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Os riscos da reforma administrativa

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Foco não deveria ser a busca de estratégias malandras de redução da dimensão do setor público, como preconizam os arautos do Estado mínimo
 

O tema da Reforma Administrativa é bastante recorrente no debate nacional a respeito da definição de rumos estratégicos para nosso País. No entanto, a exemplo do que ocorre com a Reforma da Previdência, a discussão sobre alterações na ordem institucional da Administração Pública vem quase sempre camuflada de orientações que buscam estabelecer os rumos das mudanças a partir de uma abordagem conservadora e neoliberal da questão.

O debate previdenciário já recebeu algumas alterações substantivas no ordenamento ao longo das últimas três décadas. No entanto, em todos os processos que envolveram emendas constitucionais a lógica sempre foi a redução de direitos e a diminuição de despesas. Assim foi com a aprovação da Emenda Constitucional (EC) nº 20/1998 de Fernando Henrique Cardoso (FHC), da EC nº 41/2003 de Lula e da EC nº 103/2019 de Bolsonaro.

No caso da Reforma Administrativa, o exemplo mais recente foi o debate em trono da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) nº 32/2020. A proposta foi encaminhada ao Congresso Nacional durante a gestão de Jair Bolsonaro, a partir de um material preparado pelo super Ministro da Economia à época, Paulo Guedes. O banqueiro tinha um diagnóstico absolutamente ortodoxo e liberaloide da questão do estado. Assim sua intenção era, por exemplo, privatizar 100% das empresas estatais federais e levar a ferro e fogo as regras fiscais draconianas previstas nos dispositivos do Teto de Gastos, promulgado na gestão de Michel Temer em 2016.

Reforma Administrativa: não ao Estado mínimo e à demissão de servidores

A PEC de Bolsonaro ficou quase um ano tramitando no interior da Câmara dos Deputados, mas enfrentou muitas resistências da parte das entidades representativas dos servidores públicos, de especialistas na questão da organização estatal e dos políticos que não concordavam com a destruição do Estado brasileiro implícita no texto. A partir de movimentos amplos em defesa da importância de políticas públicas, como o “Que Estado queremos?”, entidades como a ANESP (associação de minha carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental) e outras conseguimos mobilizar um amplo arco de alianças contra a proposta bolsonarista. A rejeição foi de tal ordem que a proposta nem chegou a ser submetida a votação no plenário da Câmara dos Deputados, casa em que a tramitação teve início. Apenas a Comissão Especial especialmente constituída aprovou um relatório, o material foi publicado em 23 de setembro de 2021 e está engavetado desde então.

A retórica encamada pela maior parte de nossas elites a respeito do Estado insiste na denúncia de um suposto gigantismo da estrutura estatal e também de um suposto gasto excessivo com pessoal. Desta forma, o foco dos sucessivo a respeito da Reforma Administrativa concentra-se na necessidade de demissão de servidores públicos, por meio do fim da estabilidade a eles assegurada pela Constituição Federal. Além disso, a abordagem conservadora mira naquilo que considera equivocadamente como “excesso de funcionários” e nos ganhos supostamente elevados dos mesmos. Como consequência, as propostas geralmente transitam por essa trilha de menos Estado, menos servidores e menores salários.

Passados 4 anos desde a paralisação da votação da PEC 32, o atual Presidente da Câmara dos Deputados, Hugo Motta (REP/PB), anunciou a criação de um Grupo de Trabalho (GT) especialmente constituído para tratar do tema. Em 21 de maio passado, o GT foi instalado com a participação de 19 integrantes e com um prazo de 45 dias para conclusão de seus trabalhos. No entanto, ao contrário da situação anterior, o Poder Executivo não apresentou até o momento nenhuma proposta a esse respeito. Isto significa que os parlamentares contam com maior grau de liberdade para organizarem seus trabalhos e para elaborar as eventuais propostas.

Precisamos de um Estado mais eficiente e mais presente

De acordo com as declarações iniciais do coordenador do GT, deputado federal Pedro Paulo (PSD/RJ), a intenção é que os trabalhos apontem para elaboração de 3 peças legislativas: i) uma Proposta de Emenda Constitucional; ii) um Projeto de Lei Complementar; e, iii) um Projeto de Lei Ordinária. Durante as primeiras audiências organizadas pelo GT, manteve-se a mesma dinâmica dos processos anteriores. De um lado, setores vinculados às elites dominantes de nosso País, renovando seus desejos de redução da dimensão do Estado e identificando os salários e a estabilidade dos servidores como o foco prioritário de seu combate liberalizante.  De outro, representantes das entidades dos funcionários e pesquisadores/professores/estudiosos do tema apontando para os riscos de tais medidas extremistas e sugerindo medidas de natureza diversa para aumentar a eficiência da ação estatal na defesa dos interesses da maioria da população.

