Lavagem digital: fintechs movimentaram R$ 28 bi de facções criminosas em 6 anos, segundo investigações

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Economia digital vem abrindo brechas para lavagem de dinheiro — Foto: Dataside tecnologia

Empresas de ‘inovação tecnológica’ operavam a serviço de pessoas ligadas ao Primeiro Comando da Capital (PCC) e ao Comando Vermelho (CV)

“O futuro é agora”, anuncia nas redes sociais uma fintech de Mogi das Cruzes (SP), em uma sequência de posts com imagens criadas por inteligência artificial (IA) que mostram jovens enriquecendo enquanto teclam no celular.

Outras duas instituições de pagamento da capital paulista e de Campinas (SP) prometem “liberdade” e o “avanço para o futuro”. “Restrições bancárias e bloqueios judiciais tiram o seu sono? Conheça a conta garantida e retome o controle”, propaga a primeira. “Seja digital, seja atual”, reforça a segunda.

Essas três são parte de um grupo de fintechs que entrou na mira das autoridades nos últimos meses por suspeita de lavar dinheiro do crime e tiveram operações suspensas pela Justiça.

Segundo as investigações, as empresas de “inovação tecnológica” operavam a serviço de pessoas ligadas ao Primeiro Comando da Capital (PCC) e ao Comando Vermelho (CV), as duas maiores facções criminosas do país.

Com muitas startups financeiras fora do radar dos órgãos de controle, o fenômeno da “fintechização” chegou ao submundo do crime. De acordo com as investigações, cerca de R$ 28,2 bilhões de recursos oriundos de supostos esquemas do tráfico de drogas e armas foram movimentados nos últimos seis anos por meio de oito dessas instituições de pagamento e bancos digitais, que oferecem todo o tipo de produto financeiro, de transferências de recursos a compra e venda de criptomoedas.

 
Fintechs estão substituindo doleiros. São paraísos fiscais” — Fábio Bechara, promotor do Ministério Público de São Paulo 
 

O valor foi levantado pelo GLOBO com base em mais de 3 mil páginas de relatórios e denúncias de seis operações da Polícia Federal, Polícia Civil de São Paulo e Rio e do Ministério Público. O montante corresponde a mais da metade do orçamento da Prefeitura do Rio (R$ 46 bilhões) e supera o de Belo Horizonte (R$ 22,6 bilhões) para 2025.

As mais de 1.500 fintechs em operação no Brasil ampliaram o acesso da população a serviços bancários ao proporcionar maior competição no setor financeiro com soluções tecnológicas, menos burocracia e taxas mais baixas. Essa mesma infraestrutura, no entanto, também passou a ser explorada por organizações criminosas, que se aproveitam da regulamentação limitada do segmento, de acordo com investigadores e especialistas.

— Algumas fintechs estão substituindo os doleiros. Por que o criminoso vai correr o risco de ser assaltado, de alguém não pagar o dólar-cabo (compensação ilegal da moeda), se pode usar essas ferramentas? São como paraísos fiscais — diz o promotor Fábio Bechara, do MP de São Paulo, responsável por denúncias de fintechs usadas pelo PCC.

Como funciona o esquema — Foto: Editoria de Arte
Como funciona o esquema — Foto: Editoria de Arte

Em nota, o Banco Central (BC) informa que faz um trabalho constante de supervisão das instituições e vem aperfeiçoando a regulação para prevenir a ação de criminosos.

Fundada em 2019 com o slogan o “primeiro banco cripto” do Brasil, a 4tbank está oficialmente no nome de uma jovem de 24 anos que, segundo a Polícia Civil de São Paulo, movimentou meio bilhão de reais em quatro anos, sendo R$ 80 milhões em espécie.

Apesar de a jovem ser o rosto público da instituição, o verdadeiro “CEO” da empresa era o padrasto dela, João Gabriel de Mello Yamawaki. Conforme as investigações, ele estava em vias de ser “batizado” no PCC e indicado a uma função na operação financeira da facção.

Yamawaki está foragido. A defesa reconheceu que ele é o chefe da empresa, mas negou vinculo com o PCC. “Ele refuta que seria batizado por organização criminosa”, escreveu o advogado André Jardim de Siqueira Branco.

R$ 6 bilhões por 15 países

O fluxo de dinheiro por meio da fintech era tamanho, segundo a polícia, que propiciou algo impensável na guerra de pontos e rotas de tráfico entre as facções brasileiras. Em abril, a Polícia Civil do Rio descobriu que o CV também usava o “banco cripto” para movimentar dinheiro sujo. Nas palavras dos investigadores, era uma “aliança estratégica e logística” entre PCC e CV, que compartilhavam o esquema de lavagem de dinheiro.

— É um negócio altamente vantajoso. Melhor que arrumar “laranjas” e milhares de contas. Você abre o próprio banco digital, que te permite comprar criptoativos e movimentar dinheiro no mundo todo — explica o promotor Lincoln Gakyia, que investiga o PCC há mais de 20 anos.

Advogado da 4tbank, André Marques Martins nega relação da empresa com o PCC:

— A gente tem como demonstrar a origem desse recurso. Não havia movimentação do PCC nessas subcontas.

