entrar no looping dos pensamentos negativos automáticos (PNAs), procure responder perguntas como: isso é realmente relevante? Preciso reclamar dessa situação? Posso olhar a situação por uma outra perspectiva? O que um amigo me diria? Existe algum aspecto positivo que possa ancorar meu pensamento?
- Foco na solução: Em vez de focar no problema, direcione sua energia mental para buscar soluções. Isso ativa áreas do cérebro relacionadas ao planejamento e à ação.
- Contato com pessoas positivas: Buscar convívio com pessoas que têm uma visão mais otimista da vida pode ser uma forma de ‘contaminar-se’ positivamente e mudar o repertório emocional.
- Reconheça seu papel: Reflita sobre como você pode estar contribuindo para as situações que te incomodam.
- Mude a perspectiva: Tente ver a situação pelos olhos de outra pessoa ou pense em como você aconselharia um amigo com a mesma queixa.
- Terapia: Especialmente nos casos em que a reclamação está ligada a quadros de ansiedade ou depressão, o acompanhamento psicológico é fundamental para entender as causas do sofrimento e aprender estratégias de enfrentamento.
Crédito: Isabella Abreu / O Estado de São Paulo – @ disponível na internet 31/5/2025