A titular do Ministério da Gestão e Inovação em Serviços Públicos (MGI), Esther Dweck, foi uma das convidadas pelo GT. Durante audiência, ela enumerou um conjunto de 38 medidas que já vêm sendo implementadas pelo governo a título de uma “reforma administrativa”. Elas compõem uma agenda de transformação do Estado. Segundo ela, a missão do governo é “ir além de uma reforma tradicional e fazer uma transformação do Estado que una eficiência, inovação e justiça social, com foco na melhoria dos serviços, na valorização dos servidores públicos e na redução das desigualdades”. A ação se organiza em torno de 3 eixos: i) gestão de pessoas; ii) transformação digital; e, iii) organizações públicas. Mas o fato relevante é que as medidas apresentadas pelo MGI estão em implementação sem que houvesse a necessidade de nenhuma grande reforma constitucional para tanto.

Iniciativas de aperfeiçoamento e modernização da estrutura e das ações do Estado brasileiro deveriam fazer parte do cotidiano da gestão governamental, por meio de regulamentação ou de lei ordinária. Medidas adotadas pelo MGI são o exemplo concreto de que esta estratégia é possível e necessária. Este é o caso da inovação proporcionada pelo concurso público unificado, das leis sobre concurso púbico e sobre cotas, reestruturação racionalizadora das carreiras federais, regulamentação do estágio probatório, atualização de um programa de gestão e desempenho, além de medidas de negociação sindical.

Respeito ao teto de vencimentos do STF: fim dos super salários

Talvez um dos assuntos que cause maior desconforto para aqueles que não considerem a estratégia da Reforma Administrativa como o caminho mais adequado para resolver questões de tal natureza seja o caso dos super salários. Trata-se de uma prática escandalosa, antidemocrática e antirrepublicana. O teto dos vencimentos dos servidores públicos é estabelecido pela própria Constituição Federal em seu art. 37, inciso XI. Ali está estabelecido que nenhuma remuneração de ocupantes de cargos federais poderá ser superior ao subsídio de Ministro do Supremo Tribunal Federal.

O problema reside na regulamentação e entendimento oferecido pelos poderes Judiciário (aí incluído o Ministério Púbico) e Legislativo. Por meio de artimanhas e subterfúgios, são dados ares de legalidade a medidas claramente inconstitucionais. São os adicionais, os complementos, as gratificações e outros ganhos que tentam fugir ao valor máximo do teto. Mas tudo esbarra na autonomia entre os poderes, de forma que a prática ilegal continua de forma impune. Mas para isso não precisa nem de GT nem de Reforma Administrativa. Basta que as lideranças do Congresso Nacional decidam pautar o tema com base em um sem número de proposições que tramitam no interior do legislativo a esse respeito.

Reforma que sirva à maioria da população

Paulo Kliass é doutor em economia e membro da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental do governo federal.

Esse panorama amplo da questão da Reforma Administrativa nos permite concluir que se trata de um debate necessário envolvendo, dentre tantos aspectos, o aperfeiçoamento das condições de funcionamento do Estado brasileiro, com o objetivo maior de conseguir oferecer e prestar mais e melhores serviços públicos à população. Assim o foco não deveria ser a busca de estratégias malandras e enganosas de redução da dimensão do setor público ou de seus servidores, tal como preconizam os incansáveis arautos do Estado mínimo.

Este, aliás, é o caminho apontado por José Celso Cardoso e Alexandre Gomide no artigo “Transformação do Estado para a cidadania e o desenvolvimento nacional”. Segundo os autores, o Brasil não precisa de mais uma reforma administrativa centrada na compressão de gastos ou precarização do serviço público. Para eles,

(…) “A reforma de que o Brasil precisa é aquela que serve à maioria da população, especialmente às pessoas que dependem de bens e serviços públicos de qualidade. Em outras palavras, o Brasil necessita de um Estado de bem-estar social, uma economia verde e digital e uma democracia resiliente.” (…) [GN]

Cabe às entidades e setores comprometidos com tal perspectiva pressionar o GT para que os resultados a serem apresentados por aquele colegiado apontem para um cenário diverso daquelas tentativas liberalizantes e reducionistas do passado.

Paulo Kliass / Jornal GGN na página da Condsef – @ disponível na internet 14/8/2025

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