É altamente vantajoso. Melhor que ‘laranjas’. Você abre um banco digital, compra cripto e movimenta dinheiro no mundo todo” — Lincoln Gakyia, promotor do Ministério Público de São Paulo

Outra empresa, fundada em 2020, a 2GO Instituição de Pagamento foi acusada pela promotoria de integrar um “sistema bancário ilegal” que lavou cerca de R$ 6 bilhões em transações que passaram por pelo menos 15 países. A fintech fornecia aos clientes USDT, moeda digital espelhada no valor do dólar, recebendo montantes em reais de empresas de fachada em nome de laranjas ou investigados por roubo, tráfico e fraudes digitais.

A instituição ainda foi citada em relatório do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) por transações da ordem de US$ 80 milhões com contas digitais sancionadas pelo governo de Israel.

A defesa de Cyllas Salerno Júnior, ex-CEO e sócio administrador da 2GO, afirmou em nota que as acusações contra a empresa “são infundadas, desprovidas de respaldo técnico-jurídico e lastreadas, em grande medida, em ilações sem provas concretas”. A nota diz ainda que não houve “qualquer atuação ilícita por parte da empresa ou de seus representantes legais”.

Segundo promotores, com dificuldades para receber o pagamento por toneladas de cocaína remetidas mensalmente à Europa, o PCC aprendeu com as máfias estrangeiras a recorrer à tecnologia para movimentar os recursos ilícitos.

Bitcoin no tráfico

Em 2018, um traficante brasileiro foi pego em uma interceptação telefônica na Itália recusando-se a ser pago em bitcoin por uma carga de cocaína, conta o professor italiano Antonio Nicaso, da Universidade Queens, no Canadá, e autor do livro “Máfia Global: a nova ordem mundial do crime organizado”:

— O PCC e a ‘Ndrangheta (máfia do sul da Itália) estão cada vez mais conscientes das novas tecnologias. Investiram em criptomoedas e plataformas clandestinas de trading. No caso da ‘Ndrangheta, também houve o uso de hackers.

Segundo as investigações, os criminosos utilizam diferentes métodos para lavar dinheiro por meio das fintechs. Um deles é o fracionamento de transações, ou seja, dividir grandes quantias em pequenas operações para evitar alertas de movimentações suspeitas. Isso pode ser feito por meio de carteiras digitais e contas bancárias virtuais.

As facções também usam fintechs para converter dinheiro ilícito em criptomoedas, dificultando o rastreamento. Também abrem contas de “laranjas” e empresas de fachada para movimentar grandes volumes sem levantar suspeitas.

Os investigadores apontam ainda a atuação com empréstimos fraudulentos. Os criminosos solicitam financiamentos em fintechs com documentos falsos e quitam a dívida com recurso ilegal, criando uma justificativa legítima para a transação.

‘Contas bolsão’ são usadas para blindar patrimônio e titulares

Além da facilidade para movimentar o dinheiro fora do sistema tradicional, um inquérito da Polícia Federal mostra que fintechs também viraram instrumento de blindagem patrimonial de recursos. Suspensas judicialmente, a T10 Tecnologia e a I9Pay permitiam desvincular de contas os seus reais titulares, conferindo uma espécie de proteção contra bloqueios judiciais, quebras de sigilo e rastreamento de movimentações.

A blindagem funciona por meio das chamadas “contas bolsão”, segundo as investigações. As fintechs apareciam como titulares de uma conta de pessoa jurídica em um banco credenciado pelo BC. A partir dessa conta, a fintech opera diversas subcontas em nome de clientes finais, que não têm nenhum vínculo com o banco oficial.

Dessa forma, não são alcançados pelas autoridades. A partir da fintech, esses usuários remetem ou recebem dinheiro pelo banco de grande porte, que debita ou credita os valores na conta bolsão. No extrato das transações, no entanto, os destinatários e remetentes não aparecem.

— A dimensão do problema é gigantesca, uma vez que viabiliza a ocultação e dissimulação de valores provenientes do crime dentro do próprio sistema financeiro oficial. As investigações apontaram que não há um controle por parte das instituições financeiras sobre os clientes das fintechs — afirmou o delegado da PF André Ribeiro, responsável por operações sobre fintechs.

Financeiras negam

A defesa da T10 afirmou que “jamais compactuou com nenhum ilícito” e sempre atendeu os requisitos impostos pelo BC. Os advogados da I9Pay, por sua vez, disseram que a fintech “jamais foi vinculada, direta ou indiretamente, a facções criminosas ou a atividades ilícitas” e que sempre “se pautou pela legalidade, transparência e estrito cumprimento das normas do sistema financeiro nacional”.

Fintech é um termo amplo: inclui empresas que oferecem serviços financeiros usando tecnologia — e nem todas elas realizam atividades que exigem autorização do BC. Mesmo com a fiscalização reduzida em cima do segmento, dados oficiais já indicam a infiltração do crime no segmento.

O Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) recebeu neste ano, segundo dados obtidos via Lei de Acesso à Informação, um volume recorde de comunicações de operações suspeitas envolvendo “arranjos e instituições de pagamento”, categoria das fintechs. Até junho de 2025, foram 85.829 comunicações, o que já superou o ano todo de 2024 (80.955) e equivale a mais do que o dobro de 2022 (36.221) e 2023 (34.024). Há dez anos, esse indicador havia registrado somente 45 comunicações.

Crédito: Eduardo Gonçalves, Thaís Barcellos  e Sarah Teófilo / O  Globo – @ disponível na internet 4/8/2025

 

 

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